O Jardim das Delícias é um dos muitos logradouros do Bairro de Alvalade onde se juntam os vizinhos e a terra respira através das sombras por todos plantadas. Era um bocado de terra que o tempo e a falta de interesse levou a que fosse tomado pela vegetação desordenada. Até que Otelo da Lapa, diretor de cena nos palcos da Gulbenkian se tornou também coordenador de operações neste bocado de terra. Calhou que tinha vizinhos avessos ao betão e ao mobiliário urbano. Queriam terra. Plantas. E, acima de tudo, mãos na terra.  

É Otelo quem nos guia pela história, da qual só existem fotos do depois. Cheira a figos. Antes de o alcançarmos, há que atravessar uma entrada secreta, entre os prédios, junto ao Palácio dos Coruchés. Há muros compostáveis – que hão de alimentar a terra de onde brotam os cultivos. A sensação de caminhar no campo, com o som das folhas que se desintegram debaixo dos pés, interrompe-se com o ruído dos aviões – recordando o privilégio de uma vida campestre na cidade

Em 2018, Otelo mudou-se da Baixa para Alvalade, pois, como costuma dizer, deixou de ser suportável o ecoar das malas dos turistas escada acima, escada abaixo. Da janela do apartamento num daqueles prédios baixos de Alvalade construída no Estado Novo, viu verde. Do que crescia sem mão desde que a terra fora deixada.

E começou a inteirar-se dos destinos da sua vista, que pretendia um jardim. Os casais com filhos que moravam no prédio começaram também a apropriar-se do terreno, primeiro com um baloiço, depois com o trampolim.

A determinação que juntou estas forças para cuidar do espaço cresceu quando souberam da vontade camarária e da Junta de Freguesia em fazer ali um parque de estacionamento, tal como ocorrera em diversos logradouros. 

“Era outro daqueles projetos onde se faz tudo igual, não queríamos ter carros aqui, isto é para preservar o mais possível, como deveria ser a Quinta dos Coruchéus”, diz, Otelo, convicto. 

De um logradouro se fez horta, jardim e ponto de encontro de vizinhos. E assim ganhou-se comunidade. Foto: Rita Ansone.

Apesar de em Alvalade existirem mais estacionamentos do que casas, começou um imbróglio. Sabe-se que uma parte destas terras pertence aos prédios, outra à Câmara Municipal.

No entanto, por falta de cuidado de todas as partes, há muito que vinham a ser tomados pela Natureza, por carros ou construções ilegais que desvirtuavam o seu propósito original, o de cuidar e viver próximo – até da comida. 

“A mais valia de viver neste bairro é ter espaços verdes no seu interior, abrimos as janelas e ouvimos pássaros e crianças”. É das marcas identitárias que distinguem Alvalade do resto da cidade. 

Pandemia da jardinagem 

Aqui foi fácil a concordância, tão fácil como o disseminar da pandemia. Curiosamente, até para demolir os anexos que ali que abundavam. Jardim para Otelo, hortas para os restantes. E, acima de tudo, um espaço para todos se misturarem. E brincarem.

“Eu, meio sem querer, contagiei todos com a jardinagem”, confessa o mentor. Esta foi a verdadeira pandemia. E, graças ao que teria sido um confinamento solitário, criou-se a disponibilidade para concretizar as boas intenções de cuidar. Há quem lhe chame despertar.

“De 2020 a 2021, vivemos aqui, em comunidade. Lanches, brincadeiras com os miúdos, arrancávamos as ervas para plantar comida”, recorda. Os vizinhos que não podiam sair, mais velhos, iam à janela para conversar e ver o jardim regressar. 

Desde então que, neste palco, os papéis se têm escolhido naturalmente. O de Otelo, como o próprio diz, é o de manter o contágio jardinófilo. Tratam-se todos por tu. Uns percebem mais de bambus, outros mais de couves. “Cada um tem  a sua valência e falamos uns com os outros”. 

