Aprendi com um grande escritor – mais concretamente, Mário Cláudio – que tendemos a mitificar as nossas infâncias; e que, quando escarafunchamos nelas sem complexos, acabamos por nos render à evidência de que não foram tão maravilhosas como supúnhamos.
Ainda que nunca tenha sido mais feliz do que nesses anos verdes – em que gostava de ter medo porque sabia que havia logo quem me desse a mão ou tapasse os olhos –, quando observo as crianças de hoje, só posso concluir que, mesmo para os meninos que, como eu, viviam em Lisboa – e, portanto, não eram obrigados a trabalhar no campo ou fazer quilómetros para aprender a ler –, a vida estava longe de ser um mar de rosas.
Havia acima de tudo regras e disciplina, mesmo em casa, e não passava pela cabeça de uma criança desobedecer, até porque a prevaricação implicava quase sempre um castigo, a começar pela ameaça de ir parar ao inferno por causa de uns pecados sem importância…
Mas era na escola que as coisas fiavam mais fininho: quando não havia reguadas e tabefes, não faltava ainda assim a palmatória pendurada num gancho ao lado do quadro para se fazer lembrada, ou uma qualquer experiência humilhante, como passar a aula de pé a olhar para o canto da sala, ou então de frente para os colegas, mas com orelhas de burro.
Na minha escola primária, além de um exagero de cópias e ditados para fazer em casa, era preciso ter a tabuada na ponta da língua, e estava bem arranjado quem não soubesse somar fracções, debitar os rios e seus afluentes ou dizer os cognomes de todos os reis portugueses. Cruzávamos os braços sobre a carteira quando acabávamos o teste, fazíamos chichi a horas certas e, mesmo no recreio, as brincadeiras não eram como cada um queria, mas organizadas.
As pastas de pôr às costas eram duras e cheiravam a couro, os cadernos tinham todos a mesma capa parda, as borrachas arranhavam o papel, os lápis de cor vinham em caixas de seis, oito no máximo. O almoço, que ia acomodado de casa num cesto de verga que rangia, incluía sempre a detestável sopa de hortaliça…
Rapávamos um frio horrível de soquetes, as fazendas picavam, os vestidos das festas irritavam-nos no pescoço com as suas golas engomadas; tínhamos um par de sapatos para bater e outro para bom e herdávamos a roupa dos irmãos, cuja marca era apenas a que eles lhe imprimiam.
Só telefonávamos para alguém se ficássemos doentes na escola, que o telefone não servia para conversar nem jogar. Também a televisão era só um nico antes do jantar, e cama às nove. (E a irritação suprema era quando, ao fim-de-semana, podíamos ficar acordados até mais tarde e os adultos nos mandavam sair da sala para contarem anedotas ou coisas sérias…)
Além de água oxigenada, mercurocromo, Eno, Vick’s e Melhoral (e a praga dos supositórios para as anginas), pouco mais havia na farmácia doméstica; se caíamos e arranhávamos os joelhos, ninguém nos punha um penso rápido, muito menos às cores: o que arde cura e era suposto termos a vacina do tétano em dia.
Mas hoje, que tantas crianças têm mochilas leves e marmitas térmicas, material escolar a cheirar a morango e chocolate, roupa e ténis de todas as marcas, telemóveis caríssimos; que se deitam à hora que lhes apetece ao fim de uma noite inteira a ver televisão ou a jogar no computador; que praticam todo o tipo de actividades extracurriculares; que fazem os trabalhos de casa copy/paste da Internet e os professores acham que, coitadinhos, tiveram imenso trabalho; que dizem palavrões à frente de quem as queira ouvir; que desobedecem com a certeza de que a punição nunca virá… – pasmem! – foram mobilizados pedo-psicólogos e educadores de infância para as proteger dos «traumas da vacinação»…
Mas está tudo maluco? Estes consoladores profissionais teriam dado muito mais jeito à minha geração, cujos braços estão até hoje irremediavelmente marcados pelo aparo tenebroso com que nos vacinavam contra a varíola…
E depois queixem-se de que os jovens nunca mais crescem e ficam até aos trinta anos em casa dos pais…

Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.
Estimada Maria do Rosário Pereira,
Adorei a sua crónica – uma radiografia perfeita do que foram os “nossos tempos”. A única coisa que me parece terrível nos antigos métodos educativos são os castigos físicos, por vezes terríveis, cuja violência- sobretudo na escola, diante de todos, como uma condenação em praça pública – causavam vexame e, penso eu, traumas. Nunca fui vítima de reguadas, mas sofria ao ver aquela punição.
Quanto aos outros detalhes da antiga forma de viver, estou plenamente de acordo. Sou avó e é com grande dor d’alma que vejo a profusão de bens materiais dos mais simples (a começar pelos lápis de cor), como se esse consumo do excesso fosse garante da felicidade de um ser.
Sou um pouco mais velho. Frequentei a escola primária no início da década de 1950. Havia régua e disciplina… e não tenho memória de ter apanhado reguadas (e provavelmente apanhei) e da disciplina não tenho queixa. O respeito pelo professor era igual ao respeito pelos pais… por isso, tudo estava no lugar certo. Não tenho traumas de escola primária nem da infência passada na rua e a subir às árvores. Só guardo boas recordações!… As más recordações aconteceram muito depois… na Guerra Colonial, já adulto, causando-me, por toda a vida, sonhos maus que me acordavam em aflições e suores frios. Curei-me do trauma 50 anos depois, quando escrevi e publiquei as minhas memórias da Guerra Colonial (191 – Memórias de um Soldado em Angola)
Cara Maria do Rosário,
Eu nem sei como conseguimos sobreviver e ser felizes, com a ameaça de tantos dos meus colegas psis e sucedâneos de uma catrefa de traumas!
Não auguro é grande futuro para uma geração habituada à abundância, ao facilitismo (tudo aparece sem esforço) e com uma baixíssima resistência à frustração. Não terão “traumas”, mas duvido é que tenham a alegria e a felicidade de vibrar com os pequenos nadas de que a vida é feita, recordando Sérgio Godinho. Uma bola de meias velhas e um terreiro proporcionavam uma bela jogatana, um “ring” belas gargalhadas e um pirolito (de açúcar moreno) um regalo para o palato. Parabéns pelo texto.
Olá, a todos!
Fico deliciada com tudo o que me faz reviver os meus tempos de infância. Fui tão feliz e não sabia! Saboreava cada cozinhado da minha avó e da minha mãe ( raramente se ia ao restaurante).
O regresso às aulas era festejado com grande pompa! Encapávamos, nós próprias, os livros e cadernos , com entusiasmo, variando a cor do papel de “ferro”, face ao ano anterior ( duração obrigatória de um ano lectivo, em bom estado!
Memorizávamos , sim, rios, reis e caminhos de ferro, sem qualquer interesse mas, como não conhecíamos nada mais, achávamos tudo certo.
Trocava a minha infância pela dos meus netos? Não, seguramente!! Adorei a que tive e não sabia que era feliz.
Fui professora , ou seja, fui uma aluna eterna e ainda incuti alguns dos bons hábitos que assimilei e penso que os meus alunos me agradeceram.
Tive o privilégio de ter nascido a meio do século xx e de ter vivido muitas das transformações que deram origem a estes novos tempos. Tento actualizar-me mas, reconheço que o que virá por aí me vai ultrapassar!
O interessante é continuar a ser espectadora do correr dos dias.
Bom futuro para todos!