Branco, cinzento e amarelo são as cores habituais de quaisquer garagens, subterrâneas ou não, de um prédio em Lisboa – cidade onde o estacionamento é um debate sério e as garagens poucas para fazer frente ao número de carros que por cá andam. Independentemente da sua forma e cor, há uma ciência certa nas poucas garagens que existem: costumam estar acessíveis aos moradores, são morada de carros, motas e até arrecadações. Ou, pelo menos, é o que se espera.

Mas não era isso que acontecia neste bairro da Alta de Lisboa até ao ano passado. E esse detalhe estava a afetar uma comunidade inteira.

A entrada da garagem na Rua Vasco da Gama Fernandes, no PER 7, um bairro municipal de realojamento, esteve durante muito tempo entijolado e sem acesso pelo interior dos prédios, quer a carros quer a pessoas. À semelhança do que acontece em vários bairros municipais.

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A garagem do PER 7, em 2022. Foto: Inês Leote

Os sonhos para este lugar foram crescendo, como a de criar ali um lugar de convívio para a população do bairro que praticamente só se servia dos passeios à face da estrada para o fazer, mesmo nos invernos mais frios.

Não era assim no Bairro da Quinta Grande, de onde muitos vieram realojados no âmbito do Programa Especial de Realojamento, uma iniciativa nacional do Governo que previa erradicar as chamadas “barracas” nas cidades. Com a transição de casas para prédios, e sem um lugar para se encontrarem, o espírito de vizinhança estava a perder-se.

O PER 7, ainda hoje carinhosamente chamado pelo nome do bairro de onde tantos vieram realojados: “BQG” ou “Bairro da Quinta Grande”.

Até que, em 2022, a Associação de Moradores Bairro da Quinta Grande (nome do velho bairro de onde muitos vieram realojados) conseguiu fazer desta garagem, antes inacessível, a sua sede. O lugar onde também está a fazer nascer um estúdio de música.

Mas o piso -1 era ainda um diamante por lapidar. Até que o artista Vhils, Alexandre Farto, foi chamado a transformá-lo, através do Projeto Bairros, do Festival Iminente, que ele fundou e que volta dia 14 e 15 de outubro, no Terreiro do Paço.

Neste projeto, artistas conceituados e emergentes juntam-se a crianças e jovens de cinco bairros de Lisboa para uma partilha inédita de experiências e de transformação real, através da arte. Na Quinta do Loureiro (Vale de Alcântara), no PER 11, no PER 7 (Alta de Lisboa), no bairro do Rego (Avenidas Novas) e na Quinta do Lavrado (Vale de Chelas).

Embora com mais espaço e menos pó que há um ano, não era a primeira vez que aquela garagem recebia um workshop – na última edição do projeto, em 2022, improvisou-se um estúdio para o artista Batida, onde se trabalharam sons para apresentar no Festival Iminente.

Desta vez, foi Vhils a sua marca no PER 7.

Foto: Inês Leote

O diamante em bruto que Vhils ajudou a lapidar

“Recebemos isto vazio e começámos por usá-la como arrecadação. Agora já temos luz e o cantinho de cada um – o estúdio de gravação, a zona de convívio, o bar, a zona do DJ. Agora só falta mesmo decorar.” Quem o diz é Soraia, uma das dirigentes da Associação, que é designer e gere uma empresa de decoração de festas – talvez a pessoa mais ansiosa por ver o espaço ganhar cor.

Vhils conhece a luta da Associação e a evolução desta sede. Quis deixar o seu cunho numa das paredes ao esculpi-la, como é habitual nas suas obras, com rostos inspirados em fotografias. “E se envolvesse as verdadeiras caras do bairro? Se fizesse um workshop comunitário?”, pensou.

Vídeo: Inês Leote

O artista quis garantir que o processo de criação seria o mais colaborativo possível e, para isso regressou a uma técnica antiga: usar camadas de cartazes publicitários. Neste caso, e simbolicamente, reutilizaram-se cartazes de edições anteriores do Projeto Bairros e também de convocatórias do Movimento “Vida Justa”, que saiu à rua em fevereiro e outubro deste ano contra o aumento dos preços e pelo direito à habitação.

Duas semanas de trabalho conjunto resultaram numa grande composição de 31 rostos.

