O Estúdio Apolo 70 teria feito 50 anos, no dia 27 de Maio deste ano, se ainda estivesse aberto. Fechou em finais dos anos 1980. Esta sala de cinema teve durante duas décadas um papel preponderante, no nosso país, no lançamento de obras essenciais da cinematografia mundial, bem assim como de alguns títulos portugueses.

Antes do 25 de Abril de 1974, julgo que manteve uma programação de grande qualidade revelando tanto obras de autores consagrados, como de estreantes que prometiam muito, ou filmes de cinematografias pouco conhecidas entre nós.

Não era a primeira sala estúdio em Portugal, pois antes já se tinham inaugurado o Estúdio do Império e o Satélite, ligado ao Monumental, mas era a primeira que se anunciava dirigida por um crítico de cinema, então a escrever diariamente no “Diário de Lisboa”.

O Estúdio Apolo 70 pertencia ao grupo Lusomundo, que algum tempo antes começara a ter como administrador e director o tenente-coronel Luís Silva que impulsionara o grupo com uma dinâmica nova e que, rapidamente, transformou duas importantes distribuidoras, a Lusomundo e a Sonoro Filmes, no maior grupo de exploração cinematográfica do país.

Foi Luís Silva que me convidou a dirigir a programação do Apolo 70, alguns meses antes da sua inauguração. Aceitei com prazer o repto, com uma condição que foi seguida escrupulosamente por ambas as partes: eu continuaria a ser crítico de cinema com inteira liberdade de opinião e sem estar sujeito a qualquer pressão, a sala procuraria ser inflexível na escolha de bons filmes, olhando obviamente a alguns aspectos de ordem financeira: nem a Lusomundo queria que o empreendimento fosse um desastre económico, nem eu, na medida que pretendia um trabalho duradouro na difusão e sensibilização para o cinema de qualidade artística e cultural relevantes.

Assim foi. A sala abriu as suas portas ao público de Lisboa, integrada num complexo que constituía nessa altura o maior “drugstore” da Europa. Assim era publicitado nos meios de comunicação da época. O projecto era do arquitecto Augusto Silva e a decoração de Paulo Guilherme. A sala contava com 300 lugares e estava equipada com aparelhagem Philips de projecção para 35 mm (em ecrã normal e cinemascópio).

0 Estúdio Apolo 70 inaugurou com a estreia de “O Vale do Fugitivo” (Tell Them Willie Boy is Here), de Abraham Polonski, western moderno, na linha da renovação do género à época, que era interpretado por Robert Redford, Susan Clark, Katherine Ross e Robert Blake. Ao escolher esse filme para estreia, pretendi desde logo definir uma linha de actuação: cinema de enorme qualidade cinematográfica, estética e cultural, abordando temas importantes, quer viesse de grandes estúdios norte-americanos, quer fosse oriundo de outras proveniências. Sem preconceitos sequer quanto a géneros.

Mas o Apolo 70 pretendia muito mais. De certa forma, renovar o panorama cinematográfico lisboeta e nacional. Inventar novos horários: fomos os introdutores do horário da meia-noite, com uma sensacional “Meia Noite Fantástica”, que principiou ainda no antigo Vox, com “Frankenstein Criou a Mulher”, de Terence Fisher, bem como o horário da hora do almoço. Criou-se um programa impresso como não havia antes nas salas portuguesas. Distribuído gratuitamente, acompanhava cada novo filme com criteriosos textos informativos e críticos. Organizavam-se ciclos, retrospetivas e pequenos festivais de cinema, que antecipavam algumas estreias.

Na altura, escrevi umas “palavras de apresentação da nova sala”, que apareceram no programa então distribuído aos espectadores, onde se podia ler:

“Ao abrir as portas todo o cinema que se preza orgulha-se de se apresentar ao público referindo normalmente a excelência da sua projecção, a comodidade dos seus lugares, o bom gosto do seu ambiente, o interesse espectacular da sua programação, etc. Apolo 70 poderia começar também por isso (e cremos que o faria com inteira justiça) mas as responsabilidades que irá contrair são, sobretudo, de um outro tipo. Com o que a sua declaração de princípio pretenderá atingir um alcance muito mais vasto.

Entendemos que uma sala de cinema não passa de um local onde o espectador se dirige essencialmente para ver cinema. Como a uma biblioteca vai um leitor, como a um museu se desloca um visitante. Sentado ou deitado nas coxias de qualquer cinemateca abarrotando de olhos ávidos; refastelado nas poltronas luxuosas do Club 13 ou do Coronet; comprimido nas cadeiras de ferro e madeira da sala do seu bairro; com calor ou frio nas cine-esplanadas; sentado no banco que de casa levou para o adro da igreja de uma aldeia que o ambulante visita de animatógrafo às costas, por todo o lado uma mesma motivação, ainda que com intenções básicas diversas: ver cinema, deixar-se possuir pelo fascínio das imagens em movimento, descer ao fundo da noite e percorrer os caminhos da fantasia e do sonho, penetrar no mundo por vezes alienante da ilusão celofanizada, ou retirar da parábola e da História o ensinamento e a lição que nelas se encobrem.

O cinema, com 75 anos de idade, oferece ao homem possibilidades inesgotáveis. Resta ao cineasta não trocar a criação pelo fabrico em série, não alienar a sua liberdade e talento, imolados em nome da facilidade e do êxito imediato. Ao público compete igualmente escolher e sobretudo saber escolher. Para o que deverá estar informado (possuindo as chaves que lhe permitirão penetrar neste universo fascinante e perigoso) e devidamente formado (ou seja: sabendo utilizar essas chaves que lhe são facultadas e utilizá-las de uma forma viva, pessoal, enriquecedora).

