Como um pai que perde as estribeiras e pede aos filhos que por momentos esqueçam também eles tudo o que aprenderam sobre boa etiqueta, o artista Fiumani deu o grito de partida para as crianças e jovens do bairro Quinta do Loureiro com um pedido insólito na vida deles: “Partam os brinquedos!”
Não antes de olharem e brincarem uma última vez com os pequenos exemplares de Fórmula 1 e serviços de cozinha miniaturas de plástico. E, de repente: zás! Num instante, os pequenos carros já não tinham rodas e ao martelo também não escaparam as casas de bonecas.

Até para desfazer o que tanto gostamos é preciso regras, ensina Fiumani: não pedaços muito pequenos, “por favor”, o que só os tornaria mais difíceis de agarrar os brinquedos de novo. É que a missão aqui não é criar mais lixo, mas prevenir que aquilo que é velho e já não usamos não termine numa lixeira e sim numa instalação artística neste bairro do Vale de Alcântara.
Este é um dos vários workshops que o Festival Iminente tem levado a cinco bairros de Lisboa, através do Projeto Bairros. Na Quinta do Loureiro (Vale de Alcântara), no PER 11, no PER 7 (Alta de Lisboa), no bairro do Rego (Avenidas Novas) e na Quinta do Lavrado (Vale de Chelas), artistas conceituados e emergentes juntam-se a crianças e jovens para uma partilha inédita de experiências e de transformação real, através da arte.
Fiumani trouxe uma espécie de manifesto contra o desperdício.
A parede do bairro que era branca e que virou espelho
“Estou a falar e estou a ver aí um copo de plástico.” O bairro da Quinta do Loureiro parece ser terreno fértil para Fiumani, atento ao lixo que o rodeia. É que, por aqui, como em muitos bairros sociais de Lisboa, a falta de limpeza é queixa comum por parte dos moradores, que tantas vezes se sentem esquecidos na gestão da cidade.
É altura de nos olharmos ao espelho – é o apelo que o artista deixa neste bairro: numa parede vazia nas traseiras do prédio, Fiumani desenhou duas silhuetas, uma limpa e outra sobre a qual ele e os jovens da Quinta do Loureiro pregaram os brinquedos velhos e partidos.
Como se o Homem se olhasse a si próprio e visse como aquilo que deita ao chão volta para ele. “Vai voltar para nós, através das plantas, dos animais”, remata Fiumani.





Fotos: Rita Ansone
Das ruas de Itália a Lisboa, a transformar lixo
Para o italiano Fiumani, de 35 anos, é como regressar à infância nas ruas de Itália, onde nasceu e cresceu.
Primeiro, vieram o graffiti e o skate como paixões de um jovem que gostava de explorar a cidade. Depois, aos 17 anos, começaram as instalações artísticas urbanas com lixo. “Começou por necessidade”, como o único recurso disponível, e “depois seguiu de forma artística.” Fiumani até “mergulhava” para dentro de aterros para escolher as melhores peças, sempre fascinado como se descartava tão facilmente coisas nas quais ainda via grande valor.
De um dia para o outro, o lixo começou a aparecer pendurado nas ruas. Em Itália e no mundo, deixando marcas em lugares portugueses como Serpa e Figueira da Foz, com obras licenciadas. Em Lisboa, por ser ilegal, muitas das obras acabaram desaparecidas.
Essa face da sua infância nunca terminou e, hoje, este é um dos ofícios do artista multidisciplinar, que deixa a visão crítica em vários tipos de arte: além da urbana, na fotografia, no vídeo e no teatro – tornando-se recentemente uma estrela da Netflix, o rosto de um dos traficantes de droga da série portuguesa “Rabo de Peixe”.
Não foi para ser uma estrela da Netflix que Fiumani chegou a Portugal, isso aconteceu por acaso, no meio da sua excursão pelo mundo como artista. Em 2011, aterrou em Lisboa e hoje já não sabe quando parte.
O Festival Iminente, com a edição Iminente Takeover, acontece nos dias 14 e 15 de outubro, no Terreiro do Paço, com entrada livre. Consulte aqui o cartaz.
A Mensagem é parceira oficial.

Catarina Reis
Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.
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