Pedro Mafama Alfama
Pedro Mafama com a Diana Rodrigues e o Mário Tó, das Marchas de Alfama. Foto: Rita Ansone

Caminhar com Pedro Mafama pelos becos e ruelas de Alfama é assistir à consagração de um novo herói local. Passa despercebido entre os turistas, mas poucos são os moradores que não lhe estendem a mão, que não o recebem com um sorriso aberto como se fosse um amigo de longa data, ou que não o agarram para um abraço e um beijinho.

Por um lado, claro, é a sua música.

O novo álbum, “Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente”, está cheio de marchas populares, música de baile e rumbas feitas à sua maneira.

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Marcha Bonita de Pedro Mafama

“Adormeço e acordo a ouvir a tua música”, atira um residente de meia-idade, com uma T-shirt dos Metallica, na esplanada de um restaurante onde está acompanhado de meia dúzia de colegas. “Anda beber uma cerveja connosco!”

Mafama está com pressa e deixa encontro marcado para quarta-feira, 7 de junho. Vai apresentar o novo álbum em frente do Centro Cultural Magalhães Lima, ali mesmo em Alfama, num concerto enquadrado nos Santos Populares.

Mas não foi só por temas como “Preço Certo”, “Estrada” ou “Marcha Bonita” que Pedro Mafama caiu nas graças de Alfama — o mais antigo dos bairros de Lisboa, onde persiste uma comunidade relativamente fechada, quase como se fosse uma “ilha” na capital, como o próprio a descreve.

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Pedro Mafama foi convidado para escrever uma das canções da Marcha de Alfama deste ano, “Daqui Não Saio, Daqui Ninguém Me Tira”, que foi apresentada na Altice Arena no domingo e que na noite de Santo António estará em destaque no desfile da Avenida da Liberdade.

Uma marcha que fala dos que saíram do bairro

Mafama cresceu na Graça, mas naturalmente sempre passou muito tempo em Alfama. Convivia na escola com pessoas do bairro, e quando começou a fazer música frequentava ali um estúdio. A sua proximidade acentuou-se a partir de 2019, quando ele e o realizador André Caniços visitaram o Centro Cultural Magalhães Lima, onde a Marcha de Alfama ensaia, para ali gravarem parte do videoclip de “Lacrau”.

Mário “Tó” Rocha, alfacinha de gema, é responsável pelo centro cultural há 40 anos. “Logo em conversa vi que eram pessoas puras e sinceras. Então, enquanto presidente da coletividade, disse logo: vocês estão na vossa casa. No ano passado, o Pedro telefona-me a perguntar se poderia vir a esta sala [do Magalhães Lima] confraternizar nos anos dele. Com certeza, à vontade. Veio com os amigos, alguém viu no Facebook e a minha sobrinha telefonou-me: ‘Tu sabes quem é esse rapaz? Oh tio, olha que ele é muito para a frente. Vamos convidá-lo a fazer uma música para a Marcha de Alfama’.”

Pedro Mafama Marchas Afama
Pedro Mafama com Diana Rodrigues e Mário Tó. Foto: Rita Ansone

Mário nunca marchou, mas sempre ajudou em toda a logística. A mãe foi a primeira da família a marchar, na primeira vez que foram organizadas marchas competitivas, em 1932.

O convite não tardou a oficializar-se, até porque o coordenador da marcha, João Ramos, tinha passado a admirar o trabalho de Mafama depois de descobrir a sua envolvência em “Casa Guilhermina”, de Ana Moura.

“Foi polémico mas adorei esta nova forma de cantar da Ana. Então achei que fazia sentido trazer este homem para as marchas populares, pareceu-me que poderia ser um caminho alternativo”, explica Ramos, que em 2023 celebra 20 anos de Marcha de Alfama.

“Quase que chorei, não sei se não chorei mesmo [risos]”, diz Mafama sobre o convite. “Nunca tinha estado por dentro de uma marcha, mas as memórias de ouvir e ver os ensaios na escola era algo muito forte. As melodias, os enfeites… e agora descobri o espírito, que só se vê por dentro. É uma coisa mesmo linda.”

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A homenagem aos estivadores e uma mensagem oportuna

Foi João Ramos quem idealizou, como sempre, o tema da marcha deste ano. “Alfama esteve sempre muito ligada aos estivadores. Sendo eu natural da Pampilhosa da Serra, lembro-me perfeitamente que grande parte das pessoas que iam para Lisboa trabalhar nos anos 60 e 70 iam para a estiva, e instalavam-se em Alfama.”

