Quem conhece a rua da Conceição sabe que esta sempre foi a rua das retrosarias em Lisboa. Aliás, já houve um tempo em que teve mesmo esse nome: rua dos Retroseiros. Famosa pelas retrosarias que a corriam de uma ponta à outra, entre a rua do Ouro e a rua dos Fanqueiros, a rua da Conceição fervilhava com clientes que aqui vinham comprar linhas, botões, agulhas, dedais… Era um porto seguro dos lavores, e curiosíssima mesmo para quem não costurava.

Ora, tal como as linhas e botões deixaram de ter tanta procura, substituídos pela moda rápida e as compras na internet, hoje a rua da Conceição é mais um retrato de um mundo a acabar em Lisboa. Ainda há uns anos havia aqui 15 retrosarias. Hoje, são apenas quatro.

“Há 30 anos, não se podia estar aqui a conversar porque a casa estava superlotada. Às nove horas da manhã faziam fila as modistas para virem escolher os botões, os fechos, as linhas. Era um vaivém!”, recorda Alfredo Ricardo, há 70 anos à frente da retrosaria Alexandre Bento & Lda, uma das que não fechou. Guilherme Pais, há 60 anos à frente da Adriana Coelho, desabafa: “Nós vamos sobrevivendo.”

O termo retro-saria é enganador. Nada tem a ver com passado – retro – como parece indicar: o dicionário da Porto Editora diz as retrosarias são as “lojas dos retroseiros”, aquele que vende “retrós” (fio de seda ou conjunto de fios de seda torcidos) e “outros artigos para a costura”. Mas hoje, esse é o sentimento que passa nesta rua.

O fim do mundo das retrosarias

O cenário é incrível, mesmo para quem passa de carro. As retrosarias que durante anos e anos brilhavam com as suas montras cheias de cores e passamanarias são agora lugares fechados, entaipados, em ruínas ou dedicados a outros negócios. Alguns exemplos:

  • Nº 39 – Era a retrosaria Lara, hoje é uma loja de souvenirs
  • Nºs 60-64 – Retrosaria Nardo (aberta);
  • Nºs 67-66 – Alexandre Bento, LDA. (aberta);
  • Nºs – 71 –77 – Era a Retrosaria Grilo, está um hotel em construção;
  • Nºs 79-81 – Era a Luís S Fernandes, edifício fechado;
  • 83 – Arquichique, edifício fechado  
  • 89 – Mário Ramos Lda. (fechada para obras);
  • 91 – Retrosaria Bijou (aberta);
  • Nºs 93-95  –Retrosaria JR da Silva, edifício fechado ;
  • Nºs 121-123 – Adriano Coelho (aberta);

As explicações são várias. As mais habituais têm a ver com o imobiliário: a venda das propriedades, ou o desinteresse pelo negócio devido à subida das rendas.

No caso da Arquichique, por exemplo, José Vilar, que é ainda também responsável pela retrosaria Bijou, aberta, explica que “os prédios foram comprados na altura em que a Tranquilidade se desfez dos bens imobiliários. Essa venda trouxe novos patrões, portanto, que pretendem também ter a maior disponibilidade possível do espaço.”

“Estas retrosarias que fecharam aqui, não digo todas, mas a maior parte foi por causa da venda dos imóveis. Isto está tudo vendido até à rua Augusta, para hotéis e empreendimentos”, diz Alfredo Ricardo, da Alexandre Bento & Lda.

A retrosaria Biju (ainda aberta) com as outras duas que fecharam, ao lado. Foto de António Bívar, 1955 no Arquivo Municipal de Lisboa.

Guilherme Pais ( da Adriano Coelho) queixa-se da pressão dos senhorios, e das rendas que subiram com o passar dos anos – embora paguem entre 400 a 500 euros de renda, algo muito abaixo dos preços atualmente pagos no mercado, porque estão protegidos com a designação de Loja com História. “Sentimos pressão para fazerem hotéis e residências”, conta Guilherme.

