Lisboa, 1974: uma menina de tranças vai às compras, pela mão da avó. Passam no mercado do Chão do Loureiro para comprar os frescos e depois dirigem-se a uma das inúmeras lojas de tecidos que há na Baixa, na tentativa de escolher alguma coisa elegante, mas económica, para usar num casamento de verão.

Talvez a Casa Frazão, na Rua Augusta. A avó senta a criança no longo balcão de madeira enquanto o empregado, todo ele gentileza, faz descer sobre a superfície longos rolos de shantung, crêpe georgette ou tafetá.

A avó discute preços (não tanto como o avô ou o pai, que têm exasperante mania de “pedir uma atençãozinha”), estica o tecido na mão, analisa-o à luz. “Tem deste em verde bandeira?”, pergunta.

Às mãos das modistas de bairro, a minha família entregava tudo, incluindo a confeção dos vestidos de noiva de acordo com modelo previamente escolhido nas revistas compradas na Loja dos Figurinos, um formidável vão de escada na Rua Augusta.

Nesses dias, com a minha avó na Baixa, o mais provável é que eu, exasperada, começasse a bater com os pés no balcão ao ritmo da sua impaciência.

Queria sair dali e ir à Pollux, escolher um brinquedo ou um livro para colorir.

A Casa Frazão foi sobrevivendo, como pôde, às transformações de gostos e hábitos e, numa camada ainda mais profunda, de mentalidades. Até falecer em 2018 – apesar de ter sido das primeiras a integrar o programa “Lojas com História”, criado em 2015 pela Câmara Municipal de Lisboa para, segundo os princípios enunciados na apresentação, “preservar e salvaguardar os estabelecimentos e o seu património material, histórico e cultural, e por outro lado, dinamizar e reativar a atividade comercial, essencial para a sua existência.”

Todo esse mundo do comércio verdeiramente local foi desaparecendo gradualmente nas décadas de 1980 e 90, à medida que Lisboa se ia enchendo das cadeias internacionais de pronto-a-vestir.

Na mesma Rua Augusta, a Camisaria Pitta, fundada em 1918, ou a Casa Pereira, na Rua Garrett, que ali vendia chás, cafés e biscoitos desde 1930, também fecharam, entre dezenas de outras cuja classificação não impediu de fechar portas, deitando a perder um património por vezes insubstituível na história da cidade e na memória afetiva de muitos cidadãos.

“Sem o programa Lojas com História, mais lojas já teriam fechado portas”

Outras, pelo contrário, persistem, com mais ou menos dificuldades, fiéis à clientela de sempre, mas dispostas a seduzir novos públicos, em áreas tão diferentes como a restauração, a moda ou até as ferragens.

Sofia Pereira, coordenadora municipal do programa Lojas com História.

São nomes míticos na memória dos lisboetas: Brasileira do Chiado (empresa irmã da Mensagem e onde temos a nossa sede emocional), British Bar, Bota Alta, Casa Forra, Velas Loreto, Hospital das Bonecas, Pérola do Chaimite, Leitão & Irmãos, Livraria Férin e por aí fora, num total de 143.

A coordenadora municipal do programa Lojas com História, Sofia Pereira, é peremptória: “Sem ele, já mais lojas teriam fechado portas. É verdade que, no arranque em 2015, os benefícios eram menos porque não existia nenhuma lei que regulamentasse uma certa proteção a este tipo de estabelecimentos. Surgiu em 2017, quando a Assembleia da República aprovou a lei 42 que a concede, nas áreas fulcrais do arrendamento e do despejo. E, na sequência disso, tivemos um autêntico boom de candidaturas.”

Em julho último, mais 12, de perfil e localização bem diferentes, juntaram-se a esta “caderneta de cromos” notáveis: Drogaria Palnóbrega, Livraria Bertrand da Avenida de Roma, Drogaria Casanova, Imperial de Campo de Ourique (Taberna), Restaurante Acaso, Casa das Conchas (Antiguidades), Restaurante A Licorista, Cutelaria Polycarpo, Farmácia Teixeira Lopes ou a famosa Gardénia.

