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Estreei-me a andar no metro de Lisboa com dois dias de vida. Os meus pais, jovens progenitores que tinham atingido a maioridade uns meses antes do meu nascimento, não dispunham de viatura própria, por isso, enfiaram-se comigo no metro apinhado de gente, a caminho daquela que viria a ser a minha primeira casa, ou para ser mais exacta, um quarto em casa dos meus avós maternos onde vivemos os três até eu ter seis anos.
Lisboa, apesar de estar à distância de uma viagem curta de autocarro e de cacilheiro — de Cacilhas ao Terreiro do Paço são dez minutos de travessia de rio —, era um local que visitávamos em ocasiões especiais: idas à Feira Popular ou às sessões do cinema Condes; passeios ao Parque Eduardo VII e à Estufa Fria, onde uma vez perdi um sapato que nunca foi encontrado.
Ir a Lisboa era caro, começando pelos transportes, bilhetes de autocarro, barco e metro. A comida também era mais cara do que na margem Sul; só por se entrepor um rio entre a cidade onde ficava a casa dos meus avós e a cidade capital do país, acresciam uns quantos escudos aos sumos e aos bolos.
Evidentemente que tudo o resto era mais dispendioso em Lisboa, ouvia o meu pai dizer, sabendo já nessa altura que escudos era coisa que nunca abundava na carteira do meu progenitor, mas eu só reparava naquilo que me dizia respeito, o lanchinho a que tinha direito na margem nobre do rio.
Nunca almoçámos em Lisboa, pelo menos que me lembre, as raras refeições fora de casa, no restaurante, eram sempre feitas na outra margem, na margem esquerda do rio.
Talvez por isso tenha crescido com a sensação de que me encontrava no lado errado. Afinal, na margem direita é que parecia estar tudo aquilo que era bonito, caro e a que nós só tínhamos direito pontualmente; sentia que não pertencíamos ali.
Morei depois no Seixal, na adolescência, até ser adulta, ficando também à distância de uma travessia de barco de Lisboa, desta vez mais longa, perto de trinta minutos. Nesse período, percebi nitidamente que queria morar na outra banda, em Lisboa, a banda certa, porque ali se encontravam todas as coisas das quais gostava. A arquitectura, as pessoas bem vestidas na Baixa, a oferta cultural diversificada.
Faltei muitas vezes às aulas durante o liceu, sem os meus pais saberem, para apanhar o catamarã e ir até ao extinto cinema King assistir às matinés. Não contava a ninguém; ia e assistia ao filme, muitas vezes películas fortes, perturbadoras e provavelmente inapropriadas para a minha idade. Lembro-me, por exemplo, do La Haine, de Mathieu Kassovitz, que marcou pela violência natural dos subúrbios, que tão bem conhecia.
Voltava ao final da tarde para casa, depois do cinema King e da livraria Barata na Av. de Roma, sentindo que se tinha dado uma transformação em mim. Nunca contei aos meus pais das escapadelas à escola para vir a Lisboa, talvez eles leiam esta crónica e fiquem a conhecer esta parte da minha história.
Nunca senti que pertencia aos subúrbios, vivi em zonas pobres, nomeadamente no Pragal, numa casa ínfima, num pátio com habitações a cair de podre. Rodeada de bêbedos, de indigentes e também, felizmente, de boas pessoas que me foram elogiando a alegria e a motivação para «artista», para ser «alguém na vida». Somos todos alguém na vida. Somos todos zés-ninguém.
Comecei a morar em Lisboa, no Campo Pequeno, andava ainda na faculdade na Av. de Berna, e ia estrear-me no Teatro Aberto como actriz. Tinha 21 anos. Dividia casa com três raparigas estudantes. Este período em que estudava e tinha ensaios no Teatro Aberto, na Praça de Espanha, foi, até à data, uma das fases mais alegres da minha vida. Finalmente a viver e a trabalhar em Lisboa, tudo o que eu tinha sonhado enquanto vivia nos subúrbios.
Depois dessa casa partilhada no Campo Pequeno, vivi em muitas outras casas. Primeiro arrendadas com o companheiro que tinha na altura e mais tarde compradas. A primeira foi em Belém. A vida corria-nos bem profissionalmente, sabíamos do privilégio e excepcionalidade de comprarmos uma casa em Belém, de conseguirmos pedir um empréstimo ao banco pouco depois dos nossos trinta anos.
O bairro de Belém, com vista para o rio, não era propriamente chique, os nossos vizinhos eram maioritariamente pessoas idosas, cujo valor das rendas não coincidia com a época em que estávamos. Ainda assim, sabíamos estar acima daquilo que a nossa própria família alguma vez tivera pelo facto de termos aquela casa.
Anos mais tarde, depois de me ter separado, passei de Belém para a Estrela. Um rés-do-chão com um pequeno jardim; reconheço que, dada a minha humilde origem, se tratava de um verdadeiro luxo. Quando contava aos amigos da área profissional em que zona é que vivia, sentia os olhares de desdém e passavam a rotular-me de menina beta. Coisa que nunca fui nem serei. Já nos subúrbios, dizer aos amigos do bairro que morava num bom apartamento no coração da cidade também soava a cagança.
Comecei a perceber, a partir dessa altura, que nunca mais iria encaixar em lado nenhum, nem no subúrbio nem no centro. Quando fui morar para a Lapa, a uns meros quarteirões da Estrela, senti então o verdadeiro peso do nome de um bairro. Quando por acaso conhecia alguém, algum artista, que vivia na Lapa, logo tinha de assistir ao desfilar da narrativa histórica de há quantas décadas a família vivia no bairro.
Dada a minha chegada recente, e sendo mãe solteira e trabalhadora, ficava logo a pertencer ao grupo dos que – coitados! – querem ascender, mas que, por melhor que estejam na vida, nunca «terão um berço». Sempre que oiço esta expressão do «berço» sinto uma verdadeira agonia.
Por outro lado, quando contava a familiares nos subúrbios que morava na Lapa, que é um bairro sem ruído de tráfego, pacato e bonito, logo consideravam que devia estar rica. Coisa que, obviamente, não estou nem estarei. Basta perder os vinte trabalhos a recibos verdes que tenho de fazer por ano. Sou uma trabalhadora por conta própria. É simples: não trabalho, não ganho.
E ainda sou recambiada para os subúrbios, o que me partiria o coração.
Se desde que moro em Lisboa deixei de pertencer, aos olhos dos outros, a parte alguma, eu sempre soube que sou daqui. Sempre me senti bem deste lado do rio. Não tenho memória para provar, mas tenho quase a certeza de que amo esta cidade desde que abri os olhinhos à saída da Maternidade Alfredo da Costa, desde a primeira viagem de metro com apenas dois dias de vida.
* Cláudia Lucas Chéu nasceu de madrugada na mais célebre maternidade lisboeta, em 1978. Cresceu na margem Sul, mas viveu parte da adolescência enfiada no King. Quase todos os momentos emocionantes da sua vida se passaram em Lisboa: perdeu a virgindade nas Laranjeiras, foi assaltada no Cais do Sodré, subiu ao palco pela primeira vez como atriz profissional na Praça de Espanha, publicou o primeiro livro no Rossio e deu à luz uma filha no Alto dos Moinhos. Vive há mais de duas décadas em Lisboa. Não contempla morar noutra cidade.