Além disto, também há outra questão: os comerciantes que assumem funções nestas retrosarias já aqui trabalham há largos anos, sem que ninguém lhes suceda. “A Arquichique, por exemplo, tinha uma empregada com 82 anos, que já estava reformada e gostava de trabalhar, mas já não conseguia gerir a loja”, conta José Vilar.

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Rua da Conceição em 2022 e 2009.

Ser uma Loja com História num mundo a mudar

As retrosarias são obviamente protegidas pelo programa “Lojas com História” – que impede as rendas de subir durante os anos em que vigora o acordo – além de insenções fiscais. Mas nem sempre é suficiente.

Até porque aqui, não é só uma questão urbanística, ou de pressão imobiliária que está em causa. Há um problema de modelo de negócio e de… mundo a mudar. No universo da fast fashion e da roupa barata, quem ainda costura? Pense: há quanto tempo não troca um fecho ou cose um botão?

Hoje, são poucos aqueles que recorrem a uma retrosaria: “As retrosarias começaram a morrer com o surgimento do pronto-a-vestir”, diz Alfredo Ricardo. Nessa altura aconteceu o desaparecimento de profissões como a das modistas ou costureiras.

“Consumidores, cada vez há menos”, diz Guilherme Pais. “Os turistas costumam aparecer, mas grandes consumidores são mais os costureiros, os estilistas…”.

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A Luis Fernandes, ontem e hoje. Já com a Grilo fechada.

José Vilar, da retrosaria Bijou, confirma: “Os turistas têm dado um pouco de alento à continuação das retrosarias”.

Ou seja, embora o turismo leve curiosos a entrarem nestas retrosarias, isso não parece ser suficiente para sustentar o negócio.

Margarida Salvador investigou este comércio na tese de mestrado Projeto Retrosarias Centenárias da Baixa de Lisboa. “Quando fiz o trabalho, seis retrosarias estavam abertas e uma estava prestes a fechar. Senti que os tempos estavam a mudar”, explica.

Carlos Calheiros Cruz, um dos sócios da retrosaria JR Silva, na altura já encerrada, dizia precisamente isso:

“O comércio só sobrevive se vender. Se deixar de vender, não há volta a dar”

Para este comerciante, as “Lojas com História” não ajudaram porque não identificaram “nenhum projeto ou negócio que possa trabalhar em colaboração com as retrosarias” e “não trouxeram mais clientes ou mais fidelizações”.

João Barreta, especialista em Gestão do Território e Urbanismo Comercial, diz que “do ponto de vista da essência do Comércio, arriscaria afirmar que a necessidade que deu origem a tais comércios encontrou outras formas de satisfação, ou seja, são cada vez menos as pessoas que procuram essa oferta.”

Também por isso, não chega congelar no tempo Lojas que podem ter muita História mas não terão futuro sem negócio.

João Barreta diz que o programa devia ser alargado, pensando no futuro do comércio, e já propôs um conjunto de medidas: a divulgação de um roteiro de lojas, a criação de um bairro comercial digital das lojas com história, a inclusão dos mercados municipais no programa, a criação de selos “Loja com História”, a promoção de um Encontro/Seminário/Colóquio, a atribuição de um galardão “Loja com História do Ano”, a organização de um concurso literário.

Os responsáveis pelas retrosarias temem a construção de mais hotéis e empreendimentos turísticos. Foto: Carlos Menezes

As mudanças no comércio

No fundo, as mudanças sofridas na rua a Conceição, com o aparecimento de tantas retrosarias numa rua, e o fecho dessas lojas que outrora lhe deram vida – ambos são efeito da história da Baixa de Lisboa.

Margarida Salvador explica que ao terramoto de 1755 se seguiu a urbanização pelo Marquês de Pombal, que dividia o espaço entre a Praça do Comércio e o Rossio por setores comerciais e ofícios. A Rua da Conceição não foi exceção.

“Em 1760, cinco anos após o terramoto que devastou Lisboa, o rei D. José decreta que as ruas do quadrilátero entre a Praça do Comércio e o Rossio terão nomes ligados aos seus ofícios. Na rua dos Retroseiros, segundo a Câmara deviam assentar ‘os mercadores de logens de retroz, e ainda hoje se situa a maior concentração de retrosarias da cidade.”

