*Esta entrevista foi originalmente publicada a 15 de junho de 2021; agora corrigida com dados atuais

Já motivou petições em duas freguesias, está no centro da polémica que se tem tornado a vinda do Papa a Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude e continua a dividir os lisboetas. Quando o tema são as pessoas em situação de sem-abrigo em Lisboa, a discussão nunca é serena. Sobretudo desde que a pandemia levou a autarquia a decidir abrigá-las em complexos desportivos ou pousadas da juventude. Uma decisão que criou mal-estar com os vizinhos nas imediações destes edifícios.

Na altura, a Câmara Municipal de Lisboa, ainda com Fernando Medina, dizia ter atestado a bazuca para resolver o problema: 10 milhões de euros para fazer funcionar o Programa Municipal de Apoio a Pessoas em Situação de Sem-abrigo (PMPSA), em que o modelo Housing First é estrela. Mas com a crise atual, o número de pessoas sem teto continua a crescer. E ainda temos muito a aprender com a Finlândia, o único país na Europa onde o número de pessoas sem-abrigo decresceu de forma significativa.

Juha Kaakinen é finlandês e CEO da Fundação-Y, uma organização sem fins lucrativos que já forneceu milhares de casas a sem-abrigo no seu país. Integrou o grupo de trabalho que deu início ao Housing First e tornou-se especialista na matéria.

O modelo representa uma inversão do sistema que soluciona o problema: ao invés de começar por ajudar na procura de emprego, por exemplo, para que os sem-abrigo possam pagar uma renda, começa-se por dar uma casa – daqui a origem do nome Housing First (Casa Primeiro).

Convidámo-lo para uma conversa sobre as vantagens que este modelo traz à luta pela extinção da condição de sem-abrigo e como pode funcionar eficazmente. Entre alguns segredos, revela que parte da eficácia está em tornar esta luta nacional e não apenas local.

Por que razão demorámos tanto a perceber que o modelo Housing First – dar casas às pessoas e depois tratar do resto – poderia ser a solução?

Porque quando lançamos a habitação como abordagem nacional, ao mesmo tempo começamos a mudar a estrutura dos serviços para os sem-abrigo que já existiam. E mexer no que já está instalado há muitos anos leva o seu tempo.

O Housing First pode realmente ser a solução. Especialmente na Finlândia, tem sido uma política nacional pelo menos há mais de dez anos. E essa é provavelmente uma das diferenças entre a Finlândia e muitos outros países.

Existe um grande esforço agora em muitos países para aprimorar o Housing First, mas para nós, foi, desde o início, uma abordagem sistémica. Entendemos que, primeiro, era preciso dar uma casa permanente e só depois o suporte adequado, se for preciso.

“Há que fazer todo o possível para minimizar a quantidade de acomodação temporária em abrigos e albergues, que é uma solução temporária e não a solução para a falta de habitação, e foi isso que fizemos desde o início de 2008.”

O que significou, por exemplo, que alguns dos locais que eram destinados a acomodar sem-abrigo fossem reformados e convertidos em moradias de apoio. São residências protegidas, 81 apartamentos independentes num só prédio. Cada um tem o seu próprio apartamento e um contrato de arrendamento próprio e há uma equipa no local para fornecer suporte, se necessário, porque entendemos que a maioria das pessoas prefere ter apartamentos individuais.

Embora também existam aqueles sem-abrigo de longa data que temem esse isolamento e solidão em moradias dispersas.

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Porque é que este modelo é mais funcional do que o “modelo de escada”, do qual já falou em conferências internacionais?

Eu diria que é um modelo realista e pragmático, porque não há pré-requisitos para conseguir uma casa Housing First. No modelo de escada, como eu lhe chamei, partimos do princípio de que para se conseguir uma casa é preciso, primeiro, resolver problemas, como o alcoolismo, por exemplo.

Isso não funciona na vida real.

“É muito difícil resolver os outros problemas se o maior dos problemas é não ter um teto adequado. E, por isso, o Housing First pretende proporcionar primeiro a habitação, que consideramos um direito social, para a partir daqui ter, sim, expectativas realistas de que as pessoas podem resolver os seus problemas, com a ajuda de profissionais, é claro.”

Temos uma história demasiado longa de acomodação temporária e de desespero também.

Deixe-me ir a esse ponto. Falando sobre sua experiência local, como é que a Finlândia lidava com as pessoas em situação de sem-abrigo antes do Housing First surgir?

Tínhamos muitos alojamentos temporários em albergues. Antes de 2008, já se começava a desenvolver diferentes planos de moradias apoiadas, mas eram mais num modelo de casa que juntava várias pessoas num mesmo espaço. Além de que eram muitas as condições impostas para ter lugar. E a grande diferença é que havia mais, muito mais, acomodações temporárias. Depois, claro, muito mais gente a dormir na rua, porque muitos não queriam estar nos albergues.