Mário Tó também foi estivador, tal como o pai e o irmão, José Júlio, que dá nome ao salão principal do Magalhães Lima. “Esta foi não só uma forma de homenagear os estivadores, como também as pessoas que vieram da Pampilhosa da Serra e de outros sítios e que fizeram parte deste bairro”, afirma o homem de 67 anos.

Independentemente da temática maior, Mafama tinha um “objetivo muito claro” e de “grande responsabilidade”: “Escrever uma canção que os marchantes sentissem como deles”.

A missão foi cumprida, como garante Diana Rodrigues, marchante de 19 anos e neta de Mário Tó. “A música que o Pedro fez é muito sentida. Levámos a letra muito a peito. É um grito de todos os bairristas, de que nós já não estamos aqui mas isto ainda é nosso. Somos 50 marchantes e só 8% ou 10% é que consegue habitar aqui. Quase ninguém está no bairro.”

Pedro Mafama Marchas Alfama
“Quase que chorei, não sei se não chorei mesmo”, diz o músico Pedro Mafama, sobre o convite que lhe foi feito. Foto: Rita Mafama

Pedro Mafama quis aproveitar a oportunidade para “marcar uma posição” e “dar voz” a Alfama, “num momento em que precisa mais do que nunca de se orgulhar de si mesma”. “Há uma coisa curiosa a acontecer. Com a gentrificação, grande parte dos marchantes já não mora no bairro mas volta a casa, para as marchas, e isso faz com que os bairros passem a ser uma identidade em vez de um sítio físico onde as pessoas vivem.”

João Ramos regressou à Pampilhosa da Serra, embora tenha sido opção dele. “Hoje os bairros estão completamente desertificados, as pessoas tiveram todas que sair porque não tiveram capacidade económica para responder às rendas que lhes foram propostas. O que quisemos dizer é que podemos ir para outro sítio, para onde tivermos que ir, voluntariamente ou não, mas as nossas raízes ficam aqui. Portanto, quando e sempre que for necessário reafirmar o apego, o orgulho e tudo aquilo que Alfama representa para nós, estaremos aqui. Podem mudar-nos, mas não ousem pensar sequer que vamos deixar de gostar do sítio onde nascemos ou crescemos.”

Mário Tó sublinha que houve uma mudança grande nos últimos anos: “Há 10 anos, saía de casa e dava os bons dias. Hoje saio de casa, digo bom dia e respondem-me bonjour ou good morning. Tenho uma filha que adorava estar aqui a viver, a minha Rute, e teve que se ir embora porque o senhorio ou o homem que comprou o prédio quis ficar com a casa. Teve de comprar uma casa no Sobralinho, embora tenha raízes aqui e nunca tenha querido sair daqui. Ainda hoje espera vir para cá, mas as rendas estão tão caras que é muito difícil. E o ordenado que recebem também não ajuda.”

Mas… “Alfama e a tradição deste bairro nunca há-de acabar. Há-de vir outra geração que vai pegar nisto. Pode ser mais para a frente, com coisas mais modernas, mas nunca vai acabar”, garante.

A ligação com o novo álbum de Pedro Mafama

Pedro Mafama entrou no universo da Marcha de Alfama, mas a Marcha de Alfama também deixou a sua marca no novo disco de Pedro Mafama.

À medida que o músico ia construindo o disco, foi percebendo que, ao contrário de “Por Este Rio Abaixo”, não pretendia recuperar (e reinventar) a herança cultural nacional de outrora.

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“Não só usei as marchas como universo no meu disco, mas como género musical”, diz Pedro Mafama. Foto: Rita Ansone

“No meu último disco ia procurar música de recolha, a música que já se perdeu, dos pescadores no Algarve ou da Catarina Chitas, de Castelo Branco… São tudo coisas que já não existem. O próprio discurso do álbum era mais chateado, remexia e questionava quem é que nós somos… Até a minha postura nas entrevistas era muito mais de guerra. E era uma guerra contra as ilusões do nosso passado e a narrativa que construímos para nós mesmos. Isso deixou-me com um desejo de partir para o presente. Por isso é que tens rumbas, marchas, bailes, porque não é uma tradição longínqua que se está a perder. É uma coisa que está viva.”

Ao mesmo tempo, queria refletir a fase mais “alegre” da sua vida, com a relação com Ana Moura e o nascimento da filha de ambos, Emília.

“Foi perceber que já não queria fazer música melancólica e fadista… Já não refletia aquilo que eu era e o sítio onde queria estar. Dava por mim às duas da manhã, a escrever com um copo de vinho, voltavam os mesmos sentimentos e aquilo não me cabia bem. Porque não era honesto com o presente e não queria estar sempre a voltar para o mesmo sítio. Então comecei a escrever de dia, a procurar a minha saída do labirinto da melancolia.”