A equipa do Vhils Studio encarregou-se da primeira parte: fotografar e editar, com as indicações do artista, “e depois a malta do bairro ajudou a recortar e colar sobre a imagem projetada”. “No fim, o Vhils deu mais alguns toques.”

A técnica de billboard usada por Vhils consiste na remoção de camadas de vários cartazes publicitários sobrepostos. Como se tratou de um workshop, para facilitar, inverteu-se o processo: a obra final resultaria da sobreposição de camadas de papel, recortadas à medida. Fotos: Inês Leote

Um retrato de família

Os sorrisos que decoram a parede de entrada da garagem fazem-nos querer saber mais. Há ali 31 nomes e 31 histórias que se cruzam quase desde nascença. “São quase todos da minha família”, diz Soraia, que chegou àquele bairro com apenas dois anos.

Aos 26 anos, Soraia é designer, decoradora de festas e dirigente da Associação que lutou por um espaço comunitário no bairro. Foto: Inês Leote

A designer aponta para a obra como se de uma árvore genealógica se tratasse e apresenta a família: “É a Thaís, a minha tia Andressa, o Hugo, o meu avô, a tia Titi, a tia Natália, o Nuno, com o boné do ‘BQG’, e o Gilberto – nós chamamos-lhe Gil ou Foca, mas também é o Deejay Emotion.”

Rapaz de várias alcunhas, é com a emoção que Gilberto assina a parede finalizada: por cima da assinatura de Vhils, escreveu “EMOTION”. Que é sentimento que não falta a esta história: as barras e as batidas que pulsavam nos estúdios caseiros do bairro e juntavam jovens como Gil, com o sonho de vingar na música, podem agora descer livremente àquela garagem, onde está a nascer um estúdio de gravação. Ali há lugar para os seus sonhos de miúdo – e de muitos outros miúdos do bairro.

Foto: Inês Leote

É com algum alívio que Gilberto pensa no futuro do seu filho Diogo, de apenas dois meses. “As condições vão ser melhores, vai ter onde ficar no tempo livres e descobrir o que gosta de fazer”, diz o Deejay, que se descobriu através da música quando frequentava a Ludoteca, entretanto encerrada, e a Associação Raízes. “Os computadores não tinham grande qualidade para gravar sons, mas os miúdos aqui vão saber o que é bom material”, quer queiram ser cantores, produtores ou DJs.

Mas nem só de artistas se fez esta geração.

“Havia um grupo de desportistas de atletismo e um grupo mais ligado ao futebol, como o Renato Sanches. Mas, nas ruas, porque não tínhamos onde conviver, o que nos unia era a música, os sons africanos. Todos gostavam de rap, kizomba, house… Agora podemos ouvir juntos aqui.”

Deejay Emotion, conhecido como Gilberto ou Gil
Jayson, o irmão de Renato Sanches, sabe que terá um lugar de convívio nesta garagem que ajudou a decorar. Foto: Inês Leote

Não ter um espaço de convívio adequado e protegido, principalmente nos dias chuvosos e frios de inverno, foi uma realidade para muitos dos rostos desenhados naquela parede. Mas essa luta está vencida.

Agora, sabem que há outras por travar.

A vida desta grande família do PER 7 tem outras complicações, tal como outros bairros sociais e de realojamento, principalmente na periferia de Lisboa. Na obra final de Vhils pode ler-se: “salários para viver”, “casas para as pessoas”, “limitar preços”, “vida justa”.

Nestes bairros, encara-se de frente com os problemas no acesso à habitação, na manutenção dos edifícios, nos acesso a transportes públicos, na oferta de serviços, na urbanização do espaço público, entre outros.

Foto: Inês Leote

A obra, instalada ali durante as últimas semanas, vais ficar na Associação. Mas, a partir dela, o Vhils Studio vai criar uma série de duas obras e levá-las para o centro de Lisboa: as angústias e conquistas dos BQG vão invadir o Terreiro do Paço no fim-de-semana de 14 e 15 de outubro e o coração de Lisboa vai pulsar ao ritmo das periferias.

Como sempre pulsou em casa de todos os que, com a ajuda da Associação de Moradores Bairro da Quinta Grande e do Vhils, têm agora um diamante por manter.

O Festival Iminente, com a edição Iminente Takeover, acontece nos dias 14 e 15 de outubro, no Terreiro do Paço, com entrada livre. Consulte aqui o cartaz.
A Mensagem é parceiro oficial.


Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.


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