Gardénia, sempre a reinventar-se

Nas 12 recém-chegadas à lista, como nas demais, a diversidade de perfil dá o mote. Comecemos pela Gardénia, tão particular é o seu caso. No coração do Chiado (Rua Garrett), foi durante décadas uma chapelaria de referência, nos tempos em que as senhoras das elites só viajavam acompanhadas pelas suas redondas caixas de chapéus (essa época da Gardénia está documentada na exposição “Do Chapéu e do Leque”, que pode ser vista no Museu do Traje, em Lisboa).

Quando a rapidez da mise-en-plis substituiu esse acessório nem sempre fácil de usar, o estabelecimento entrou em lenta decadência até que, na primavera de 1988, Vítor Silva a adquiriu para a transformar ao gosto da nova clientela da noite do Bairro Alto. 

Mas 1988 foi um ano fatídico na história de Lisboa: a 25 de agosto, boa parte do Chiado foi consumida pelas chamas do grande incêndio. “Foram anos muito complicados os que se seguiram, para nós, como para todos. Nos dez anos seguintes o Chiado tornou-se um estaleiro de obras. Ninguém vinha aqui às compras”, recorda Vítor, que é também presidente da Associação da Valorização do Chiado.

O interior da Gardénia, de Raul Lino. Foto: Rita Ansone

Este duro estágio preparou-o, de algum modo, para outras crises, como a da troika, e esta da pandemia, que ninguém podia antever. Da classificação de Loja com História espera pouco, diz. Embora seja bem-vinda a maior margem de manobra na renegociação dos contratos de arrendamento proporcionada por esta classificação. “O que se passou, com a lei do arrendamento de 2017, foi que os comerciantes ficaram completamente desprotegidos face à subida brutal dos valores praticados. Isto foi fatal para boa parte do comércio tradicional do Chiado e da Baixa.”

Embora a publicidade nunca seja demais, a verdade é que, pela sua localização e património, a Gardénia já era, antes de o ser formalmente, uma loja com História. Situada no piso térreo de um edifício pombalino, tem os seus interiores art déco, assinados pelo arquiteto Raul Lino, classificados como património de interesse público.

A velha Gardénia, num anúncio de revista.

Qual é, então, a diferença de uma loja com história oficial? A classificação tem critérios específicos – ver abaixo – mas fundamentalmente dá vantagens. Integra as lojas numa rota de prestígio, com potencial turístico, e, desde 2018, dá proteção no arrendamento: por um período transitório de dez anos para os contratos antigos cujas rendas sejam atualizadas, bem como por mais cinco anos durante os quais as rendas só poderão acompanhar a inflação.

Os proprietários dos prédios ficam isentos do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e podem deduzir no IRS despesa com obras de conservação, acrescida de 10% do valor gasto. Além disso há também um fundo municipal para despesas e modernização do negócio, como digitalização e apoio no desenvolvimento de modelos de negócio ou promoção de eventos culturais.

Sofia Pereira, da CML, exemplifica: “Tem havido de tudo um pouco: pode ser a publicação de um livro sobre a história da loja, obras de reabilitação do património físico, campanhas publicitárias…”.

Para além destes apoios, em colaboração com a EGEAC, o programa Lojas com História tem vindo a promover várias atividades de dinamização no espaço das lojas classificadas. A mais recente é o programa “Outono/Inverno” que está a levar obras de dez artistas plásticos a outros tantos espaços.

Classificação ajuda, mas não é suficiente

O programa “Lojas com História” representa, portanto, uma autêntica corrida contra o tempo. Muitas das lojas que marcam a história do centro da cidade sofrem pressões imobiliárias fortes, outras a ausência dos seus públicos naturais de bairro, arredados para outras freguesias. João Barreta, especialista em comércio na Direção de Planeamento e Recursos Humanos do Ministério da Cultura e com um longo currículo nesta área, diz que “a classificação não é a solução para todos os males. Em matéria de comércio, o velho normal, antes da pandemia, já não corria bem: havia muitos estabelecimentos com sérios problemas apesar da prosperidade do turismo.”

João Barreta, economista, sempre foi um defensor do programa Lojas com História, mas considera essencial um olhar crítico e rigoroso.

