“Era uma Baixa muito bonita, agora já quase não há comércio.” As palavras são de Maria Eugénia, moradora em Loures, que veio às compras à retrosaria Marques Sequeira. Ela que sempre gostou de fazer compras por aqui. Pela janela desta retrosaria, é possível ter um vislumbre daquela que é uma praça emblemática da cidade: a Praça da Figueira.
Uma praça que acolheu, em tempos longínquos, o imponente Hospital Real de Todos os Santos – entretanto transferido para a Colina de Santana, no mesmo sítio onde se ergueu o atual Hospital de São José.
E, anos mais tarde, depois do terramoto de 1755 que devastaria toda a cidade, um lugar transformado por um grande mercado, ainda por muitos recordado, com o nome da praça onde acontecia.
Onde hoje passeiam rodas de skate e pés apressados, no centro da Praça da Figueira ergueu-se uma grande estrutura de ferro que viveu mais de 150 anos. “Noite cerrada, madrugada adiante, escuro de breu, inverno ou verão. As carroças descem lentamente a Avenida Almirante Reis, vencidos já os obstáculos dos estreitos acessos à cidade. Trazem molhos de couves, braçadas de flores”, lembra a olisipógrafa Marina Tavares Dias na sua obra “Lisboa Desaparecida“.


Mas o mercado da Praça da Figueira fechou há mais de 70 anos e a vista desta janela confirma as palavras de Maria Eugénia: o comércio, nesta praça complementar à do Rossio, tem vindo a esmorecer.
A retrosaria onde Maria Eugénia vem às compras fica no 2.º andar do n.º4 da Praça da Figueira. Um edifício que alberga uma loja de câmbio no rés-do-chão e um atelier de arte no 1.º andar. De resto, o edifício parece abandonado.
João Capelo, à frente desta retrosaria desde 1987, teme pelo futuro: “Antes, havia aqui habitações. Agora já não vive aqui ninguém. Não sei qual é a ideia do senhorio, não sei se será um hotel…”.

Hotéis: ocupantes da morada do comércio esquecido
O medo de João Capelo tem alguma justificação: afinal, a construção de hotéis e alojamento local (AL) tem sido o destino de muitos dos edifícios praticamente abandonados da Praça da Figueira.
Numa só praça, contam-se uns atrás dos outros: o Hotel Figueira no n.º16, o My Story Hotel Figueira no n.º15, a Pensão Beira Minho no n.º6 e o complexo turístico Visionaire Apartments no n.º5.
E a tendência parece ter vindo para ficar: no n.º10-11, podemos encontrar um edifício entaipado, com um aviso de obras a anunciar que a transformação se destina ao turismo.
É esse o futuro que os comerciantes do n.º 18 esperam também: a construção de um hotel de 3 estrelas, com 62 unidades de alojamento, que aguarda neste momento aprovação na Câmara Municipal de Lisboa.



António Coelho, à frente da loja de artigos de barbearia Barbex, no 3.º andar deste n.º 18, desabafa: “Já só cá vinha quem tinha interesse em aprender a arte da barbearia”. E tantas vezes os mais velhos viam-se impossibilitados de ali chegar devido às avarias no elevador.
A ideia de um novo hotel parece, por isso, ser a estocada final para esta loja, bem como para a Boutique Zeva (no piso térreo) e a retrosaria Botilã (no 1.º andar).


Alojamento local onde antes vivia gente
Aquilo que se vive na Praça da Figueira é um pouco aquilo que se vive em toda a Baixa Pombalina: a substituição do comércio por hotéis e empreendimentos turísticos. Um processo que terá começado a partir de 2012, com a alteração da Lei do Arrendamento, explica o empresário António Moura.
Durante quase 40 anos, a lei do congelamento das rendas contribuiu para o abandono da Baixa: com rendas baixas, os arrendatários envelheciam e os proprietários viam-se impossibilitados de investir na manutenção do edificado. Com a alteração em 2012, lojas fechadas foram arrendadas, prédios viraram hotéis…
E uma nova dinâmica emergiu pela cidade: o alojamento local.
“De repente, começou a haver um outro tipo de alojamento: apartamentos renovados, AirBnB’s, e os turistas vinham visitar uma cidade que tinha estado parada no tempo, e isso tem um romantismo fortíssimo, é uma cidade como a Europa já não tinha”, diz António Moura.
Nos edifícios que resistem sem hotéis, assiste-se a isso mesmo.
No n.º 9 da Praça da Figueira, por exemplo, sobrevive a Antiga Casa do Chocolateiro, uma loja de roupa assim batizada pois era naquela esquina que se vendia chocolate quente quando ainda havia o velho mercado de ferro. Neste prédio, parece já não viver gente – dizem as lojistas. O que viríamos a confirmar: no dia em que passamos por lá, uma turista francesa aguardava à porta pelo anfitrião da plataforma Booking, tocámos a todas as campainhas, mas só respondeu um outro turista.


Uma pesquisa na Booking mostra que, no 2.º andar deste prédio, fica o “Figueira Quality Apartments by LovelyStay”, onde estão disponíveis dois apartamentos (um com cama de casal e sofá-cama, o outro com duas camas de casal e sofá-cama) e um estúdio, com os preços a variar entre os 200 e os 300 euros por noite, conforme a época e a tipologia.
A LovelyStay, uma empresa de gestão de alojamento turístico, gere mais quatro alojamentos na Praça da Figueira, no n.º 12, onde, no piso térreo, fica a loja de chapéus e acessórios Aromas (antes uma perfumaria e bijuteria).
São o “White Apartment”, “Green Apartment”, “Blue Apartment” e “Yellow Apartment”, cujos preços oscilam entre os 100 e os 500 euros por noite, conforme a época, com o “Blue Apartment” a apresentar os valores mais elevados.


