Nos parapeitos das janelas do bairro, os adultos olham desconfiados para o que se faz lá em baixo. Crianças e jovens do PER 11, na Alta de Lisboa, serram madeira, empilham baldes de plástico e pintam voltados para o sol, do lado do bairro onde há paisagem sobre o resto de Lisboa. Arquitetam, em conjunto, qualquer coisa que os mais graúdos ainda nem desconfiam.
Dias antes andavam de carrinhos de compras na mão a vaguear pelo bairro e pelas redondezas. Chegaram com lixo, muito lixo – ou aquilo que achamos ser lixo.
O maestro desta ação? Klemente Tsamba, ator, músico e artista plástico.

O moçambicano exerceu em bandas de música tradicional africana, grupos de dança hip-hop e fez teatro de rua. Há vários anos que trabalha com instituições socioeducativas em oficinas de criatividade para crianças e jovens, para pagar uma dívida à infância dele e de todos.
“Em África, muitas crianças usam o lixo como matéria prima para criar os seus brinquedos, porque às vezes não têm como adquiri-los. E com o lixo é possível criar um pouco de tudo, desde carrinhos de mão a instrumentos. Desde os tempos de criança que eu fazia isso com instrumentos. E estou a trazer essa infância para aqui”, onde a necessidade, por vezes, também é muita.
A memória daqueles dias quentes em Malhangalene, bairro da cidade Maputo, capital de Moçambique, onde Klemente nasceu, viajou até ao PER 11 com uma missão: a partir da recolha de lixo, empoderar a criatividade destes jovens e ajudá-los a construir instrumentos de percussão.
São tambores, baquetas, chocalhos ou djambés.



Tudo começa no bairro – onde, com carrinhos, recolheram tanto material deitado ao chão -, continua no bairro – onde os paus de vassoura estão a virar baquetas -, mas termina no Festival Iminente, onde vão apresentar-se com um espetáculo de percussão.
O festival, que este ano acontece nos dias 14 e 15 de outubro, no Terreiro do Paço, decidiu há vários anos que queria ser mais do que um evento que dá palco à cultura urbana por umas horas. Por isso, tem levado artistas conceituados e emergentes a cinco bairros de Lisboa, com o Projeto Bairros, para uma partilha inédita de experiências e de transformação real, através da arte. Na Quinta do Loureiro (Vale de Alcântara), no PER 11, no PER 7 (Alta de Lisboa), no bairro do Rego (Avenidas Novas) e na Quinta do Lavrado (Vale de Chelas).
Leia as reportagens sobre estes workshops noutros bairros:
A (outra) arte que uniu o PER 11
Klemente traz a música e as artes plásticas. Mas, em tempos, a arte que uniu este bairro foi outra e começou por um morador: Mauro Wah.

