O piso é liso, o traçado é contínuo e isso pode significar uma oportunidade para quem vê a sua mobilidade limitada por passeios não adaptados. Para quem se desloca de cadeira de rodas, uma passadeira sem o lancil nivelado à altura do asfalto rapidamente se torna num obstáculo intransponível. Mas quando existem, as ciclovias podem ser a escapatória, a única alternativa a andar pela estrada.

Nos últimos meses, têm sido várias as imagens partilhadas nas redes sociais de utilizadores de cadeiras de rodas a utilizar as ciclovias da cidade. Mas isso não quer dizer que esta seja a situação ideal. Pelo contrário: a constatação desta realidade é uma manifestação física e muito evidente de um problema maior de acessibilidade em Lisboa.

Ao todo, Lisboa tem cerca de 1250 quilómetros de passeio – maioritariamente em calçada – duas mil paragens de autocarro e 9800 passagens de peões. Desde 2010, apenas uma pequena parte foi intervencionada, mas se há zona da cidade que hoje se aproxima da acessibilidade plena é o Eixo Central – de Entrecampos até ao Marquês de Pombal. Ali mesmo, a Avenida da República é um dos mais emblemáticos exemplos da boa acessibilidade.

No bom exemplo do Saldanha, “como o passeio é bom, as pessoas não estão a usar a ciclovia”, diz Diogo Martins, coordenador da delegação de Lisboa do Centro de Vida Independente, organização que defende o empoderamento e a autonomia de pessoas com diversidade funcional.

Na Avenida Defensores de Chaves (na fotografia), Diogo Martins utiliza o passeio, “apesar de ser desconfortável”, porque aqui a ciclovia não está fisicamente separada do trânsito automóvel. “A falta de segregação para os ciclistas é perigoso. Para nós ainda é pior”, diz. “Quase todos os dias há sempre um sítio qualquer em que não dá para passar e tenho de ir pelo meio da estrada”. Foto: Rita Ansone

Por ali, o passeio, com calçada artística, é acompanhado por uma faixa betuminosa que oferece um piso liso e confortável, escolhido pela maioria dos peões e, sobretudo, por quem se desloca em cadeira de rodas.

Diogo olha para a cidade com uma perspetiva muito particular, sendo especialista em acessibilidade nos transportes e utilizador de cadeira de rodas. À Mensagem, explica que usa agora mais este espaço da cidade do que antes das obras que revolucionaram aquele lugar.

Inauguradas no início de 2017, as alterações profundas nesta zona da cidade proporcionaram o aumento dos passeios e a adaptação de passadeiras, assegurando um desnível quase nulo nas interseções com o passeio, mas também um aumento da cobertura vegetal e a instalação de um dos eixos cicláveis com mais tráfego da cidade.

“Antes, o tempo de viagem entre o Saldanha e Entrecampos era superior a meia hora e atualmente consigo fazer em 15 minutos”, diz Diogo.

Ciclovias para cadeiras de rodas? “Não resolvem o problema”

A rede de ciclovias está longe de alcançar a extensão da rede de passeios. Para cada quilómetro de ciclovias da cidade existem cerca de dez quilómetros de passeios, mas a rede ciclável tem vindo a crescer. Em 2020, tinha cerca de 125 quilómetros e este ano a expansão teve continuidade, com a abertura de mais troços pela cidade.

Nalguns pontos, as ciclovias foram instaladas de forma rápida, sobretudo no período pandémico, sem direito a uma reforma mais profunda do restante espaço público. Onde as ciclovias apareceram, os passeios não foram, muitas vezes, adaptados.

“Há áreas onde sei que não vou, é demasiado arriscado. Sei que não vou conseguir usar os passeios e vou usar a estrada, portanto prefiro não ir”

Diogo Martins

Sem passadeiras acessíveis e sem passeios confortáveis, algumas das novas ciclovias passaram a ser alternativa para pessoas que anteriormente eram obrigadas a circular na estrada.

Idosa a utilizar uma cadeira de rodas elétrica na ciclovia da Avenida Almirante Reis. Fotografia cedida por leitor

Na Avenida Almirante Reis, têm sido vários os testemunhos fotográficos a circular nas redes sociais que mostram pessoas em cadeiras de rodas a utilizar a ciclovia ali existente.