Uma das dinamizadoras assumiu a responsabilidade de fazer a palavra chegar aos outros logradouros do bairro. Este cuidado tem criado comunidade e a vizinhança aplaude. Quem visita, leva as ideias para o seu quarteirão. E o Jardim das Delícias quer contagiar todos.

Inclusivamente, já tiveram visitas de escolas, o que se tornou das experiências mais gratificantes para estes jardineiros. Um grupo de alunos deixou sementes de tomate, fazendo com que agora tenham várias variedades, incluindo cereja e chucha. Num logradouro que é português, claro que também não faltam couves, da portuguesa à galega. 

Esta bolha segura ao ar livre não foi apenas para os que ali viviam, as crianças podiam trazer os colegas e amigos sempre que possível. 

E por falar em papéis e crianças, o papel destas começa a ficar cada vez mais claro, manter o equilíbrio. Sinceras até aprenderem o contrário, disseram-lhe a certo momento: “Otelo, estás a colocar flores em todo o lado”. 

Uma vez que para a vida em comunidade o que importa é o equilíbrio, não se comprometeu a terra destinada a brincadeiras. As hortas é que se viram cercadas de flores. E até isto se revela uma vantagem, pois a experiência deste jardineiro diz ser proveitoso para as culturas. 

O desenvolvimento das crianças no jardim

Se a pandemia afetou negativamente o desenvolvimento da maioria das crianças, ali isso não aconteceu. Também não há ansiedades nem depressões. Dizem os pais, suspeitos apenas se não houvesse a confirmação dos professores. 

Recordam-se de um momento na escola em que as crianças tiveram como desafio desenhar uma árvore. O Rafael, que faz parte desta comunidade jardineira, foi o único que desenhou a árvore com raízes. Quando lhe perguntaram o motivo, respondeu prontamente: “As árvores têm uma parte que está enterrada”. 

Com quatro anos, entendia algo antes das outras crianças, que o mundo é mais do que se mostra à superfície.

No jrdim há vários brinquedos. Foto: Rita Ansone.

O Rafael revela que vai com a mãe – Guida – de pijama regar as plantas, quando já não está calor. Apurou-se que assume isso como missão porque é “preciso regar e cuidar daquelas e daquelas”. 

Gosta das plantas porque são bonitas e isso basta.

Dantes, muitas crianças nem varanda tinham, estas corriam,  carregavam lixo como podiam, descobriam caminhos e brincavam. “Foram três gerações, os miúdos, os pais e o avô”, remata Otelo.

Aprender com a terra

“A jardinagem é um pouco como cozinhar, só temos de aprender. É fundamental entender os ciclos, e faço muitas experiências sem que todas resultem”.

O jardim tem-se plantado de muitas formas. Sem pudor, como qualquer jardineiro de guerrilha, confessa: “Vejo o que se dá por cá, nos jardins à volta, corto um bocadinho, como quem diz roubo, e introduzo no jardim”.

Há sempre o cuidado de não introduzir nada que se aproprie do jardim e do trabalho árduo de todos.

Quem olha pelas plantas entende melhor o impacto das alterações dos nossos tempos, nomeadamente a seca e ondas de calor. Este oásis, como todos, está em risco, que o digam as folhas e os frutos das árvores. 

Por momentos, no ano passado pensaram que a amoreira tinha abandonado o jardim. Deu frutos, mas secou por completo. As figueiras perderam folhas em junho. Depois, ressurgiram as folhas, sem que, mesmo assim, viessem os frutos. 

É entre estas e outras árvores, como abacateiros e nespereiras, que fica a horta que muito dá, especialmente ervas aromáticas que ativam o seu cheiro: manjericão, cebolinho, hortelã, tomilho, alecrim e salsa. Nos restantes cultivos, são as abóboras que têm autorização para  dominar o espaço. Trazem memórias de uma infância que se passou no Alentejo, de abóboras que trepavam casas e quase que saiam do telhado, justamente para fugirem à humidade que só toleram na raiz.