Isto é uma realidade em muitas das grandes cidades europeias: os abrigos e albergues temporários estão tão lotados que há sem-abrigo que preferem dormir na rua, se essa for a única solução. Portanto, era um modelo muito tradicional. Queríamos mudar o sistema, porque entendemos que isto não funcionava, não estava a ajudar aquelas pessoas que tinham problemas mais complicados e mais necessidade de auxílio.

Os albergues dão cama e comida, mas não ajudam realmente a resolver os problemas?

Sim, e o trabalho das pessoas que trabalhavam nos abrigos não era esse.

Mas também é importante criar esta distinção entre habitação, apoio e serviços, porque há quem precise só de um teto e há quem precise de outro apoio também. Agora, na Finlândia, quando alguém entra num apartamento da Housing First, mesmo que não precise de mais nenhum apoio ou serviço, continua por lá, porque tem contrato de arrendamento. Isto é importantíssimo, porque cria uma noção de segurança e sustentabilidade.

E, como disse, algumas pessoas não se sentem confortáveis ​​em partilhar um lugar às vezes com centenas de outros e temos que respeitar esse direito…

Sem dúvida.

É interessante que na Constituição finlandesa não há qualquer menção exata a que as pessoas têm direito a uma casa. Há muitas outras legislações que apontam nessa direção, mas não há direito subjetivo à moradia. No entanto, na mesma Constituição, o Estado protege a privacidade das pessoas. Tem-se o direito à privacidade, mais do que à habitação. Por isso, escolher com quem quer morar é importante.

Claro, existem pessoas que querem viver com outras pessoas, mas tudo tem que ser baseado na sua própria escolha. Nestes albergues temporários tradicionais para pessoas sem-abrigo, não é isso que acontece.

Qual é o impacto do Housing First na Finlândia atualmente? Quantas pessoas saíram da situação de sem-abrigo desde 2008?

Bem, eu acho que a melhor maneira de descrever isso é dizer que, desde 2008, o número de sem-abrigo na Finlândia diminuiu para quase metade. E o nível de sem-abrigo de longa duração caiu 65%. Quando começámos, em 2008, havia cerca de 3 mil pessoas nesta condição e, se isso se prolonga por pelo menos um ano, normalmente significa que a pessoa tem sérios problemas sociais e de saúde. Portanto, estas duas condições foram atendidas.

Com uma pandemia temos novos desafios, mais pobreza, mais pessoas a trocar as suas casas pela rua. Também em Lisboa vemos isso a acontecer. Independentemente das casas a dar, este trabalho não tem de começar antes que alguém esteja sequer à beira de não poder pagar uma casa? O que se pode fazer?

Sim, claro. Acho que há duas coisas importantes a ter em consideração. Em primeiro lugar, devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance para evitar que as pessoas fiquem em situação de sem-abrigo. A habitação a preços acessíveis tem, nesta matéria, um papel extremamente importante, o que significa que é responsabilidade sobretudo do poder público garantir que em cada cidade existam casas a preços que as pessoas possam pagar. E tem que ver também com um bom sistema de Segurança Social, que providencie, caso não haja rendimento algum, forma de pagar a renda. Na Finlândia, por exemplo, temos o Federal Housing Benefit para este benefício. A construção de habitação como meio de prevenção estrutural é crucial.

Mesmo assim, haverá pessoas que ficam sem teto. E quando tentamos resolver o problema, é fundamental que não estejamos apenas a dar-lhes uma casa, mas também a apoiá-los, na sua reintegração. É essencial que tentemos envolver as pessoas e integrá-las novamente na sociedade, através de oportunidades de trabalho, para que possam pensar no futuro. Eu até diria que esta é a melhor forma de apoio.



Temos estado a falar sobre o lado humano da questão, e nunca podemos descurá-lo, mas também há evidências de que dar um lar a estas pessoas reduz significativamente os gastos que um Estado pode ter com elas, na rua, certo?

O ponto principal é: temos razões éticas pelas quais devemos fornecer casa a todos. Mas também sabemos que é economicamente viável para a sociedade que o façamos.

Custa menos fornecer uma casa adequada do que manter as pessoas sem-abrigo. Pensando aqui até nos cuidados de saúde que acarretam, no dano na saúde pública e na sua ausência da nossa economia.”

Mas acho importante dizer que deve haver um entendimento global muito forte, uma vontade até política, para acabar com a falta de casas para todos, porque em muitos países esta ainda é uma questão séria. E acho que não sou o único que pensa que o Housing First é a política certa para este caminho.

“Custa menos fornecer uma casa adequada do que manter pessoas sem-abrigo”, diz Juha Kaakinen, em entrevista. Foto: Kirsi Tuura

O modelo foi bem aceite na Finlândia, inicialmente?