Na ausência de passeios acessíveis e de ciclovias, muitas pessoas não arriscam sequer a viagem. “Há áreas onde sei que não vou, é demasiado arriscado. Sei que não vou conseguir usar os passeios e vou usar a estrada, portanto prefiro não ir”.

“A ciclovia, por si só, pode ser interessante nesta perspetiva de que foi feito o rebaixamento e portanto é fácil atravessar a rua, mas não deve ser vista como a solução para o problema”. Os registos fotográficos que têm sido partilhados dão visibilidade ao problema, mas a realidade, explica Diogo, é que “as pessoas [em cadeiras de rodas] utilizam as ciclovias por necessidade. Significa que os passeios estão mal desenhados”.

“As pessoas [em cadeira de rodas] utilizam as ciclovias por necessidade. Significa que os passeios estão mal desenhados”

Diogo Martins

Mário Alves, secretário geral da Federação Internacional de Peões (IFP) corrobora a visão de Diogo Martins: “estar a dizer que as ciclovias são boas para as cadeiras de rodas é sintomático dos problemas que a cidade de Lisboa tem”.

Calçada portuguesa: cadeiras que duram menos e lesões que se agravam

Na Avenida Duque de Ávila, Diogo costuma utilizar a ciclovia, principalmente quando se desloca sem companhia, porque esta artéria não tem piso confortável, como tem a Avenida da República. A ciclovia torna-lhe o percurso “extremamente mais confortável”. Mas não se trata, apenas, de uma questão de conforto. “É também uma questão de saúde”, diz, referindo-se à vibração que a calçada provoca. “Causa desgaste físico. Há pessoas que agravam lesões do corpo só por causa da calçada”, diz.

Na Avenida Defensores de Chaves, entre o “perigo” de uma ciclovia sem separação do restante trânsito motorizado, Diogo Martins prefere o passeio, apesar da irregularidade do piso e dos obstáculos que encontra.

No piso irregular da calçada, as cadeiras “duram menos tempo do que é projetado”. Uma cadeira elétrica como a que usa Diogo teoricamente dura “15 a 20 anos”, mas “em Portugal dura dez”. “Quando estamos a falar do mercado sueco ou holandês, alemão, francês, os tipos de pavimentos são mais confortáveis e as cadeiras duram muito mais tempo”.

Diogo usa também as ciclovias noutros casos, sempre que o espaço público não está adaptado. “Se perceber que tenho de fazer o quarteirão todo pela estrada, vou pela ciclovia. A ciclovia para isso serve. A questão é [que], por si só, não resolve o problema”. Faz questão de sublinhar que não as quer utilizar. A ideia de “que se resolve o problema da acessibilidade através das ciclovias é um princípio errado”. A solução está na adaptação de passeios e dos atravessamentos pedonais.

Na Avenida Duque de Ávila, Diogo escolhe a ciclovia para se deslocar, sobretudo quando não vai acompanhado, já que o passeio não dispõe de uma faixa de piso confortável, ao contrário do que acontece na Avenida da República.

O Plano de Acessibilidade Pedonal e “o peão no centro” da política

Fora do oásis da Avenida da República, Diogo coloca a luta pela acessibilidade nos termos práticos do direito à cidade. “Não precisamos de calçada portuguesa em todo o lado”, afirma. E mesmo onde ela existe e é preservada, é possível a coexistência com um piso confortável e que garante a acessibilidade a todas as pessoas. Acontece no Saldanha e em cada vez mais pontos da cidade.

A introdução deste piso foi uma das conquistas da equipa que coordenou o Plano de Acessibilidade Pedonal da cidade. Diogo, assim como outras pessoas que utilizam cadeiras de rodas, pessoas idosas, pessoas cegas, amblíopes, e pessoas surdas, foi ouvido pelos arquitetos e engenheiros deste plano municipal, cujo início de trabalho foi aprovado pela Assembleia Municipal em 2014.

O resultado do trabalho de auscultação das necessidades de vários grupos de pessoas resultou na definição de regras muito específicas para as intervenções doravante realizadas na cidade, posteriormente incorporadas no Manual de Espaço Público de Lisboa.

De cadeira de rodas, partilhar o espaço com automóveis “é perigoso. Já houve pessoas atropeladas porque ninguém respeita o facto de termos de ir pela estrada”, diz Diogo Martins. Foto: Rita Ansone

A reconversão de passeios, a adaptação das passagens de peões e a remoção de obstáculos dos canais pedonais têm, contudo, estado a acontecer a um ritmo inferior ao esperado. O plano definiu as regras, mas a sua aplicação “tem vindo a perder força”.

