Para Bruno Vieira Amaral, um escritor é um “vampiro, um pirata, um corsário”. Alguém que rouba histórias e personagens vindas de todos os cantos para as transformar em literatura. O seu livro “As Primeiras Coisas” é prova disso mesmo. Partindo do bairro no Vale da Amoreira, onde cresceu, Bruno criou um outro lugar na imaginação, o bairro Amélia, onde se cruzam vivências e personagens encontradas um pouco por todo o lado. O bairro que é personagem desta obra.

“As primeiras coisas” foi o livro em discussão na quinta sessão do Clube de Leitura de Lisboa, n’A Brasileira do Chiado – uma iniciativa mensal para juntar leitores e autores à volta de obras relacionadas com a cidade.

Um livro que retrata um bairro que tanto podia ser nessa margem Sul a que pertence Bruno Vieira Amaral como na Macedónia ou na Sérvia, onde os leitores tanto se reviram nas peripécias deste bairro de vizinhos e de histórias, muitas e muitas vezes mal contadas.

Recorde a conversa com o leitor aqui, no novo podcast da Mensagem:

Este livro retrata um bocadinho o bairro onde cresceu, no Vale da Amoreira…

Eu já falei tantas vezes sobre o livro que corro o risco de repetir o que já disse e de me esquecer de outras. Mas sim, isso continua a ser verdade. O livro é inspirado no bairro em que cresci, ainda que não corresponda exatamente ao bairro em que cresci.

No fundo, é um compósito de outros lugares e também é um lugar da imaginação. Muitos procuraram essas semelhanças, esses pontos de contacto com o bairro real, mas isso para mim nunca foi o mais importante. Eu sempre encarei o bairro em que cresci como um ponto de partida e o que me interessava era o ponto de chegada. E o ponto de chegada é um lugar que não existia e que passou a existir quando escrevi sobre ele.

Portanto, sim, é um livro inspirado nesse bairro, mas não é esse bairro.

O que eu acho curioso é que nós somos apresentados a este bairro por um narrador que, desempregado, solteiro, vê-se obrigado a regressar. Isso corresponde à sua realidade? Como é que surge este narrador?

Bom, o narrador tem alguns pontos de contacto comigo, com a minha história. Eu também regressei ao bairro mais ou menos nas mesmas condições.

Mas, como digo, em relação à inspiração do bairro, também o narrador ou essas circunstâncias foram apenas o ponto de partida. Para que esse narrador funcionasse e fosse credível, eu tinha de criar entre ele e o bairro uma relação que era muito diferente da relação que eu tinha e tenho.

O narrador surgiu por uma necessidade narrativa. Eu tinha começado, alguns anos antes, a escrever este livro, através de alguns esboços de personagens, de situações. O livro poderia existir apenas nessa forma, ou seja, como um conjunto de histórias, e em parte o livro continua a ser isso, mas eu queria criar uma outra ligação emocional. Para isso, precisava de um narrador, de uma personagem, com a qual o leitor se identificasse de início, ou seja, que servisse como a porta de entrada para aquele universo.

Seria mais difícil criar essa relação entre o leitor e aquele mundo sem a presença de uma personagem ou um narrador que servisse de intermediário. Não estou a dizer que não era possível, mas seria mais difícil. Assim cria-se ali uma relação empática. Não significa também que o leitor goste necessariamente do ponto de vista do narrador, mas é diferente quando somos guiados, quando somos levados pela mão por uma entidade, seja uma personagem, seja um narrador.

Somos levados pela mão, e o que acaba por acontecer é que ele faz um levantamento de muitas das personagens do bairro. Enquanto estava a ler, até me questionei: o livro tem de ser lido de fio a pavio? Podíamos abrir uma página num capítulo qualquer e ler sobre aquela personagem específica?

Pois, eu pensei o livro para ser lido do princípio ao fim. Uma vez lido, depois o leitor pode regressar como quiser, pode ler só um capítulo. Aliás, o leitor, a partir do momento em que tem o livro nas mãos, pode fazer dele o que quiser. Eu não controlo o processo.

O que é que eu acho? Eu acho que o livro deve ser lido por esta ordem em que está escrito, mas não tem de ser necessariamente assim. O leitor tem essa liberdade.

Sim, alguns leitores disseram-me que isto não é um romance, é um conjunto de contos. Mas o romance é uma forma literária extraordinariamente flexível. Há livros como, por exemplo, aquele que é considerado o primeiro romance moderno, o “Dom Quixote”, que tem histórias dentro de histórias.