Há uns tempos levaram tomates para a terra. Torceram o nariz. “De Lisboa? Não devem saber a nada”. Mal se provou, desdisse-se. Afinal, na cidade, com “água, amor e composto”  é possível produzir delícias. 

Há um compasso de espera de um ano, entre a colocação do material verde no muro compostável e o seu aproveitamento para nutrir o Jardim das Delícias. Delimita fronteiras e nutre a terra. O que é bom, assim salvaguardam-se os anos do solo e os percursos.

Otelo, em jeito de confidência, na esperança que os céus ouçam, diz: “Do que precisamos é de invernos e primaveras com chuva.” É a chuva que, num processo simbiótico, irá conferir propriedade às bactérias e fungos para fazerem o seu trabalho. Estamos todos à espera disso. “Sem humidade ficamos como Marte”. 

“A horta de seis em seis meses dá, o  jardim é o que nunca está pronto.”

E isto dá-lhe um gozo tremendo. “Acho que o gosto da jardinagem nasceu comigo, talvez sejam memórias ancestrais.”

A ajuda mais ansiada é o fornecimento de água para a rega.

“Cada bairro deveria ter aproveitamento das águas residuais, não me sinto bem a usar a água que é para beber, quando temos estas ondas de calor”, confessa.

No entanto, é precisamente a isso que as temperaturas, de ano para ano, obrigam: regar mais.  

A apropriação do espaço, que ganhou vida de comunidade, teve proveitos além do convívio e da comida. O lixo, as seringas e as garrafas não tornaram a surgir com as noites. 

Agora, as novas companhias do Jardim chegam por bem, como um senhor de Sintra, que encontra ali o refúgio para as pausas de almoço.

Foto: Rita Ansone.

Há muito para descobrir. A dada altura, pelo percurso, surge na árvore um gato a descansar numa plataforma de madeira. Um protótipo do que poderia ter sido uma casa na árvore. Os gatos não se chateiam do projeto ter sido arquivado. 

Se a cidade ficou à porta do texto, é altura de regressar. Despedimo-nos com um convite, assente nas promessas de partilhar o que a terra há de dar, esperançosos que o Jardim da Delícias continue a contagiar os bocados de terra descoberta que Lisboa tem. Os vegetais ficarão por provar, mas é uma delícia saber o que têm feito.


Leonardo Rodrigues

Leonardo Rodrigues

Nascido na Madeira, o seu coração ficou por Lisboa. Estudou comunicação na FCSH – UNL e fotografia no Cenjor. Depois de muitos ofícios, é a contar histórias que se sente bem. Acha que não existem histórias pequenas, anseiam é por ser bem contadas. Quando não está a escrever, é aprendiz de jardineiro. @leonismos no Twitter.


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5 Comentários

  1. Bom dia, estes logradouros eram a minha delicia na minha infância. Tenho boas recordações das brincadeiras vividas neles e o lado espetacular é que cada inquilino tinha um lote de terreno e tratava-o com muito zelo e amor. Em prédios com 3 pisos e r/c, ao todo existiam nas traseiras dos prédios 8 quintais. Depois os andares foram vendidos pela Seg.Social aos inquilinos e as casas foram vendidas e os novos inquilinos/proprietários que não tinham essa cultura, abandonaram esses espaços… Folgo em saber que os novos residentes voltam a empenhar-se nesse bem estar.

  2. A Turma A (2021-2025) da Escola dos Coruchéus (paredes meias com o jardim) visitou o Jardim das Delícias e plantou um também dentro dos muros da escola.

  3. Fico muito contente por saber destas notícias adorava ter um espaço assim na minha zona e vejo que é possível com este exemplo incrível, por enquanto fico com a minha varanda que me dá muito prazer mas quem sabe um dia mais tarde….. adorava.

  4. Muito obrigado pelo seu artigo.
    É deste tipo de notícias que necessitamos para percebemos o verdadeiro sentido da vida.
    Bom final de semana

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