Quanto vale uma tenda de sem-abrigo nas arcadas de um prédio na Avenida Almirante Reis? Depende. Se for no verão de 2023, vale muito, como arma de arremesso político num acontecimento tão importante para a cidade como a vinda de um Papa

Porque não estamos à espera que venha o Papa para que as pessoas que vivem sem abrigo em Lisboa sejam assunto na Mensagem, nem os que fazem do seu único abrigo as tendas da Almirante Reis, temos estado atentos ao que se passa ali. 

Há cerca de três semanas, aliás, recebemos a mesma indicação que outros meios de comunicação social receberam de que as tendas das pessoas sem-abrigo teriam de ser retiradas por causa da vinda do Papa e dos milhares de peregrinos para a Jornada Mundial da Juventude. Havia até um prazo para isso. 

Estranhámos. Porque se tentaria esconder a pobreza de um Papa que a tem como foco da sua ação? Um Papa que criou o Osservatore di Strada, um jornal onde escrevem os “que normalmente não são ouvidos, os pobres, pessoas feridas pela vida, excluídos” – nomeadamente os sem-abrigo.

Um Papa que em 2015 instalou “duches nas colunatas vaticanas para que os sem-teto romanos pudessem tomar banho, juntando-lhes uma barbearia e uma enfermaria para cuidados básicos de higiene e saúde”, segundo a Agência Ecclesia citada pelo site SeteMares. Ser mais papista que o papa, neste caso, seria fazer algo parecido, mas na Almirante Reis.  

Mas podia ser que alguém na CML estivesse mesmo a tentar esconder os sem-abrigo… do Papa da pobreza. Acontece que consultámos várias fontes, falámos com pessoas com conhecimentos no terreno e com os envolvidos, os partidos, as autoridades. E não tivemos nenhuma informação segura de que estaria a ser ali realizada mais do que uma limpeza da rua, habitual de meses a meses: as tendas teriam de ser retiradas momentaneamente, e depois poderiam regressar – como sempre acontece. A Câmara negou em “on”, e nenhuma fonte nos indicou, com segurança, “em on” ou “em off”, como se diz em gíria jornalística, que a “limpeza” estaria relacionada com a vinda de Francisco.

Ora, jornais e agências deram a história – não todos, felizmente. Se lidas com cuidado, nenhuma das notícias que saíram sobre o assunto refere essa informação como segura, nem citam nenhuma fonte. Falam de acusações “de rua”, de “diz-se que”. Mas os títulos iam nesse sentido.

E o que fizeram todas essas notícias – deveríamos dizer “não notícias”? – foi ocasionar uma sequência, perniciosa, mas muito atual: primeiro, são transcritas para as redes sociais em formatos reduzidos que simplificam a informação. Essas simplificações inflamam as redes – e tornam-se factos sociais, em Lisboa e no país. Em conversas de café e palcos – como foi o caso de Carolina Deslandes.

Da inflamação até à infeção é um passo. E isso tem um nome moderno, chama-se desinformação.

Não é por a desinformação vir da esquerda ou da direita que se torna mais ou menos virtuosa. E terá as mesmas consequências: quebra da confiança na sociedade, desconfiança na democracia, de que haja alguma verdade ou justiça. Desesperança. O que vem a seguir, havemos de testemunhar, mas não pode ser bom. 

E no meio do barulho das redes sociais, mais uma vez, o que interessa foi passado para segundo plano.

Não, não há nada de bom nas tendas da Avenida Almirante Reis. Elas estarem ali é sinal de tantas coisas negativas na nossa cidade…

Para quem as habita, que é quem mais interessa neste caso, estas tendas são o limite mínimo da humanidade, o fim da linha, a pobreza extrema, não apenas medida em euros, mas em capital social: estas pessoas não têm um familiar, um amigo, uma só mão que os salve e os agarre. Na cidade, estas tendas põem à mostra a falta de resposta estruturada, de apoio, de uma rede de última instância a que um cidadão caído em desgraça possa efetivamente recorrer.

Estas tendas representam um salve-se quem puder, um dever não cumprido de um estado que se pretende democrático e social. Mas falha. 