E este romance tem uma ordem e foi pensado como um todo. Não foi pensado como histórias individuais para viverem por si. Apesar de algumas personagens só aparecerem na sua própria história, só podem ser compreendidas quando se tem a noção do todo. E o todo são as diferentes histórias.

Então, fale-nos um bocadinho destas personagens. Como é que elas surgem? Algumas são realmente inspiradas em pessoas que conheceu no bairro? Outras virão de outras realidades, outros contextos?

Bom, isso eu creio que é um método que será o de qualquer escritor. Algumas personagens surgem-nos quando observamos alguém, ou quando conhecemos alguém. Outras surgem porque lemos uma notícia e há um pormenor que nos desperta a curiosidade e nós achamos que está ali uma personagem. Pode ser num consultório médico…

Eu lembro-me de uma vez estar à espera de fazer umas análises e entrou um senhor lá no laboratório que trazia um casaco de bombazina pelos ombros e aquele pormenor simples fez-me pensar numa personagem. Eu comecei a imaginar como seria a vida daquela pessoa a partir daquele pormenor. Se eu tenho um método, talvez seja esse.

Quando estava a escrever o livro, um dia fui a um restaurante em Abrantes e fiquei a olhar para o empregado de mesa e a imaginar como seria a vida dele. Então, há uma personagem neste livro que parte dessa pessoa que eu só vi uma vez na vida. Depois juntei-lhe outros pormenores, outras características de empregados de mesa que eu conhecia do bairro e de outros sítios e juntei-lhes também coisas que vêm da imaginação.

O Rui Zink há uns anos dizia que o escritor é uma espécie de vampiro da realidade, é assim um bocadinho um corsário, um pirata, que vai roubando aqui e ali para compor as suas personagens e as suas histórias.

A primeira personagem que está neste livro e sobre a qual eu escrevi, que é o Zeca, é inspirada numa pessoa real lá do bairro que se chama Zeca, não a inventei muito. Em quase todas as personagens o processo é perceber o que é viver esta vida. O que é ser aquela pessoa. E aquilo que me despertou interesse no Zeca, que é alguém que eu conheço desde miúdo, foi uma conversa que uma vez tive com um amigo. Nessa altura, em que eu tinha regressado ao bairro, olhámos para o Zeca, que é uns 20 anos mais velho que nós, e esse meu amigo perguntou-se: “será que o Zeca alguma vez foi ao cinema?”. E começámos a pensar e achámos que era difícil. Ele provavelmente nunca teria ido ao cinema. Em todos os 40 anos que viveu naquele bairro, muito provavelmente nunca saiu dali para ir ao cinema.

E depois há coisas que se juntam à medida que estamos a escrever. Eu, na altura, estava a viver não muito longe do bairro, no Barreiro, e contratámos alguém do bairro para ir pintar a nossa casa. E foi a minha mulher que o foi buscar. Aquilo é uma viagem de 10 minutos do bairro ao Barreiro. No final do dia, a minha mulher disse: “Fui buscar lá o senhor que veio pintar a casa, e quando nós passámos por aquela zona renovada do Barreiro, ele ficou muito espantado ao olhar para aquilo, porque não reconhecia nada daquela área”. E aquilo fica a uma distância ridícula, quer dizer… E tu pensares: “Esta pessoa não saiu daquele pequeno mundo. O que é ser essa pessoa que vive aquela vida?”.

Esse talvez tenha sido o gatilho para escrever sobre muitas das personagens que estão no livro.

“As Primeiras Coisas” foi o livro em discussão na quinta sessão do Clube de Leitura de Lisboa. Foto: Inês Leote

E no final? O seu bairro foi o ponto de partida, o ponto de chegada é o bairro Amélia. O que é o bairro Amélia? Qual é que foi o resultado de toda esta aventura?

Desde logo foi importante para mim encontrar um nome que separasse o que é o bairro real, no Vale da Amoreira, deste bairro sobre o qual eu estava a escrever.

Para quem conhece, o bairro tem uma determinada carga. E eu queria limpar essa leitura. Não queria que o leitor entrasse a pensar nesse bairro real. Queria que o leitor pensasse num bairro Amélia, num bairro. E então, esse talvez tenha sido um dos momentos decisivos na escrita do livro: quando encontrei um nome quase para emancipar o bairro Amélia desse bairro que lhe tinha servido de inspiração.

