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Subimos umas escadas descomunais, daquelas que nos dias quentes amaldiçoamos e nos dias chuvosos insultamos, e o barulho da capital lisboeta parece desvanecer-se. Aproximamo-nos do bairro da Lapa, calmo, tão calmo que nem parece ser no centro de Lisboa. No topo destas escadas, entre a Lapa e a Pampulha, está a Travessa Amoreira e numa das suas esquinas um restaurante que já foi uma drogaria. É um restaurante que, sem saudosismos, não deixa esquecer o passado.
O antigo ocupante da esquina era o senhor Albino. Tinha uma loja pequena com tudo o que era necessário para tratar do corpo e da casa. Era dono de uma dessas lojas que hoje habitam mais o imaginário da cidade do que o seu quotidiano, as famosas drogarias.
Hoje, a antiga drogaria de bairro é um moderno restaurante. E o atual dono do espaço, Paulo Aguiar, lembra-se da drogaria como ela era, um “espaço monumental”, recorda.
Paulo cresceu no bairro, viveu no prédio em frente à drogaria que agora é o seu restaurante e brincou na travessa onde agora criou uma esplanada. Já em miúdo tinha jeito para gestão, mandava recados à mãe para ir à drogaria buscar o que faltava em casa. Muitos anos e muitas viagens mais tarde, ao saber que o espaço da drogaria estava disponível, deixou que a nostalgia levasse a melhor e decidiu abrir o Restaurante Drogaria, numa homenagem a outros tempos.
“O bairro é muito característico, este bocadinho aqui é muito ilustrativo do que foi o século passado e das grandes influências de arte nova e de art deco. Queria trazer um bocadinho disso para o espaço”. É assim que Paulo explica as suas intenções decorativas que, com candeeiros dos anos 1960, um chão axadrezado estilo bistrô e uns apontamentos de mármore branco criam uma envolvência contemporânea e nostálgica ao mesmo tempo.
Embora os traços arquitetónicos do bairro se tenham mantido, Paulo conta com alguma tristeza que o espírito bairrista não prevaleceu e o ambiente mudou. O “desaparecimento dos pequenos negócios” e o “crescimento de Lisboa” transformaram, na sua opinião, a zona da Lapa e muitas outras pela cidade em “mini-dormitórios”. Uma das mercearias onde ia quando era miúdo fechou e um sapateiro pelo qual passava todos os dias foi transformado em habitação.
Com o seu restaurante quer trazer de volta o espírito bairrista “a um bairro que parece adormecido”, diferente daquele em que nasceu, que era “muito vivo, com muita gente na rua”.
“Aqui em frente do restaurante faziam-se os Santos Populares. Púnhamos as lanternas, as músicas e as sardinhas. Tudo isso se perdeu com a alteração da vivência do bairro. As pessoas passaram a vir aqui só dormir e, de facto, o comércio desapareceu. Quando o comércio desaparece toda a vivência se altera”, diz Paulo.
Bairro a dois tempos
O seu restaurante vive numa dualidade entre passado e presente, memória e inovação. Há um espírito tradicional português, mas também há uma vontade de mudar que surpreende o cliente. “Gosto muito de comida tradicional portuguesa”, admite Paulo, “dos pratos que nos unem a todos”, observa. Só que decidiu dar-lhes um twist.

O menu é o resultado de um trabalho de equipa entre o chefe de cozinha Daniel Sousa e o proprietário do restaurante. Duas pessoas muito viajadas que decidiram integrar na cozinha portuguesa novos elementos. “Quero que o público sinta connosco o prazer da descoberta de novos sabores. Tradicionais, mas que depois são uma surpresa”, explica Paulo com entusiasmo. Um twist com “alma portuguesa”, diz.
Quando se passa os olhos pelo menu, o prato que à primeira vista é capaz de causar mais estranheza é o das gyozas de cozido à portuguesa. Sabem ao cozido a que todos estamos habituados, mas são servidas noutro formato. Na verdade, Paulo tem um grande fascínio pela Ásia, berço das gyozas, e decidiu trazer para cá um pouco dos lugares que visitou nesse continente.
A equipa, tal como os pratos na ementa, é também de fusão. Os seus elementos vêm de muitos sítios diferentes e nenhum é de Lisboa. Daniel Sousa é chefe de cozinha e viveu em Castelo Branco. Abu é assistente de cozinha e nasceu no Bangladesh. Ludgero que se denomina como o “faz-tudo”, serve às mesas, controla a sala e conserta o que for necessário, vem de Trás-os-Montes. Em conjunto, fazem da Drogaria um restaurante que vale a pena experimentar.