Nos finais do século XIX o comércio teve uma grande expansão.

As lojas que surgiram na Baixa Pombalina surgiram ali por motivos estratégicos. “Todas elas procuram localizar-se numa das zonas mais valiosas da capital. Localizaram-se todas muito perto umas das outras devido à estratégia de Marquês de Pombal, apesar da concorrência feroz que estas lojas enfrentavam diariamente.”

Por outro lado, como muitos estudos mundiais de comércio indicam, a proximidade traz mais clientes interessados. Vêm daí as zonas da cidade dedicadas a várias áreas, em todas as grandes capitais.

E depois?

Guilherme Pais aponta algumas das mudanças: “A Baixa começou em declínio na década de 70 para 80, com o surgimento das novas superfícies comerciais, o prolongamento da cidade, as mudanças nos hábitos dos consumidores, a desertificação dos moradores…”.

E, também, o efeito do congelamento das rendas.

A retrosaria Augusto Duarte, fotografada por Joshua Benoliel. Foto: Arquivo de Lisboa

O final do século XX apanha a Baixa no centro de um furacão: novos hábitos de consumo, rendas congeladas que impediam os senhorios de atuar, o incêndio no Chiado. Ou seja, uma Baixa vazia, com o envelhecimento dos comerciantes… e do comércio.

E o século XXI traz as mudanças que dão a estocada final nas retrosarias. Com as alterações sofridas no centro da cidade, hoje a localização já não joga a favor destas lojas. O alojamento turístico “aumentou de forma exponencial a percentagem das casas ocupadas por não moradores. E o consumidor principal deste tipo de comércio começou a estar aos poucos menos nestas localidades”, explica o estudo de Margarida Salvador. E talvez, a vir menos à Baixa.

Que futuro para as retrosarias?

E os que restam? Como se mantém? Graças à sua resiliência, garante José Vilar. “Nós somos menos retrosarias, mas somos as melhores. Quando existe um aperfeiçoamento, ficam sempre as melhores. É a lei do mais capaz, do mais resiliente.”

José Vilar crê que o problema está no mercado. “Era preciso que os portugueses tivessem capacidade para comprar os nossos produtos e interesse no que propomos.”

O caso das retrosarias é muito específico – até porque depende do mundo que o rodeia. “É uma oferta muito peculiar, cujo ‘objeto’ comercializado é a base de artes, do ofício”, resume João Barreta.

Margarida Salvador, que se debruçou neste tema em 2020, acredita que há formas de revitalizar este tipo de comércio. Na sua dissertação de mestrado, propõe isso mesmo: uma revitalização e falar para um público mais jovem. Cada vez mais interessado pelos trabalhos manuais.

A investigadora Margarida Salvador propõe que as retrosarias se tornem em espaços de aprendizagem. Foto: Carlos Menezes

Por exemplo: a criação de uma marca agregadora destas lojas, a RETRÓS, que reuna não só espaços onde se vendem os habituais produtos de retrosaria, como ensina a reparar peças de roupa – e chamando atenção para algo em qe as retrosarias são tão modernas, a sustentabilidade, através da reciclagem, e num tema tão importante para o mundo como a poluição ligada à roupa.

Sendo a indústria têxtil uma das mais poluentes do mundo, Margarida Salvador defende que as retrosarias passassem a adotar o upcycling e o reaproveitamento de objetos têxteis através de sessões práticas para uma aprendizagem partilhada.

Já há alguns negócios que seguem estes princípios, mais dirigidos para o público jovem, com aulas e workshops, tais como a retrosaria Rosa Pomar, a escola de costura The Loft ou os eventos de reparação de objetos têxteis Repair Café Lisboa e Café Conserto.

No caso das retrosarias da rua da Conceição, promover aulas e workshops seria uma forma de valorizar a história destes espaços, cada vez mais esquecidos, atraindo as atenções para o seu valor patrimonial. “Ali, temos a vantagem de estarmos numa retrosaria, e termos uma grande envolvência e a ideia do contexto histórico.” Uma forma também de se combater o despovoamento da Baixa: “A Baixa já não é ponto de passagem, e acho que as pessoas não frequentam estas retrosarias por isso mesmo.”