Demorou algum tempo para que as pessoas entendessem o que realmente estava a acontecer. Mas, desde o início, houve um consenso político muito amplo, um entendimento comum de que isto é um problema: temos de cuidar dos nossos sem-abrigo. E isso tem continuado desde 2008. Tivemos vários governos e não importa qual partido esteja no poder, todos eles concordaram em continuar. O que prova que tem havido consenso e entendimento de que este é o caminho certo. E, claro, as pessoas viram os resultados, resultados muito concretos. No início, é claro, houve alguma resistência dos trabalhadores da linha de frente, que estavam muito acostumados a trabalhar da maneira antiga. Mas, hoje, eu diria que é comumente aceite.

Quem apoia a Housing First na Finlândia? É um investimento local ou nacional?

Em primeiro lugar, é uma política nacional. Portanto, no programa atual do Governo, é mencionado que se pretende reduzir para metade os sem-abrigo que existem até 2023 e eliminar esta condição completamente até 2027. Isso significa que chegaremos absolutamente aos zero sem-abrigo na Finlândia. Depois, as principais responsabilidades recaem sobre as autoridades locais, cidades e municípios, mas o financiamento tem vindo sobretudo do Estado. Neste sentido, é um esforço conjunto, uma parceria entre o Estado e autoridades locais e ONG’s. Porque acabar com a situação de sem-abrigo é um problema para toda a sociedade.

O modelo Housing First depende do desbloqueio de determinadas habitações por parte de entidades locais ou nacionais para agir. A burocracia é um problema?

Não acho que tenhamos tanta burocracia assim, é um processo muito direto. O problema é que ainda faltam casas acessíveis e, embora estejamos constantemente a construir novas, a verdade é que levantamos outro problema: as pessoas tendem a concentrar-se apenas nas grandes cidades.

Voltando ao impacto da pandemia: os albergues noturnos não voltaram a ser uma solução para abrigar estas pessoas no início?

Não, pela simples razão de que já não temos esse tipo de acomodação temporária em abrigos e albergues. E o problema de abrigar em lugares como este é que nunca nos livraremos disto, vamos perpetuar a sua condição. Mas, no Reino Unido – tal como em Lisboa fez em determinados espaços da cidade -, eles colocaram muitas pessoas em hotéis. Isso agora mudou por lá e as pessoas estão a voltar para as ruas novamente. Aqui, poderia ter sido o início de uma boa solução, mas foi apenas uma solução temporária.



Além da Finlândia, que país considera que está a lidar melhor com esta problemática?

Um bom exemplo é a Escócia, porque eles estão a expandir muito sistematicamente o apoio a estas pessoas, com uma participação muito coesa do Governo, das autoridades locais e das associações sociais. A Escócia é um caso muito interessante a que devemos estar atentos. E, claro, há outros países cujos trabalhos com os sem-abrigo estão no mesmo nível da Finlândia e que têm feito um trabalho excecional há muito tempo. Também porque têm melhores possibilidades económicas para encontrar soluções, como ceder habitações a preços acessíveis.

Qual é o próximo passo do Housing First?

Nós sabemos os resultados atuais: cerca de 80 a 90% dos sem-abrigo mantêm os seus apartamentos no Housing First. Mas isso significa que ainda temos de 10 a 20% das pessoas que não estão a conseguir fazê-lo. Então, o próximo passo é encontrar soluções que funcionem também para estas pessoas. Se queremos acabar com a condição de sem-abrigo, o que temos definitivamente de fazer é isto, encontrando soluções habitacionais combinadas com apoio mais intensivo.

A pergunta de um milhão de dólares: é possível acabar com a condição de sem-abrigo?

Claro que é possível. E é a única maneira de pensarmos. É um problema social, mas pode ser resolvido. Pode dizer-se que haverá sempre gente que fica na rua por muito pouco tempo, claro. Mas isso é um fenómeno crónico. A médio e longo prazo é que já não pode acontecer. E acho que nos países europeus, por exemplo, temos os recursos para resolver esse problema e deveríamos resolvê-lo muito rapidamente também com uma resposta semelhante. Porque não acho que os nossos sem-abrigo possam esperar muitos mais anos.


Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt


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6 Comentários

  1. Eu apenas gostaria de fazer um pequeno alerta. A resolução dos problemas dos sem abrigo, em especial os que viveram bastante tempo nas ruas, são muitos e diversos, de cariz social. Não passam só por ter falta de uma habitação, embora seja o mais importante, como é óbvio. Fora de Portugal, não sei como o Housing First funciona em todas as suas áreas. Mas em Portugal as instituições Housing First deverão estar atentas para que este programa não seja apenas e só “Housing Only”!

  2. Bom trabalho, Catarina Reis, informar e esclarecer tem sido um ótimo serviço do jornal “Mensagem”. Um caminho de dar a conhecer os bons exemplos concretos, poderá fazer a diferença e assim vencer barreiras e encontrar soluções de transformação e evolução social.

  3. Muito obrigada pelas palavras, António.
    Tem sido uma máxima nossa: sempre que possível, nunca falar do problema sem também apresentar as diferentes soluções que podem existir para o mesmo e onde já são aplicadas (fora da cidade ou até do país). Acreditamos que esta é a nossa missão também.
    Obrigada por nos ler.

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