As “marchinhas” da música brasileira, dos primórdios de Caetano Veloso ou Chico Buarque, ajudaram-no a idealizar um novo conceito artístico.

“Porque sempre disse que não conseguia fazer música alegre e interessante. E essa alegria existencialista e filosófica dos brasileiros fez-me perceber que há um sítio alegre onde posso estar, e musicalmente consigo ver a saída — que são as marchas, as rumbas e os bailes — e consigo pensar num lugar que é mais estimulante do que o lugar confessional, fadista. Os brasileiros deram-me um exemplo claro de poder ser uma pessoa diurna, inteligente, filosófica, mas feliz e leve. Procurei muito essa leveza para este álbum e as marchas deram-me isso, porque desbloquearam-me um lugar de escrita que é a descrição da cidade. Ou seja, através das marchas consegui virar-me para fora e não estar só a falar do que se passa cá dentro.”

Por isso é que, em “Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente”, ouvimos Pedro Mafama a descrever as velhotas coscuvilheiras, os taxistas resmungões, os carros que passam kizomba ou os barcos no Tejo “nesta cidade esquecida, sempre em festa e sempre em crise”.

“Com as marchas encontrei poesia nisso.”

Outro fator determinante é que Pedro Mafama pretendia colaborar com pessoas que “vivem estes géneros musicais todos os dias”. Como tinha três marchas no disco, convidou o líder do cavalinho da Marcha de Alfama, Luís Rodrigues, para fazer os arranjos dessas canções. Também procurava pessoas que pudessem ajudar nos coros, e Diana Rodrigues foi uma das marchantes que se voluntariaram para participar no álbum.

“Fazer parte do disco do Pedro Mafama foi o auge”, comenta Diana, que cantou em “Virou!” e “Marcha Bonita”, tal como outras pessoas da Marcha de Alfama, incluindo a sua prima Vanessa, a ensaiadora da marcha.

“Não só usei as marchas como universo no meu disco, mas como género musical. É um género musical muito próprio, com melodias e ritmos muito próprios, e deve ser reconhecido como tal. É algo tão contagiante e lindo”, diz Mafama.

A capa do novo disco de Pedro Mafama.

A capa do disco é uma fotografia de um bolo típico de pastelaria portuguesa, que, por sua vez, tem uma imagem estampada — Pedro Mafama com dois amigos próximos, numa fotografia tirada precisamente no Centro Cultural Magalhães Lima, num arraial que serviu de sessão fotográfica (ou vice-versa).

“Estas músicas que o Pedro está a fazer, principalmente quando fala no bairro e nas marchas, além de nos dar visibilidade, dá-nos força para não deixarmos esta tradição morrer”, defende Diana Rodrigues. “Mostra como é um bairro, que as marchas não são só desfiles na Avenida e num pavilhão. Temos todos uma história e uma forma de viver, uma vivência de ano inteiro…”

Este disco — muito ligado aos típicos bairros lisboetas mas também a outras regiões do país, como se pode notar pelo cante alentejano ou pela música cigana — está, mais do que nunca, a conseguir romper barreiras e a chegar ao cidadão comum. Mafama já não é apenas o músico urbano de nicho, do público jovem e alternativo. E isso nota-se nos cafés, nos carros, nos arraiais que já começaram neste mês de festas em Lisboa.

Alfama Festa Santos Populares
Foto: Rita Ansone

Como manifesta em “Vida Airada”, Mafama trocou mesmo “a cor do bailarico”, esbatendo a fronteira entre alta e baixa cultura.

“Sempre foi a minha intenção. Era algo que sentia falta, que a minha música chegasse às pessoas que inspiram esta música. Nunca quis fazer música de elite cultural. E estar a conseguir fazer isso está mesmo a ser bonito e não o fiz com sacrifício. Não houve nenhum esforço artificial.”

“O Pedro foi-nos surpreendendo”, comenta João Ramos. “Gostava do trabalho dele e da marcha que ele fez, mas tão importante quanto o Pedro artista foi o Pedro homem — que está ao nível. Soube conquistar um povo que não é fácil. E as pessoas olham para ele como mais um, e ele tem sempre a postura de mais um — não tem a postura de ‘eu e os outros’. Ele mistura-se, participa em movimentos importantes de afirmação de unidade, almoça, convive, bebe uns copos… É por aí que as pessoas vão ganhando o lugar nestes bairros.”

*Ricardo Farinha Nasceu em Lisboa e sempre viveu nos arredores da capital, periferias que lhe interessam particularmente. Conta histórias em modo freelance, sobretudo ligadas à área da cultura.

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