Também Mário Alves lamenta que o Plano tenha “desaparecido da esfera pública e da perceção das pessoas que acompanham o trabalho da Câmara Municipal de Lisboa”.

“Se começarmos a trabalhar para os peões, toda a gente beneficia”

Mário Alves

“Se começarmos a trabalhar para os peões, toda a gente beneficia”, diz o especialista. Em 2013, num dos documentos elaborados pela equipa responsável pelo Plano, coordenado por Pedro Homem de Gouveia, era lançado o desafio à cidade: “Lisboa é capaz de colocar o Peão no centro das suas políticas para a Via Pública?”.

Passados oito anos, o dirigente da IFP diz que “o que se nota não é isso. Não houve de facto enormes investimentos na mobilidade pedonal. Houve alguns projetos bandeira, por exemplo no Uma Praça em Cada Bairro, mas teria de haver muito mais e muito melhor comunicação dos objetivos”.

Há cada vez mais passadeiras acessíveis na cidade, como esta, no Cais do Sodré. Mas, entre as cerca de 9800 passagens de peões espalhadas por todo o concelho, apenas uma pequena parte foi adaptada. Mário Alves e Diogo Martins pedem mais investimento.

Em termos estatísticos, “os peões são 100%” das pessoas. Talvez por isso, sugere, “acabam por não ter uma identidade política” como acontece com os automobilistas ou com os utilizadores de bicicleta.

A atenção política prometida pela autarquia lisboeta à acessibilidade pedonal tem perdido fulgor nos últimos anos e continua, hoje, por concretizar-se, considera o dirigente da organização internacional que representa os interesses das pessoas que se deslocam a pé, mas também em cadeira de rodas.

O caminho para uma maior atenção mediática na questão da promoção da acessibilidade pode passar por seguir uma estratégia idêntica à seguida na promoção da bicicleta enquanto meio de transporte – quantificar as intervenções, traçar objetivos numéricos. “Dizer que 300 passadeiras foram adaptadas, 30 passeios contínuos foram feitos”. “Há métricas que podem ser feitas e pode haver toda uma comunicação em torno dos passeios”, diz.

Almirante Reis e uma carta por uma avenida para as pessoas

Diogo considera que a adaptação e a reconfiguração dos espaços da cidade deve acontecer a partir de processos de participação cívica, capazes de auscultar as várias partes interessadas e as necessidades específicas de vários grupos de lisboetas. Foi exatamente por isso que o Centro de Vida Independente assinou a Carta Aberta: Almirante Reis, uma linha verde.

O documento, assinado por mais de quatro dezenas de associações e movimentos cívicos, entre os quais se encontram associações em defesa da bicicleta, associações de pais e coletivos de defesa do ambiente, reivindica a abertura de um processo participativo para a reformulação da avenida e é contra a eliminação da ciclovia daquela artéria – uma das promessas eleitorais de Carlos Moedas – até que seja encontrada uma alternativa segura.

Na Avenida Almirante Reis, a ciclovia tem sido o alvo da contestação, sobretudo por parte de quem defende a manutenção da primazia automóvel. “Não entendemos que a ciclovia esteja mal, a questão é que a ciclovia, por si só, não resolveu o resto dos problemas. Continuamos a não ter passeios acessíveis [e] os acessos aos edifícios e lojas que existem na zona também não estão acessíveis”, diz Diogo.

A criação de ciclovias e a reformulação do espaço público, dotando-o de condições de acessibilidade, deve acontecer “ao mesmo tempo”, afirma. “Ambas [as intervenções] são importantes e complementam-se”.

Para trás, num debate que tem ocupado espaço mediático, parecem ter ficado os direitos dos peões. A 19 de Outubro, um dia após a tomada de posse do novo executivo camarário, liderado por Carlos Moedas, realizou-se uma marcha, a pé e de bicicleta, em defesa da ciclovia da Avenida Almirante Reis e de “uma cidade mais humana, inclusiva e sustentável”. A manifestação juntou centenas e terminou em frente à Câmara Municipal de Lisboa, na Praça do Município, com gritos por “mais ciclovias!”.