O que falta? Ordenamento do comércio nas ruas, nomeadamente na Baixa. “Se eu quiser abrir uma oficina automóvel no Colombo ou nas Amoreiras, não me deixam. Quando muito dizem-me: temos este espaço disponível, se quiser pode abrir isto ou aquilo, mas sempre relacionado com as outras lojas circundantes. As lojas de moda estão agrupadas num setor, o mobiliário noutro, a restauração noutro e assim sucessivamente. Ora, nas nossas ruas, cada um abre o quer, onde e como quer e isto não deveria acontecer. Defendo que as autarquias possam intervir nesse ordenamento.”

António Moura, empresário sediado na Baixa há décadas, teme que um prograna como o Lojas com História prolongue de forma artificial o que já não funciona.

O mesmo defende António Moura, empresário há muitos anos na Praça da Figueira concorda que esse fosso se foi abrindo “a partir dos anos de 1970, entre a modernidade dos shoppings, quase sempre localizados na periferia da cidade e muito atrativos para a classe média, e este aspeto romântico das lojas como eram há 50 anos, onde o público não vai, porque, na verdade, foram feitas para um mundo que já não existe.” Na Baixa, diz, tudo parecia “mantido em clorofórmio.”

Não ajudava a manutenção de rendas baratas. A lei do arrendamento urbano ficou inalterável durante décadas, e foi a grande responsável por tão penosa situação, segundo o empresário que dá o seu exemplo: “Por volta de 2007, 2008, quis arrendar uma loja na Baixa de Lisboa e fui à procura de uma desocupada. Identificaram-me na altura perto de 70 lojas com porta fechada, mas não consegui arrendar nenhuma”.

Porquê? “Porque estavam na mão dos inquilinos que pagavam 20 ou 30 euros de renda e que não entregavam a loja ao senhorio. Estavam muitas vezes à espera de que lhes pagassem um trespasse de centenas de milhares de euros.”

Depois veio a mudança das leis das rendas e o efeito foi inverso, com os senhorios a tentarem recuperar o tempo perdido e os inquilinos a não conseguirem acompanhar a parada.

A Casa das Conchas do pai para a filha

Essa é uma das grandes vantagens deste programa, e foi por isso que Cristina Fernandes diz que decidiu candidatar a “Casa das Conchas”: fundamentalmente por causa da proteção no arrendamento. Esta é uma das novas Lojas com História, classificada no verão.

Cristina Fernandes diz que teve de se reinventar com a pandemia. Foto: Rita Ansone

“Esta loja era do meu pai. Ele vendia aqui antiguidades e velharias, fazia restauros sobretudo a partir do 25 de Abril quando muitas casas começaram a ser deixadas para trás, com recheios às vezes muito bons”, conta.

Herdeira desse gosto, Cristina não quis fechar a histórica loja (assim chamada em alusão às conchas em cantaria que adornam a fachada) quando o pai morreu. Mesmo que a Rua de Santa Marta, onde se situa, já não conheça o movimento das décadas de 1980 e 90 (quando aqui funcionavam muitos escritórios e bancos). A loja de Cristina é, dos antiquários das Ruas de Santa Marta e São José, uma das quatro sobreviventes de um total de 12 que aqui estavam há apenas 20 anos. 

Na mão do pai, foi uma casa de móveis e colchoaria – de casquinha, a partir de portas e portadas pombalinas recicladas. Ou seja, como refere Cristina no site da loja, “sempre existiu portanto , uma cultura de sustentabilidade e reciclagem associada a este negócio familiar”.

Com a pandemia, a cidade esvaziou-se e Cristina teve de se reinventar. Associou à venda online os ateliers e tutoriais sobre restauro e transformação de móveis, através de técnicas e produtos acessíveis, com que contactou quando viveu em Inglaterra. Diz que “essa inovação está a correr muito bem” espera que a classificação ponha a sua loja no roteiro dos lugares imperdíveis para quem passeia nas redondezas da Avenida da Liberdade. 

Lojas com histórias, no plural?