Pois Apolo 7o aposta no cinema de qualidade e é esse cinema que propõe aos seus futuros espectadores. Um crítico de cinema, enquanto crítico de cinema, estará à frente da programação desta sala, procurando estabelecer uma plataforma de confiança recíproca entre quem escolhe uma programação e o público a que esta se dirige.

Podemos certamente afirmar que nesta sala só serão exibidas películas a que reconheçamos valor para isso e uma inequívoca importância. Obras de qualidade invulgar e sobejamente significativas (tanto a um nível histórico, onde os lapsos de cultura cinematográfica portuguesa são flagrantes, como num plano de modernidade narrativa ou de significado humano).

Basicamente este será o rumo de Apolo 7o, uma sala aberta a todos quantos amam no cinema o seu lado mágico e inquietante, onde a lucidez e a imaginação do criador serão sempre argumentos de peso primordial. Apolo 70 não pretende ser a capela de um grupo de intelectuais de rígida ortodoxia estética e cinematográfica. O cinema só será uma das formas de expressão mais importantes do nosso tempo desde que profundamente ligado ao público.  É esse espectáculo de fraternal comunicação que defendemos desde que ao serviço do homem e do seu futuro. É esse cinema que aqui irá passar, sob as mais diversas formas, do necessário experimentalismo à escrita de sereno classicismo, do western à comédia, do realismo ao maravilhoso, do documentário à ficção.  

As nossas intenções foram claramente definidas no esquema de programação que seguidamente anunciamos. Onde o cinema português ocupará o lugar que julgamos já merecer.

Para além das obras em estreias Apolo 70 dinamizará o seu horário apresentando “Filmes em Retrospectiva” (repondo películas de significado diverso, mas de visão aconselhável), “Meia Noite Fantástica” (reservada ao terror, ao fantástico, à ficção científica, ao maravilhoso) e ainda “Manhãs Infantis” (apresentando os filmes possíveis para maiores de 6 anos, sessões essas que se destinam a fomentar o gosto pelo bom cinema do público de amanhã).”

Anunciava-se ainda algumas características curiosas: A sala funcionará com os seguintes horários e preços: sessões aos dias de semana: 14h3o – 16h45 – 21h45 h; aos sábados e domingos: 14h30 – 16h45 – 19h – 21h15. Sessões especiais: Filmes em retrospectiva: 19 h (de 2ª a 6ª feira) Meia Noite Fantástica: 23h30 (sábados) Manhãs Infantil: 11 h (domingos).

Os preços variavam: Tardes de semana: 15$00; Noites de semana: 25$00; Tardes e Noites de Sábados, domingos, feriados e estreia: 30$00; Filmes em Retrospectiva: 15$00 (estudantes: 10$00); Meia Noite Fantástica: 20$00 e Manhã Infantil: 15$OO (crianças 7$5O).

No primeiro ano de funcionamento o Apolo 70 estreou, além de “O Vale do Fugitivo”, “Os Amores de Uma Loura”, de Milos Forman, “América, América, para onde Vais?”, de Haskel Wexler, “Ivan, o Terrível”, de Sergei Eisenstein, “Os Contos de Beatrix Potter”, de Reginald Mills, “Calcutá”, de Louis Malle, “O General della Rovere”, de Roberto Rossellini, “O Passado e o Presente”, de Manoel de Oliveira, “Taking Off”, de Milos Forman, “Pedro Só”, de Alfredo Tropa, “Um Dia na Vida de Ivan Denissevitch”, de Casper Wrede, “Jerry, 8 ¾”, de Jerry Lewis, “Uma História Imortal”, de Orson Welles e “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock. Nada mau. Uma história que se recorda com saudade.


*Lauro António é realizador e crítico de cinema – lendário em Portugal. Lisboeta de gema, foi a cidade que também cunhou o seu gosto pelo cinema, e ele próprio mudou a história do seu cinema.

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6 Comentários

  1. Que boa esta recordação. Foi lá que vi Barry Lyndon, por exemplo. Tanta saudade desses cinemas e desses tempos. Muito obrigada pelo seu artigo.

  2. Lembro-me perfeitamente de ir ao snack bar na cave, jantar ou comer um pêche melba. Nos últimos dias recordo ter ido ver um filme do Fassbinder, de que não recordo o nome, que não consegui ver até ao fim. Datado, lento, com diálogos arrastados, à Manoel de Oliveira. Não consegui resistir.

  3. Algo está errado neste artigo !!!
    O “Drougstore Apolo 70” e respectivo “Estúdio Apolo 70” foram inaugurados em 27 de Maio de 1971 e não a 21 de Maio.
    Não fechou nos finais de 1980 , mas sim no fim do ano e 1990.
    Convém corrigir …

    Os meus cumprimentos
    José Leite

  4. Lamento, mas tenho de chamara a tenção para duas imprecisões:
    O “Drugstore Apolo 70” e “Estúdio Apolo 70” foram inaugurados em 27 de Maio de 1971 e não a 21 de Maio.
    O “Estúdio Apolo 70” não fechou nos finais dos anos 80, mas sim em final de 1990.
    Os meus cumprimentos
    José Leite

  5. Infelizmente o artigo não refere quando é que Lauro António deixou de programar a sala.

  6. Caro José Leite,
    Tem inteira razão nos seus reparos. Uma troca de número, 1 e 7, faz toda a diferença. A inauguração foi a 27 de Maio de 1971. Quanto à outra imprecisão, eu saí da direccão do Estúdio Apolo 70 em meados dos anos 80 e este continuou a funcionar até à década de 90, mas já sem a minha orientação. Assim está tudo certo. Abraço.

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