Akira também faz parte da equipa e tem quatro patas. É o cão de Paulo. Mais parece um lobo, muito grande e peludo, mas traz boa disposição ao lugar com o seu olhar amigável. “Os vizinhos gostam muito do Akira, passam para lhe dar uma festa”, conta Ludgero enquanto lhe acaricia o pelo. Está a tentar acalmá-lo, é a primeira vez que ladra desde que chegou. O dono saiu e ele não está a gostar da ausência. “Tenho de ir comprar framboesas, se não matam-me ali na cozinha”, foram as últimas palavras que Paulo disse antes de começar a subir a rua.
A dinamização da economia local é uma preocupação de Paulo Aguiar. No Restaurante Drogaria aposta-se nos fornecedores locais. O objetivo “é dinamizar aqui uma microeconomia”. O empresário considera que “no empreendedorismo a uma pequena escala” ganham “todos muito mais uns com os outros”, contribuindo em conjunto “para um produto muito diferenciado”. Vai ao talho em Torres Vedras, os legumes e as frutas vai pessoalmente buscar ao Saldanha e trabalha com uma garrafeira em Santos. São novas formas de fazer comércio que têm muito de antigo, da época antes das grandes superfícies e dos franchisings.
“Vivia no prédio ao lado e agora moro na mesma rua. Isto parece uma coisa de fado”
Antes da pandemia, Paulo não conseguia estar muito tempo no mesmo lugar. À conta disso, conheceu muitas partes do mundo que o fascinaram, até que, por motivos pessoais, decidiu abrandar.
“Vivia no prédio ao lado e agora moro na mesma rua. Isto parece uma coisa de fado, fatal como o destino, que não sou nada eu…acho eu”, diz, com um sorriso tímido. “Um dia encontrei-me aqui mais presente e, mais presente, comecei a desenvolver outros projetos”, conta Paulo, que continua a exercer Engenharia Civil, área na qual se formou, apesar da aventura pela restauração.

“Não regressei para ficar, isto são fases. Gosto de fazer projetos e quando começam a estabilizar, vou fazer outras coisas. Acho que isso é o melhor da vida”, diz, garantindo que este não é o seu primeiro projeto e também não será o último.
A primeira aventura na restauração do empresário foi em Timor-Leste. Começou com um restaurante num centro comercial, frequentado por emigrantes e timorenses, que “naquele cantinho do mundo matava saudades a quem estava longe de casa”, diz Paulo. Ainda está a funcionar e chama-se “Pau de Canela”. Um dos sonhos de Paulo é voltar a ter um restaurante para lá das fronteiras, no Japão, para dar mais projeção à comida portuguesa.
Quando as luzes se desligam “a rua fica mais triste”
Embora Paulo reconheça que o bairro parece adormecido, gosta de se focar nos aspetos positivos e no facto de as coisas estarem a mudar. Ali perto, o comércio volta a aparecer, Paulo fala de uma padaria que tem muito protagonismo, a “Monka”, no topo da rua, e de uma loja “que provavelmente já foi um sapateiro”, especula.
Com a vinda de algum comércio, um novo comércio, o dinamismo no bairro também voltou, em parte. Os vizinhos já estranham quando nas folgas do restaurante se desligam as luzes de decoração penduradas por cima da esplanada, queixam-se a Paulo de que “a rua fica mais triste”. Porque os bairros são isto mesmo, a convivência entre quem os habita.
Ludgero, o “faz-tudo”, depois de tratar dos consertos necessários ao restaurante, queixa-se do preço das casas na zona. “Os lisboetas foram expulsos de Lisboa”, diz e fala sobre a Lisboa dos turistas, só de hotéis e arrendamentos locais.
A Lapa é uma zona cara, principalmente perto da Rua do Sacramento. Mais abaixo, antes de subirmos as escadinhas descomunais, no bairro popular da Pampulha, vemos um pouco mais da realidade lisboeta e dos resistentes que permaneceram. O Restaurante Drogaria está entre estas duas zonas.
Segundo Paulo, o bairro em que viveu era habitado por uma classe média e antes as diferenças entre a Lapa rica e austera e o Bairro Popular da Pampulha eram muito mais visíveis. Na Lapa, ainda podemos encontrar alguns palacetes. No Bairro da Pampulha ainda podemos ver tascas e estabelecimentos tradicionais.
Descemos as escadinhas descomunais e voltamos a ouvir a capital lisboeta. Vemos uma cafetaria onde um grupo de amigos se reúne para uma cerveja acompanhada de uma conversa acalorada sobre futebol. Vemos a papelaria da Pampulha coberta de jornais. Uma pessoa, carregada com sacos de compras de uma grande superfície, apanha o autocarro. Vemos uma farmácia e algumas mercearias. Se continuarmos pela Calçada da Pampulha, vemos hotéis e uma leitaria antiga. Há de tudo. Passado, presente e futuro.
* Salomé Rita estagiou na Mensagem. Nasceu e cresceu em Faro e há dois anos decidiu vir para Lisboa estudar esta necessidade que todos temos de comunicar. Sucessivos confinamentos e restrições afastaram-na da cidade, ainda se perde pelas ruas, mas é perdida na capital que encontra boas histórias para contar.
Sim a descrição do Paulo é exatamente o passado e o presentede tantos tal como wu relembramos momentos felizes e simples de um lugar particularmente genuíno…Entre partilhas ,brincadeiras e vivencias de outros tempos que se misturam suavemente com o presente …Esse restaurante é sem dúvida um misto de sentimentos .
A ALEGRIA DO PASSADO estará presente no Agora…