E eu acho que o bairro ganhou vida própria, ao ponto de pessoas que não fazem ideia do que é o bairro Amélia ou a margem Sul se conseguirem relacionar e identificar com este bairro, por exemplo, na Macedónia.

Eu nunca imaginei que o livro seria publicado em países como a Hungria ou a Macedónia. Apresentar o livro nesses países e as pessoas dizerem que este bairro é parecido com o seu bairro de infância, isso foi uma experiência… Por exemplo, na Sérvia aconteceu isso. Leitores vieram dizer-me “isto é muito parecido com o bairro onde eu cresci nos anos 80, nos anos 70, na ex-Jugoslávia.”

O que significa que, pelo menos, um dos meus objetivos tinha sido alcançado, que era sim, haver essa ligação forte com esse bairro que serviu de inspiração, mas, por outro, chegar a um outro lugar que não necessitava do conhecimento do leitor em relação à realidade daquele bairro.

Este podia ser um bairro qualquer?

Podia. Quando o livro foi publicado, fui a várias comunidades de leitores e a clubes de leitura, e percebi que quem se identificava mais com o mundo retratado eram os leitores mais velhos. Os mais novos não se reconheciam muito naquele universo por uma série de razões. Mas os mais velhos, mesmo aqueles que tinham crescido, por exemplo, em bairros populares de Lisboa, nos anos 40, 50, 60, identificavam-se mais.

Todos os leitores transportam uma bagagem, a bagagem das suas vivências, das suas leituras, dos filmes que viram, da música que ouviram, transportam tudo isso para a leitura. E isso, claro, influencia também a forma como se identifica e se relaciona com a realidade daquele livro. Mas houve esse esse fenómeno curioso de pessoas mais velhas que não conheciam aquele bairro se identificarem com o mundo ali retratado, com as relações de proximidade, de vizinhança, que estão expostas no livro.

E os moradores do bairro, como é que reagiram à publicação do livro? Reviram-se nele?

Eu não andei a perguntar às pessoas, soube de algumas reações, alguns não gostaram, alguns não se reviram minimamente. Ainda bem, porque eu não quis fazer um retrato fidedigno do bairro. Eu não escrevi para os moradores do bairro.

Aqueles que se indignaram mais talvez tenham sido aqueles que mais me deu prazer saber a reação deles. Porque, voltando à questão do bairro como inspiração para o livro, este é um produto da minha imaginação, sim, inspirado naquele lugar, mas é um produto da minha imaginação. E mesmo o bairro real, o que possa haver do bairro real neste livro, não é tanto o bairro real, mas o bairro tal como eu o vejo.

Eu acho que é isso que se procura em qualquer livro: é uma visão de um escritor, de um autor, de uma pessoa, da sensibilidade dessa pessoa sobre uma determinada realidade. Portanto, alguém que venha à procura do bairro real, ou que tivesse ido à procura do bairro real neste livro, provavelmente sairá desiludida, e eu diria “ainda bem.”

Vamos falar então sobre o seu bairro, um bocadinho, e sobre essa imagem que criou. Como é que foi crescer ali e como é que começou essa vontade de escrever sobre ele?

Foi uma infância partilhada, uma infância de rua, com os amigos da minha idade. Mas eu acho que isso não será muito diferente das pessoas da minha geração que cresceram noutros bairros.

Havia, claro, um grande sentido de comunidade, o que tem os seus lados bons e os seus lados maus. Por um lado, tem esse lado bom de partilha e de entreajuda, por outro lado, claro, nestes meios pequenos e pobres, há muitas histórias, acontece muita coisa, toda a gente sabe um bocadinho da vida dos outros, há invejas, pequenas e grandes invejas, e isso tudo marca muito a forma como nós crescemos.

Eu diria que, para mim, enquanto escritor, esse conhecimento da vida dos outros, de como é que os outros vivem, das histórias individuais acabarem por ser histórias partilhadas, isso provavelmente também formou o meu caráter de escritor, porque eu, no fundo, sou um bisbilhoteiro, com algum talento literário, espero eu, mas, no fundo, o que me atrai muito é saber o que é que acontece na vida dos outros, e depois transformar isso em literatura.