Quando, no início do milénio, todos foram obrigados a mudar do chamado bairro de barracas e casas precárias, Mauro estranhou o silêncio. O correr desajeitado e sem medo das crianças na rua, o burburinho à volta dos carros onde se partilhava a vida em conversa e a gritaria entre janelas, como quem chama por alguém na mesma casa. Nada disso fazia já parte deste novo bairro, o PER 11.
PER é o que ficou conhecido como o Programa Especial de Realojamento: prédios de vários andares, em betão, partilhados entre pessoas que até então viviam nas mesmas condições. Cada bairro novo ganhou o seu número. Este é o 11. O mesmo número de jogadores necessários para formar uma equipa de futebol, o desporto através do qual Mauro combateu o silêncio das ruas.
Aqui, criou uma associação para devolver as crianças ao barulho da brincadeira, ensiná-las e amparar-lhes o futuro.
“É fácil dizer: ‘vai brincar lá para fora’. Mas se tu não conheceres ninguém, não tens ninguém que te consiga encaminhar…” Os maiores perigos nascem nesta infância frágil e largada ao acaso. “Acredito que eles acabam por tomar outro tipo de caminhos.”
Sobretudo num bairro dividido pela etnia e pela droga, como este foi em tempos.
“Como o PER 11 é uma mistura de vários bairros, o princípio foi complicado, foi quase um choque de civilizações. Temos uma comunidade cigana aqui de Santa Clara que até conhecíamos bem, mas veio uma da Ajuda que chegou com uma postura de ‘isto é nosso’. O pessoal do meu bairro até era muito calmo e deixou andar. Até certo ponto”, conta Mauro.
Seguiu-se o choque e o bairro dividiu-se em vários.
RECORDE AQUI A HISTÓRIA DO REALOJAMENTO NO PER 11
As crianças de etnia cigana estavam proibidas de brincar com as de pele mais escura e vice-versa. Por isso, as ruas silenciaram-se, com a vida a acontecer confinada dentro de portas. Já não era um bairro. De bairro já só tinha o nome.
Até que Mauro questionou-se: “Porque é que tem de ser assim? Nós não somos tão diferentes uns dos outros, sendo brancos, negros ou ciganos. Somos pessoas, no final.”
Com experiência junto de crianças, devido à mentoria que exercia em colónias de férias da freguesia, estava certo de que seria fácil unir as do bairro em torno de uma bola de futebol. Um dia, desceu a escadaria do seu prédio e desafiou algumas delas que passavam na rua. Na pressa com que aceitaram o desafio havia a memória de Cristiano Ronaldo e de Messi, ídolos de competição que os faziam sonhar com as redes da baliza rasgadas por golos de bicicleta ou no ângulo impossível.
“Mas sabem o que é jogar à bola?”, perguntou-lhes Mauro. “Não é só correr pelo campo e chutar. Têm de se saber comportar, tem de haver regras.”
E aqui disse logo ao que vinha: mudar a vida das novas gerações. Para jogar futebol, todos teriam de aprender a conviver uns com os outros e correr – porque sem trabalho não se marcam golos. Cada vitória é precedida de empenho e espírito de equipa, ensinou-lhes.

O resto esperou calmamente ver acontecer, confiante de que aconteceria: passados uns dias, o barulho regressava às ruas, batia e ecoava nas paredes dos prédios ali pousados serenos.
O campo começou a ficar rodeado de crianças. “Das vezes em que vinha para aqui, com os miúdos, acabamos por ver a comunidade cigana à volta do campo a olharem e queriam todos jogar.”
Ninguém quis ficar de fora do 11 de Mauro.
Primeiro, vieram os miúdos. Depois, os graúdos. À volta de uma bola, uniram-se as comunidades que ali residiam de costas voltadas. “Começou tudo ali. O nosso espaço de reunião era o campo de futebol. E conseguindo trabalhar os miúdos, acabas por trabalhar os pais. Os miúdos têm ‘bué’ força neste sentido.”
Então, Mauro fez do discurso uma arma. “Eu disse-lhes: ‘vocês são todos iguais para mim; não quero saber se tu és branco ou cigano’. Então, a comunidade cigana olhou para mim e colocou-me no ponto zero. ‘Ele não é nem mais nem menos, não faz mais para uns ou menos para outros’. Era o que diziam.”
Como um Big Bang no Espaço, tudo o que há hoje aqui eclodiu a partir deste ponto.
Levar a lição para o Iminente… e para casa
Na associação, Mauro instaurou uma regra mor: para brincar, dentro ou fora, há que trabalhar primeiro. A fazer cópias ou a ler em voz alta. Só assim têm acesso aos treinos de futebol, a aulas de dança, ao comando da Playstation ou às bicicletas. Assim como ao workshop do artista Klemente Tsamba, onde o drible é outro: transformar um “nada” em “tudo”.
Lá fora, Klemente dá-lhes permissão para serem um bocadinho mais do que crianças e exercer atividades de adultos, como ser carpinteiro, serralheiro ou pintor. Tudo para que o lixo pareça cada vez menos lixo e cada vez mais um instrumento que ressoa em todo o PER 11 – e, dia 14 e 15 de outubro, no Iminente.
Talvez depois os graúdos já não se debrucem sobre as janelas, a estranhar o que está para vir. É que “os miúdos já levam a lição para casa”: zero desperdício, remata o artista Klemente.
O Festival Iminente, com a edição Iminente Takeover, acontece nos dias 14 e 15 de outubro, no Terreiro do Paço, com entrada livre. Consulte aqui o cartaz.
A Mensagem é parceiro oficial.

Catarina Reis
Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.
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