O meu pai, que trabalhou muitos anos para a Aeronáutica Civil, dizia que tinha ido mais vezes a Paris do que ao Porto. E eu, que aos doze anos ainda não tinha saído de Portugal senão para ir comprar alpergatas e caramelos a Badajoz, gabava-me mesmo assim de conhecer uma parte significativa do mundo sem precisar de me meter no avião.

Não, não falo ainda dos livros, que haveriam de levar-me positivamente a todos os lugares, mesmo aos que não existem; falo de algo muito menos provável: as pastelarias de uma certa Lisboa por onde eu circulava. Mas o melhor é começar pelo princípio.

A comida do refeitório do meu colégio era monótona e de qualidade duvidosa; repetia-se a cada semana o arroz de salsicha, uns bifes cheios de nervos e duros como solas, os croquetes feitos provavelmente com os restos desses bifes, uns ovos que vinham em forminhas e não se percebia se eram cozidos, se escalfados; e, à sexta-feira, dia de peixe, o invariável bacalhau com grão, salgado e cheio de peles.

Depois de muitas queixas, a minha mãe e a mãe da minha melhor amiga lá nos deram autorização para, nos dias em que não tínhamos tempo de ir a casa, comermos num dos cafés perto do colégio – o que, de resto, constituiu o nosso primeiro passo para a liberdade e nos levou a dar a mais doce volta ao mundo.

Começámos logo pelo Brasil, experimentando os excelentes palmiers recheados da pastelaria Pão-de-Açúcar, numa esquina da Alameda Afonso Henriques, e os não menos interessantes palmiers cobertos da Copacabana, na Guerra Junqueiro.

Provámos os garibaldi da Mexicana e comemos tarte de maçã no então moderníssimo Café de Paris, na Praça de Londres. Antes ainda da Avenida João XXI (onde também às vezes íamos à Zurique), a escolha era múltipla: podíamos sentar-nos a uma mesa no barulhento café Roma para um babá, provar um gelado cheio de chantilly no snack-bar Londres, junto à sala de cinema, ou atravessar simplesmente a rua e entrar na Capri, onde os guardanapos com doce de ovos faziam as nossas delícias.

Embora não tivéssemos licença das mães para nos afastarmos muito mais, por vezes passávamos o Luanda e íamos até à Sul-América, já perto da Praça de Alvalade, para umas pirâmides de chocolate divinas. Nem sei como não engordámos.

Por qualquer estranha coincidência, os donos dos cafés baptizavam-nos com nomes de cidades e países estrangeiros; perto da casa onde eu morava, as pastelarias também se chamavam Ceuta ou Versailles; e, quando eu ia com a minha mãe à Baixa, lanchávamos ora na Suíça, ora na Brasileira.

O cantautor espanhol Joaquín Sabina tem uma canção admirável sobre uma noite escaldante com uma rapariga – «Ya nos dieran las diez», para quem quiser ouvir –, na qual o homem, regressando um ano depois à mesma vila, procura o bar onde tudo aconteceu, mas encontra no seu lugar uma sucursal do Banco Hispano-Americano…

O que me trouxe hoje à geografia dos cafés da minha adolescência foi justamente isso: a consciência de que quase todos desapareceram, substituídos por agências bancárias ou – o que é pior – catedrais de fast food: tal como a Sul-América é hoje um Burger King, na Avenida da República a Pastelaria Colombo, que celebrava a viagem do descobrimento da América nuns belíssimos frescos pintados a toda a volta da sala, tornou-se um McDonald’s de paredes vazias.

Contaram-me que uma senhora de idade que vivia num solar na província, sempre que vinha a Lisboa lanchava na Colombo, onde lhe serviam chá e scones. Tendo estado muito tempo sem vir à capital e não sabendo da mudança, foi, de resto, para lá que pediu ao motorista que a levasse quando, por fim, regressou à cidade; e, embora ele, ao chegar, se apercebesse da calamidade e lhe explicasse que já ali não funcionava a Colombo, ela insistiu em entrar e ver com próprios olhos. Demorou-se bastante tempo e, quando saiu, contou-lhe que lhe tinham dado um pãozinho de leite com um bifinho raspado que até não estava mau de todo, mas que tinha saudades dos scones quentinhos… E eu dos frescos.


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.

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2 Comentários

  1. E nunca foi ao Pote comer cadelinhas?
    Numa cave da João XXI. E a Cinderela rés/chão num prédio pink não é do seu tempo?
    Gosto muito das suas crónicas. Grata.Beijinho.

    fmorais46@gmail.com

  2. Muito boa tarde.
    Gostei do que li e Lembrei-me de lhe perguntar se por acaso não tem por aí nenhuma foto da pastelaria Capri. Ficava frente ao Roma, do outro lado da avenida claro.
    Era miúdo quando o frequentava e lembro-me de esperar com a minha mãe, numa mesa dessa pastelaria, pelo meu pai, que trabalhava numa empresa de construção no mesmo edifício, a Ortécnica e que devorava Merengues quando chegava ao pé de nós. Sei que o dono era sócio de um outro senhor que veio mais tarde a abrir a pastelaria Londres, virada para a Praça de Londres.
    Tenho procurado por todo o lado mas nem uma foto consigo encontrar dessa pastelaria. Gostava de rever o local tal como ele era nessa altura, (anos 60/70).
    Como dizia o poeta:
    Deixamos algo de nós para trás ao deixarmos um lugar, permanecemos lá apesar de termos partido.
    E há coisas em nós que só reencontramos lá voltando.
    Viajamos ao encontro de nós ao irmos a um lugar onde vivemos uma parte da vida, por muito breve que tenha ela sido.
    “Amadeu de Almeida Prado”
    Atentamente
    Paulo Almeida

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