Na génese desse desejo de escrever sobre o bairro, terá estado isso: conhecer histórias, ter ouvido falar de histórias tantas vezes, que elas próprias já eram uma espécie de mitologia. Eu tinha de encontrar uma maneira de as transfigurar, de as transplantar para um livro. Só não sabia bem como, porque aquilo eram histórias, por vezes, tão inverosímeis, que eu pensava: “Se for escrever isto, ninguém vai acreditar nestas coisas, portanto, tenho de encontrar aqui uma maneira de transformar isto num livro, mas que ao mesmo tempo seja verdadeiro e que o leitor não sinta que está a ser montada ali uma história da Carochinha.”

Eu posso até contar uma história que acho que depois utilizei no segundo romance. Uns tipos que viviam no bairro, e que a dada altura saíram e foram viver para o estrangeiro, dedicaram-se a diversas atividades, algumas das quais ilícitas, e a certa altura, no sul de França, assaltaram um carro que pertencia a um violinista, e na mala desse carro estava um Stradivarius, e eles ficaram com ele, sem ter bem noção do que era.

Esse Stradivarius acabou por chegar ao bairro, e lá ficou durante algum tempo, e eu soube mais tarde que um dos irmãos dos indivíduos viu o violino numa garagem e achou que estava um bocado maltratado e decidiu lixá-lo e envernizá-lo, com todas as boas intenções do mundo. Quando me contaram esta história, eu pensei: “isto é mentira”. Então esse era o desafio: pegar nestas histórias muitas delas que desafiam a verosimilhança, e depois conseguir contá-las de uma forma que fosse verdadeira e fosse credível para o leitor.

Não me faltava matéria-prima, o problema era mesmo a abundância de matéria-prima. Lá está, se calhar por isso é que as pessoas se reviram tão bem neste retrato, fossem elas de onde fossem, porque os bairros são todos um bocadinho assim, cheios de histórias, algumas delas muitas vezes inverosímeis. E há outra coisa que eu gosto muito do ambiente do bairro, e que eu de certa forma tentei encontrar o equivalente literário, que são as histórias mal contadas. Quando surge um rumor, há sempre alguém a dizer: “bem, isso não foi bem assim, essa história não está bem contada”. E eu gosto dessas histórias que não estão bem contadas, e parece que há sempre alguém que tem mais um pedacinho de informação para completar a história…

Por exemplo, houve uma mulher que deixou o marido e se foi embora do bairro, e alguém diz que ela estava doente e foi para a casa dos familiares, e outro “não, não, não, a história não foi bem assim, ela fugiu, foi com o tipo que vendia roupa aqui no bairro”. E então, esse mosaico de histórias, ou de como as histórias são fragmentadas, também foi outra das coisas que me interessou, porque eu achei que todas estas histórias estavam um bocadinho mancas, e que cada pessoa que contava a história trazia mais um pedacinho de informação que ajudava a compreender.

No bairro, a informação circulava assim, de manhã ia-se à mercearia, eu ia quase todos os dias com a minha avó, havia sempre uma história qualquer, e depois à noite já sabia mais pormenores sobre essa história.

Eu lembro-me de ir à casa de uns vizinhos, e de ela ter saído do hospital, nós fomos lá visitá-la, e ela tinha os maxilares presos por um aparelho, por uns arames, e eu era miúdo, e não fazia ideia do que é que se tinha passado. Eu só mais tarde é que percebi o que é que tinha acontecido, que aquela senhora tinha estado no hospital porque foi espancada pelo marido… mas eu era miúdo, e eu estava a ver só uma parte da história, e não estava a compreender, e muitas vezes as coisas funcionavam assim.

Há uma cena que eu descrevo no livro, e que foi muito marcante: eu era muito pequeno, e estavam umas mulheres na cozinha, a minha mãe, a minha avó e umas vizinhas, e estavam a fazer ali uma espécie de ritual com uma agulha, e eu não percebi muito bem o que é que era aquilo. Era um ritual, pelos vistos bastante comum, para determinar o sexo do bebé.

Só que eu na altura não sabia que o sexo do bebé que estavam a tentar determinar era o do irmão que eu não tive, a minha mãe tinha feito um aborto quando eu era muito pequeno. Quando eu era miúdo, aquilo teve um impacto, era uma coisa mística que estava ali a acontecer. No entanto, quando tu depois reúnes mais informação e olhas: “ok, havia toda uma outra dimensão que me estava a escapar naquele momento.”

Isso acontece com muitas histórias que nós ouvimos, de que só sabemos uma parte, e que nos fascina por aquele bocadinho que nós sabemos, mas depois com a distância e com o conhecimento, fazemos toda uma outra interpretação desse acontecimento. O livro está cheio dessas histórias.