Por último, para os que habitam e fazem vida e negócio na Almirante Reis, vizinhos deste drama, estas tendas são uma responsabilidade que não fizeram nada para ter. Uma injustiça que a vida urbana lhes inflige. Mesmo os que tenham uma visão generosa, aqueles a quem esta situação aperta o coração, não podem deixar de sentir desconforto. Imaginem a falta de solidariedade e extremismo que esse desconforto pode causar aos menos sensíveis…     

O que seria mesmo bom era que em 2024 não se falasse de tendas… porque não havia tendas. Nenhuma. Nem na Almirante Reis, nem no Regueirão dos Anjos, nem em nenhum lugar de Lisboa.

E isto porque mesmo quem perdia tudo e ficava na rua sabia que havia uma última rede de amparo. Que havia sempre um lugar onde ficar. Um tecto. Um apoio.

Porque as tendas na Almirante Reis não nos dão nehum tipo de orgulho. São demonstrações de indecência da sociedade. De um Estado que tem como dever amparar os mais frágeis – e não o faz. As tendas são esse dever não cumprido.

Seria certamente um milagre que a vinda do Papa Francisco ocasionasse o fim disso em Lisboa.

Catarina Carvalho

Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
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3 Comentários

  1. Um texto tão extenso para, no final, expor de forma tão clara uma visão que é precisamente o que este artigo tenta desmontar: tirem-se as tendas da rua porque quem ali vive (em casas, pois claro) e trabalha nada tem que ver com elas.

    Seria também importante referir o comunicado da Comunidade Vida e Paz (está online, é consultar: https://www.cvidaepaz.pt/2023/07/05/quer-experimentar-1-acao-voluntario-na-cvepaz-8-9-10/), instituição com um protocolo com a CML, e que, a pedido desta, terá comunicado às pessoas que teriam de ali sair. Seria importante porque o texto deste comunicado não deixa muitas dúvidas, quando fala numa acção que “visa uma limpeza das tendas existentes e demais pertences”. Leia-se outra vez: não é a remoção das tendas para a limpeza da rua, é a limpeza das tendas. Não sei bem que ginástica intelectual é preciso fazer para não compreender o que é aqui dito.

    Na verdade pouco interessa se as tendas foram retiradas pela vinda do Papa ou não. O que interessa é que a solução passa sempre por esconder o problema, não por resolvê-lo. Como há meses se fez também no jardim da Igreja dos Anjos (também aí seria uma “limpeza de rua”?), removendo tendas e chegando mesmo a junta daquela freguesia a colocar grades para que ninguém pudesse sequer ali dormir. Talvez não se recorde — é que agora que não estão à vista, fica mais difícil lembrarmo-nos de que existem pessoas sem casa.

  2. Caríssimos, não existe alguém de bom senso que deixe de se impressionar com a situação dos Sem Abrigo, reparo no entanto que nos mais variados artigos que se publicam sobre o tema, toda gente bate na mesma tecla, é uma vergonha social, a o governo tinha obrigação de acabar isto, a câmara municipal não faz nada, etc, etc.
    É óbvio que numa sociedade “livre” como a nossa toda gente fica entregue às suas própria decisões e ao livre arbítrio, é óbvio também que viver tem que saber e infelizmente muita gente não soube nem sabe conduzir a sua vida, não existe alguém de bom senso que deixe de se impressionar com a situação dos Sem Abrigo, reparo no entanto que nos mais variados artigos que se publicam sobre o tema, toda gente bate na mesma tecla, é uma vergonha social, a o governo tinha obrigação de acabar isto, a câmara municipal não faz nada, etc, etc.
    É óbvio que numa sociedade “livre” como a nossa toda gente fica entregue às suas própria decisões e ao livre arbítrio, é óbvio também que viver tem que saber e infelizmente muita gente não soube nem sabe conduzira a sua vida, pela mutos menos falam do flagelo presente, mas ninguém ousa falar ou fazer ou sugerir inquéritos a cada pessoa para saber o aue se passou com elas para as levar a tal situação.
    A génese das coisas, o porquê de acontecer é importante .
    Acaso um multimilionário resolvesse abrigar todos os Sem Abrigo ,aue garantias há de que passados 6 seis meses não haveriam outros tantos para abrigar.
    Enquanto não se investir a fundo na prevenção de que as pessoas caiam na rua, o tema continua a dar caixas de artigos para quem se deleita a anunciar desgraças. Vão génese dos factos. Vim trabalhar para Lisboa em 1965, na minha profissão e nas minhas deslocações noturnas em Lisboa não se via o triste espetáculo de hoje .
    Alguém se interroga porque depois do 25 de Abril o fenómeno se desenvolveu desta maneira?

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