Para ouvir:

Na chegada à Praça do Município da marcha “Viva a cidade para todas as pessoas”, realizada no passado dia 19 de outubro, ouviam-se gritos de “bicicletas!“. Foto: Rita Ansone

Mário Alves, defensor da bicicleta enquanto meio de transporte, não deixa de apontar uma crítica ao anterior executivo municipal, por ter dado “grande prioridade às ciclovias”, quando, considera, deveria ter colocado o centro da ação política “muito mais ligado à estratégia pedonal”. “Quem estivesse de fora, parecia que a câmara municipal estava a dar o centro da mobilidade às bicicletas”, diz.

A carta aberta defende a existência de uma ciclovia na Avenida Almirante Reis, considerada um de dois eixos principais que permitem subir a cidade sem grandes declives, mas junta muitas outras entidades que pedem uma reformulação da importante artéria lisboeta, para diminuir a presença do automóvel, “desmontar a polaridade automóveis-bicicleta”, promover a qualidade do espaço público e o acesso a espaços verdes, bem como solucionar o excesso de ruído e garantir a acessibilidade pedonal.

A luta pela ciclovia e pela acessibilidade pedonal pode ser uma luta comum, travada em uníssono pelas várias partes interessadas. É o que transmite Diogo, que sempre sentiu “muito apoio” na sua luta pela acessibilidade por parte das pessoas e movimentos ligados à defesa da bicicleta.

Diogo Martins na ciclovia da Avenida Duque de Ávila. Foto: Rita Ansone

No passado dia 2 de dezembro, apoiantes de várias associações e coletivos signatários da carta aberta entregaram, na Assembleia Municipal de Lisboa, cerca de 2900 assinaturas pela promoção de um processo participado na reformulação da Avenida Almirante Reis.

Nível de utilização automóvel “é um dos grandes problemas”

O Centro de Vida Independente decidiu assinar a carta aberta pela Avenida Almirante Reis, não só por reivindicar um processo participativo para a reformulação daquele eixo, mas também por defender a existência da ciclovia, por garantir a segurança a quem escolhe a bicicleta como meio de transporte, mas também por permitir “retirar a quantidade de carros” ali existente.

A excessiva presença automóvel na cidade é, explica, “um dos grandes problemas” para quem se desloca em cadeira de rodas e as ciclovias são “a única medida efetiva, a par do transporte público, que faz a chamada evaporação do tráfego automóvel” – o processo de diminuição da presença do automóvel que se verifica em determinadas artérias quando é removido espaço a este meio de transporte.

“A partir do momento em que baixamos o número de automóveis, aumentamos imensamente o conforto das cadeiras de rodas”

Mário Alves

“A partir do momento em que baixamos o número de automóveis, aumentamos imensamente o conforto das cadeiras de rodas, dos cegos e amblíopes que têm de atravessar a rua e dos peões em geral”, diz Mário Alves, apontando para a importância da implementação da Zona de Emissões Reduzidas (ZER), anunciada em 2020 para a Avenida da Liberdade, Baixa e Chiado.

A redução da presença automóvel ajudaria a resolver a questão da acessibilidade, afirma o dirigente da Federação Internacional de Peões, até porque, diz, com velocidades baixas e com a limitação do acesso automóvel “as pessoas deixam de ficar confinadas ao passeio”.

Para o novo executivo municipal, Mário Alves considera que o retomar do trabalho anteriormente desenvolvido pela equipa do Plano de Acessibilidade Pedonal “poderá ser uma das obras deste mandato, se assim quiserem”.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

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3 Comentários

  1. Na minha rua,a Cláudio Nunes,em Benfica,que tenho de descer para apanhar transportes,os passeios estão ocupados por carros,de um lado ,do outro estão todos tortos e escorregadios,sofro da coluna, só me sinto segura a descer pela faixa dos carros

    😄

  2. Entre aqueles que defendem uma melhor cidade, e não apenas mais ciclovias, parece haver um consenso: há carros a mais! O anterior executivo deu alguns passos muito tímidos para abordar esse que é o verdadeiro problema da mobilidade em Lisboa. Deste novo executivo, os sinais vindos do programa que levaram a eleições são muito negativos. Transportes públicos gratuitos pouco ou nada fazem para reduzir deslocações em automóvel; borlas no estacionamento apenas contribuem para aumentar essas deslocações.
    Espero estar enganado, mas parece-me que tempos mais negros aí vêm para os peões (e sobretudo as pessoas de mobilidade reduzida) que, como de costume, são os mexilhões neste universo da mobilidade.

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