E essa vida de bairro e de conversas de vizinhos, de histórias mal contadas, estamos a perder um bocadinho dessa vida, ainda existem bairros assim?

Existem certamente bairros assim. Para quem saiu daquele bairro, como eu, e vive em urbanizações, alguns viverão em condomínios, sim, perdeu-se essa experiência, mas também se ganhou alguma coisa. As pessoas também procuram essa privacidade, as pessoas não querem essa mistura, não querem que os vizinhos saibam da vida delas. Por outra lado, perde-se a entreajuda, muitas vezes nós nem sabemos o nome dos nossos vizinhos. Quando dizem, e isso fala-se muitas vezes, que os miúdos de hoje não brincam na rua, não têm aquela vida que nós tínhamos. Eu, quando era pequeno, toda a gente me conhecia no bairro, todas as vizinhas…

Hoje, se os meus filhos forem para a rua, só as vizinhas do lado e mais duas ou três pessoas sabem quem é que eles são, as pessoas do prédio em frente ou dos prédios ali à volta não sabem, então eu não me sinto seguro também a deixar os meus filhos brincar demasiado à vontade. E isso mudou, é uma consequência natural da mudança de condições de vida, há alguma coisa que se perde, sim, e há outras que se ganham.

E seria bom trazer um bocadinho mais de comunidade para as cidades, veria isso como algo positivo?

A verdade é que as pessoas, quando precisam dessas comunidades, arranjam uma maneira de as formar. Eu escrevi um livro que é o Aleluia!, que é um misto de ensaio, de reportagem, de memórias, que é sobre igrejas minoritárias, igrejas evangélicas, no qual falo também sobre a minha experiência.

A minha avó converteu-se às testemunhas de Jeová quando eu era pequeno, e eu frequentei também as reuniões até a minha adolescência, e eu procuro nesse livro refletir um pouco sobre a importância que a igreja e a religião, teve para a minha avó. A minha avó não procurava apenas na religião uma resposta a questões existenciais, o que é que estamos aqui a fazer, para onde é que vamos, a minha avó procurava uma comunidade.

Os meus avós vieram do Alentejo nos anos 60. Vêm para um ambiente muito diferente, até um pouco hostil, primeiro aqui no bairro da Serafina, em casas muito precárias, e depois foram ocupar estas casas na margem Sul, mas a minha avó viveu como uma desterrada. Foi aquela geração que veio do interior para o litoral, para os grandes centros urbanos.

E esse é outro aspecto interessante. Nós, portugueses, não nos damos conta, e há quem diga: “ah, mas o que é que interessa a vidinha de cada um?”, mas nas nossas histórias individuais há reflexos da história coletiva. Quando eu estou a falar sobre a história da minha avó, eu não estou só a falar sobre a história da minha avó, porque a história dos meus avós é a história de muitas pessoas daquela geração que fugiram à pobreza e à falta de alternativas, à falta de trabalho, e vieram para os grandes centros urbanos, mas perderam depois essas redes de apoio social e familiares que tinham. No caso da minha avó e de outras pessoas, encontraram a Igreja, a religião.

Hoje isso está a acontecer muito com as igrejas evangélicas e pentecostais, que servem de ponto de apoio, de referência a imigrantes recém-chegados do Brasil, que muitas vezes não têm outros pontos de apoio e procuram também nas igrejas esses pontos de apoio.

Eu tenho vizinhos que vieram do Brasil há relativamente pouco tempo e que frequentam igrejas, tenho amigos que são do bairro e que não têm nada a ver com essas comunidades, mas que encontraram também apoio. Portanto, eu acredito que as pessoas quando precisam, quando não têm essas redes que nós antigamente tínhamos, que seriam as redes de vizinhança e familiares, são capazes de criar essas redes.

Haverá outros casos em que nas grandes cidades, não conseguem encontrar uma alternativa a isso e eu imagino que sejam vidas extremamente solitárias e em alguns momentos de profunda desesperança, porque nós precisamos dessas redes, nós precisamos de nos sentir acompanhados. Quando nós vivemos nestes novos bairros, nas urbanizações em que mal conhecemos os nossos vizinhos, eu creio que há qualquer coisa que nos falta e que nós vamos procurar de alguma forma suprir de outras maneiras.

O Clube de Leitura de Lisboa acontece todos os meses n’A Brasileira do Chiado. Foto: Inês Leote

Há uma frase que diz na série da RTP, “Herdeiros de Saramago”: “Eu sou do outro lado, é aí que pertenço”. Continua a sentir isto? Explique-me um bocadinho que sensação é esta.