Há gente a viver na Praça da Figueira
Se, no século XX, os pisos térreos dos edifícios da Baixa Pombalina eram ocupados por comércio e os superiores por habitações, hoje são poucos aqueles que ainda vivem na Praça da Figueira.
Mas eles existem.
“É preciso preservar as pessoas nesta praça, onde temos vindo a perder população de uma forma acentuada, como já tínhamos perdido no Rossio”, diz o Presidente da Junta de Santa Maria Maior Miguel Coelho.

Nesta praça, há dois pequenos esconderijos que conduzem a habitações: um dele é o Hospital das Bonecas (ali desde 1830), cuja entrada dá acesso a andares que são propriedade da Fundação de Sousa, uma Instituição Particular de Solidariedade Social, e que parecem ser habitados sobretudo por jovens, diz Manuela Cutileiro, responsável pelo Hospital.
O outro esconderijo fica na loja Aromas, onde, para além de alojamento local, há apartamentos habitados, sobretudo por estrangeiros.
É o caso de Gary, que veio da Califórnia para Lisboa para aproveitar a reforma. Lisboa, cidade que escolheu pelo “bom tempo, pelo custo de vida, pelo sistema nacional de saúde.”
Primeiro, viveu em Arroios. Agora, vive num andar no n.º 12 da Praça da Figueira, e reconhece que só consegue pagar a renda desta casa – cujo valor optou por não revelar – por vir dos EUA, onde as rendas conseguem atingir valores mais elevados.
“Mas estou a pensar em mudar-me, não quero fazer parte de um sistema onde estou a contribuir para o aumento dos preços.”
GARY, IMIGRANTE
E, mesmo não tendo conhecido outra Praça da Figueira que não esta, sabe que ela se tem vindo a transformar. “Nesta área, que está povoada sobretudo por turistas, as mercearias e os serviços não são muito bons, porque as pessoas que por aqui passam só vão ficar aqui durante duas, três semanas.”

Um “boom” perigoso
A proliferação de hotéis e alojamentos locais nessa Baixa abandonada teve um efeito perverso: não só desapareceu o comércio tradicional, como surgiu comércio menos qualificado.
“Deu-se um boom perigoso, porque se não temos oferta qualificada para dar a quem nos visita, começamos a funcionar pelo fator preço, tudo sem grande diversidade, alma…”, explica António Moura.


Do passado da Praça da Figueira, resiste:
- A Confeitaria Nacional no nº18B (ali desde 1829);
- O Hospital das Bonecas, ali desde 1830 no nº7 (embora no passado se localizasse no 5º piso e não no piso térreo);
- O Mundo das Malhas (no nº13), que surge já em fotografias dos anos 70;
- As duas retrosarias (a Marques Sequeira, no nº4, ali desde 1928, e a Botilã, no nº18, desde 1982);
- A Antiga Casa do Chocolateiro no nº9, anterior a 1930;
- A Ourivesaria Dólar no nº7 (desde 1967);
- A Pastelaria Tentação, no nº12 (ali há cerca de 35 anos);
- A loja Aromas (ali há cerca de 30 anos);
- A Ourivesaria Palajoias nº8C (desde 1982);
Perderam-se estabelecimentos como a loja de café A Morena, a Mercearia Primavera, a loja de malas Teodoro, a loja de vidros, porcelanas e cristais Jao e, claro, a Pastelaria Suíça, no famoso quarteirão hoje também entaipado. Aí, os lojistas dizem que se está a construir uma Zara – questionada pela Mensagem, a marca não respondeu aos pedidos de esclarecimento.
Para o empresário, faltou planeamento por parte da autarquia.
Uma visão que é também a de João Barreta, especialista em Gestão do Território e Urbanismo Comercial:
“A inexistência de uma política de ordenamento comercial é hoje uma evidência muito objetiva que prova o falhanço em pleno dos sucessivos elencos autárquicos da capital no que diz respeito a uma política para o Comércio da Cidade.”





O futuro da Baixa Pombalina: o regresso ao “shopping a céu aberto”?
É preciso repensar o território, dizem os especialistas.
“Não será, no mínimo, estranho nunca ter existido um Plano Estratégico para o Comércio de Lisboa? Não será, no mínimo, caricato jamais se ter avançado com um Plano de Ação Local para o Comércio de Lisboa?”, questiona João Barreta.
O presidente da Junta também se posiciona assim em relação ao futuro da Baixa Pombalina, e da Praça da Figueira. “Temos de ter algum cuidado, se queremos de facto que esta Baixa venha a ser considerada Património Mundial. Devíamos ter aqui concentrados mais museus, mais instituições, mais comércio. Uma rua com lojas dedicadas ao artesanato português.”
E António Moura defende que a solução seria pensar a Baixa como um shopping, aproveitando a sua história: “Pensar a oferta, os serviços, as comodidades. Temos a melhor zona comercial do país. Não há nenhum shopping que tenha a história, o património, da Baixa de Lisboa”.
Para tal, seria preciso visão. “A autarquia tinha de contratar um desses especialistas de gestão de espaços e pensar: ‘vamos criar a Lisboa de sonho’. E desenhavam esse sonho.”

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

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Parabéns, à autora, pelo excelente trabalho.
Os Hoteis e ALs vieram “Roubar” os imoveis que poderiam ser a habitação de muita gente, assim como o comércio de muita gente.
Eu como alfacinha digo que estão a assassinar Lisboa! Estamos no sec. XXI e escorraçam-se pessoas para fazer isto? Vergonha!