A rua da Conceição no passado. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Um hotel e um empreendimento turístico

O mundo está a mudar, portanto, na rua da Conceição. E é bem ao sabor do tempo: onde dantes ficava a retrosaria D. Grilo, no nº77 da rua da Conceição, num edifício que durante anos esteve abandonado, va nascer um hotel. Este hotel estende-se do número 71 ao 77, aliás.

O plano de criar um hotel neste edifício devoluto já é discutido desde 2013, quando a então proprietária de uma parte das frações dos nºs 71-77, a Refúgio do Parque – Sociedade Imobiliária e Turística, S.A, propunha isso mesmo. Em 2013, a empresa endereçava carta ao presidente da Câmara Municipal de Lisbo na qual falava de “um programa funcional que promove a reabilitação do imóvel, instala uma unidade hoteleira de qualidade para acolhimento de turistas para o centro da cidade e promove o acesso interior às galerias subterrâneas, dignificando a cidade e preservando a qualidade arquitetónica de um conjunto classificado que é a Baixa Pombalina”..

A retrosaria Fernandes e Cardoso por Joshua Benoliel. Foto: Arquivo Municipal

O promotor imobiliário é a empresa Splendidprestige Lda.

O nº77 é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa desde 1990, tendo sido adquirida pois permite o acesso ao criptopórtico romano da Baixa. De facto, em 2015, técnicos do Centro de Arqueologia de Lisboa realizaram um trabalho de escavação arqueológica nos nºs 75-77 na rua da Conceição, pondo a descoberto, pela primeira vez, a face superior do monumento romano.

Em 2016, o proprietário dessas frações era já a SplendidPrestige, avançando-se com o projeto de hotel em 2018. Durante o processo de licenciamento, foram introduzidas alterações no projeto de arquitetura, que inicialmente previa a incorporação do criptopórtico no hotel. Assim, libertou-se a fração que pertence à CML.

Neste momento, as obras estão em andamento, prevendo-se a sua conclusão no prazo de 12 meses.

Construção do hotel nos nºs 71-77. Foto: Carlos Menezes

Os nºs 79-91, que eram propriedade da Companhia de Seguros Tranquilidade S.A., foram vendidos em 2017 à Real Added Value Pn – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado.

Aí, ficavam ainda há bem pouco tempo as retrosarias Luís S Fernandes (nºs 79-81), a Arquichique (nº 83), a Mário Ramos Lda. (nº 89, uma das lojas Nardo que encerrou, existindo uma outra, aberta, do outro lado da rua) e a ainda aberta Bijou (nº 91).

Por agora, está em curso um processo de licenciamento na CML, segundo o qual se propõe a instalação de um empreendimento turístico e a manutenção de seis lojas no piso térreo.

Hugo Barreiros, responsável pelas duas lojas Nardo, informa que a retrosaria do nº89 fechou temporariamente para obras e que irá reabrir – há anos que o lote 79-91 se encontrava em mau estado de conservação. Veremos em breve.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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3 Comentários

  1. Fui uma grande cliente dessas lojas e tal como elas já sou uma efeméride.. Muito obrigada pelas postagens!!

  2. Olá Ana da Cunha,
    Desde já os meus parabéns pelo artigo, que me trouxe uma grande nostalgia desse tempo. Tempo que também tive uma tarefa quase semanal de frequentar uma dessas retrosarias (JR da Silva). Na altura trabalhava numa alfaiataria, também extinta que se chamada “Alfaiataria David” que se situava na Rua da S. Nicolau, onde trabalhei 9 anos. Foi uma experiencia para a vida. Bem haja.

  3. Lembro com saudade as minhas idas á Baixa, a minha mãe era modista ,e era lá que se encontrava os (aviamentos) entretelas, forros ,botões, fitas etc. Nos Armazéns do Chiado iamos comprar tecidos de várias qualidades e padrões que não se encontravam em mais lado nenhum. Lembro do cheiro para mim muito agradável, da casa Pinheiros onde íamos sempre que era preciso um fato de fazenda, tantas lembranças.

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