Sim, eu recentemente numa entrevista disse que era “contra lisboeta”, não é contra no sentido de me opor a Lisboa, mas é no sentido de quem vê Lisboa do outro lado, em contracampo. Eu gosto muito de Lisboa, sobretudo quando olho do outro lado.

Estudei em Lisboa, trabalhei e hoje continuo a trabalhar em Lisboa, houve ali um período em que trabalhei do outro lado e um período em que estive a trabalhar só em casa, mas de resto, a minha relação com Lisboa é um pouco esta também para voltar à imagem do corsário, eu venho aqui buscar o que me interessa e volto para o outro lado.

Mas já escrevi algumas coisas sobre a cidade de Lisboa, alguns contos que se passam em Lisboa. Só que continuo a ter o olhar de um forasteiro, não de um turista, de um intruso. Sinto que não é a minha cidade.

E não sente que a Margem Sul também é Lisboa, ou são dois mundos completamente à parte?

Se o perguntar a um lisboeta, ele é capaz até de ficar ofendido com isso, há algum preconceito em relação à Margem Sul, mas nós até gostamos disso.

Todos nós precisamos, todas as comunidades precisam de se formar contra alguma coisa, por exemplo, a identidade nacional brasileira foi construída em oposição a Portugal. Para usar aqui um exemplo algo caricato, se forem ao outro lado há uma grande rivalidade entre Alcochete e o Montijo.

A Margem Sul não é um todo, existem grandes diferenças e, por exemplo, o meu bairro não existia até 1975, portanto é um bairro um pouco desligado das raízes históricas. O meu bairro é um ovni que é criado ali no contexto da revolução e da descolonização.

Há muitas Margens Sul dentro da Margem Sul, e quem é de lá sabe isso perfeitamente. Eu já vivi em quase todas estas Margens Sul e tenho essa sensação. Eu cresci ali no Barreiro, Moita, e havia grandes diferenças para Almada. Almada já era um mundo completamente distinto, a minha mulher é dali e eu não conhecia praticamente nada daquilo.

Então qual é que é a sua Margem Sul?

Olha, a minha Margem Sul é a do Barreiro, ali na adolescência é a da noite do Barreiro. A noite do Barreiro era muito viva e para mim é um bocado triste ver como o Barreiro se transformou. Mas tudo desaparece, tudo se transforma e também é uma das bases, dos alicerces deste livro, das primeiras coisas: é nós voltarmos a um lugar e, quando nós voltamos, estamos sempre a ver dois lugares diferentes, estamos a ver aquilo que é e estamos a ver aquilo que era e a nossa percepção está sempre neste lugar intermédio que será o lugar da imaginação, em que, por um lado, houve transformações positivas e, por outro, houve transformações negativas.

Mas também eu vivi durante algum tempo no Montijo, vivi em Alcochete, então todos esses pedacinhos da Margem Sul fazem parte da minha história pessoal. Não é só um lugar, a Margem Sul para mim são esses lugares em que eu vivi e que conheci em diferentes fases da minha vida. Alcochete para mim marca ali um período em que a minha vida mudou bastante, eu tive um bar em Alcochete durante algum tempo, faliu rapidamente, foi numa altura em que me divorciei, foi numa altura em que a minha vida mudou muito, então Alcochete para mim é essa minha história individual. É uma vila que eu associo àquele período, acho que isso acontece com todos nós.

Nós estamos aqui a falar da ideia de Lisboa, o que é que é Lisboa, Lisboa é uma grande abstração. Depois se formos a perguntar às pessoas, cada uma tem a sua própria Lisboa, em função do lugar em que cresceu, da zona da cidade em que cresceu, do estrato social a que pertencia e a que agora pertence, portanto cada pessoa tem a sua própria cidade. Nos livros é um pouco isso, o que nós encontramos não é a cidade tal como ela é, não é a vida tal como ela é, mas a cidade tal como aquela pessoa a vê, e é isso que eu procuro num escritor. Não estou interessado num retrato, mas sim na cidade filtrada pela sensibilidade daquele escritor.

A próxima sessão do Clube de Leitura de Lisboa decorrerá apenas no final de setembro, em data e hora a anunciar. Fique atento!


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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1 Comentário

  1. O meu histórico é bastante diverso posso dizer que já tive várias vivências, faz me falta pessoas que escrevam de coisas do meu passado

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