A história desta reinvenção é um pouco o exemplo do que deve ser aprofundado no conceito de Loja com História. António Moura compara o catálogo das Lojas com História ao receituário de cozinha tradicional portuguesa da Maria de Lourdes Modesto: “Devemos olhar para estas boas práticas e perceber como é que o seu conceito pode ser adaptado à nossa realidade, com produtos de hoje. São boas sementes que não podem ir parar ao lixo pura e simplesmente, apenas por falta de adaptação”. Mas também não acredita que “se prolongue de forma artificial o que já não funciona há muito tempo.”

E João Barreta defende que “é preciso assegurar que os comerciantes não dormem à sombra da classificação. Precisamos com urgência de um comércio dinâmico porque a verdade é que perdemos muita coisa com o confinamento, uma delas é o hábito de ir a uma loja física e escolher o que queremos.”

Daí ser interessante, para João Barreta, a designação no plural, Lojas com Histórias. Deste modo tanto abarcaria casas com um património muito rico, situadas num edifício notável (e não são poucos os incluídos neste programa) como a drogaria ou a mercearia tradicionais, discretas na aparência, mas que sabem o nome dos seus fregueses de décadas e, se for preciso, levam a mercadoria a casa. Os que fazem uma “atençãozinha”, como se dizia em tempos há muito idos.

“De um ponto de vista pessoal, como consumidora, talvez ache que não têm todas o mesmo mérito”, responde a coordenadora municipal do programa. “Mas a questão é técnica. A CML tem duas equipas de avaliação, que vão aos equipamentos e verificam se cumprem os critérios. Todas as que, neste momento, estão classificadas obtiveram, pelo menos, a classificação mínima para o conseguir. Claro que algumas obtiveram 11 pontos (mínimo) e outras 20 (máximo), mas essas diferenças também fazem parte do processo. Não fazemos propriamente um ranking de estabelecimentos, porque esse não é o espírito do programa, mas as classificações são públicas, podem ser consultadas por quem o deseje.”

E das que já fecharam, as que são apenas memória fotográfica guardada nos arquivos ou nas recordações, será possível resgatar alguma coisa?

João Barreta acha que sim e defende a criação de um “comerciário”, um espaço museológico onde se contasse as histórias dessas lojas, dos seus proprietários, empregados e clientes, para que a cidade não as perdesse para sempre.

E para que, mentalmente, as meninas de tranças voltassem a passear de mão dada com a avó.

Como candidatar-se a ser uma Loja com História

A atribuição da distinção assenta em critérios previamente definidos e amplamente debatidos. São eles:

  • Longevidade reconhecida (mais de 25 anos de atividade consecutiva)
  • Significado para a história comercial da cidade. Neste caso, os objetivos são premiar a inovação de negócios e produtos, em todas as épocas, e a resiliência de últimos representantes de atividades e ofícios, promovendo os bons exemplos de gestão duradoura.
  • Existência de oficinas ou produção própria, privilegiando-se aqueles que têm um produto identitário ou marca própria.
  • Património artístico ou arquitetónicos. 
  • Salvaguarda e divulgação de acervo e espólio próprio, bem como a sua divulgação junto da comunidade.  

Maria João Martins

Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.

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6 Comentários

  1. Olá bom dia
    Obrigado pelo vosso excelente jornalismo.
    Entretanto duas pequenas notas.
    Quando publicita a Gardénia no quase inicio da noticias situa-a na Rua Augusta. Mais à frente está correto quando a situa no Chiado.
    Sugiro a correcção.
    Outra sugestão é acrescentar a morada ao conjunto de fotografias publicadas no inicio
    Bom fim de semana
    Fernando Gonçalves

  2. Bom trabalho jornalístico e de divulgação das atividades que resistem ao franchising e ao mercado global. Parabéns 👏

  3. Não é que seja “grave” para o efeito em causa, mas já deixei o Ministério da Cultura em julho … de 2019.

  4. Muito bom seria se várias destas Lojas com História (as existentes e as que já encerraram) pudessem servir de inspiração para a criação de franchisings de origem portuguesa.

  5. Boa tarde. Permitam-me também corrigir que a Drogaria Palnóbrega se situa no Areeiro e não em Campo de Ourique…

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