Puxando pela língua da minha mãe, que tem sempre coisas novas para contar sobre o seu passado, fiquei a saber que, na rua de Lisboa junto à Sé onde ela morava em nova, as senhoras faziam belos enxovais às filhas, dignos da Aldeia da Roupa Branca cantada por Beatriz Costa, sonhando vê-las noivas de um bom rapaz.
Para a minha avó, contudo, a vida tornara-se bastante difícil desde que o marido partira para o Brasil – supostamente para trabalhar com uns parentes e chamar a família quando já estivesse instalado – e nunca mais aparecera, obrigando não só a mulher a dar lições de piano e arrendar um dos quartos da casa a um hóspede pouco simpático, mas também as duas filhas a interromperem os estudos e empregarem-se.
Mesmo assim, a tia Silvina, que criara a minha avó porque a mãe dela morrera no parto, fez questão de contribuir para os enxovais das sobrinhas-netas, comprando-lhes peças inteiras de linho e algodão, das quais, se tudo corresse bem, haveriam de cortar-se lençóis que depois se bordariam à mão com as iniciais delas e dos noivos.
Mas, lá está, nem tudo correu bem: a minha tia, que para a época era bastante saída da casca – cantava na Emissora Nacional, viajava para Tânger e para o Brasil e até tinha entrado num filme –, foi apaixonar-se por um tipo imprestável que gastava o que tinha e o que não tinha no jogo.
Sabendo que a mãe e a irmã nunca concordariam com o casamento, fugiu então de casa e foi viver com a mãe do traste, levando como dote, à falta de melhor, as tais peças de pano que ainda não tinham tido oportunidade de se transformar em lençóis. Resultado: na primeira ocasião em que foi preciso pagar uma dívida de jogo, a sogra agarrou naqueles rolos de tecido todos e levou-os a uma loja de penhores. Qualquer coisa devem ter rendido, porque nunca mais apareceram.
Por sua vez, a minha mãe também dispensou o enxoval. Embora mais conservadora do que a irmã, a verdade é que se casou pelo civil e às escondidas, apenas com um par de amigos como testemunhas. Assinados os papéis, ela e o meu pai almoçaram em Sintra, onde passaram umas horas, e a seguir separaram-se, sem sexo nem nada, ficando dois meses a matutar em como iriam contar a novidade à mãe e à avó do meu pai, que achavam uma escandaleira o seu menino casar-se com uma rapariga que trabalhava.
A birra passou-lhes depressa quando conheceram a minha mãe, mas, sendo com elas que o casal passou a viver, tornaram-se as peças de pano da tia Silvina perfeitamente dispensáveis, acabando por certo devoradas pelas traças na casa junto à Sé.
Na geração seguinte, as coisas não correram melhor em termos de excelência doméstica, embora me lembre de que, nas aulas de Trabalhos Manuais, a minha irmã e eu fomos ensinadas a fazer quadrados para colchas e pegas de cozinha em crochet, bem como a bordar em ponto cruz, ponto pé-de-flor, ajour e sei lá que mais; e também recordo que, de vez em quando, alguém oferecia à minha irmã toalhas, panos de tabuleiro, taças e jarrinhas de estanho horríveis para o enxoval, que a minha mãe acrescentava com uns Tupperware coloridos que eram então uma absoluta novidade.
Mas as raparigas naquele lar não eram casadoiras: a minha irmã foi emancipada aos 16 anos para tirar carta de motorizada, o que levou a que quase derrubasse um sinaleiro da sua peanha; e, assim que rompeu o 25 de Abril, andou a alfabetizar adultos à noite e virou uma «perigosa maoista», arrastando a minha mãe para umas exposições inenarráveis na sede da Associação de Amizade Portugal-China, onde havia tudo menos noivos potenciais. Ficou solteira.
Já eu, que nem direito tive a enxoval (a minha mãe já tinha desistido de criar meninas prendadas), virei-me muito cedo para os papéis, vivi dezassete anos com o frigorífico e a despensa praticamente vazios e só arranjei quem me aturasse aos quarenta e quatro anos. Nessa altura, se calhar até me tinham dado jeito uns lençóis bonitos e antigos para celebrar a sorte trazida em ano de capicua; mas, infelizmente, já não havia nada do género para herdar…

Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.