Numa ocasião rara, lado a lado e em debate estiveram esta quarta-feira arquitetos e representantes das entidades responsáveis pelo lançamento de concursos públicos para a construção de fogos de habitação acessível em Lisboa – a empresa municipal Lisboa Ocidental Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) e o Instituto de Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). É que a habitação não é hoje tema que se debata numa única mesa redonda, mas em várias, perante a urgência da crise habitacional na cidade.

Foi por isso que várias dezenas de arquitetos responderam à chamada do Centro Cultural de Belém (CCB) e encheram as cadeiras do átrio do Grande Auditório numa sessão subordinada ao tema dos concursos lançados para a criação de fogos habitacionais acessíveis.

Do lado das entidades responsáveis pelo lançamento de concursos de habitação acessível em Lisboa estiveram Fernando dos Santos Almeida, vogal do conselho diretivo do IHRU, e Susana Rato, arquiteta da SRU, e do lado dos arquitetos marcaram presença Sérgio Antunes, vice-presidente do conselho diretivo da secção regional sul de Lisboa e Vale do Tejo da Ordem dos Arquitetos (OARSLVT) e responsável pelo pelouro da encomenda, Luís Santiago Baptista, arquiteto e diretor do Jornal Arquitectos (JA), Paulo Martins Barata, arquiteto e crítico e Inês Lobo, arquiteta e coordenadora da Comissão Técnica Habitação da Ordem dos Arquitetos. 

A moderação esteve a cargo de Marta Sequeira, curadora da exposição Habitar Lisboa, e Paulo Tormenta Pinto, diretor do DINÂMIA’CET-ISCTE.

“Densificar deve ser uma oportunidade para resolver outros problemas”

Durante o debate, a arquiteta Inês Lobo deixou o seu olhar sobre Lisboa. Lembrou que os investimentos anunciados no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para criação de mais de 26 mil novos fogos até 2026 significam, para as cidades, a densificação do seu território. Em Lisboa, encontra um município com “metade da densidade definida para uma cidade compacta” e com potencial para densificar.

No âmbito das oportunidades para a construção de habitação abertas pelo investimento de 2,7 mil milhões de euros do PRR, destacou a oportunidade de pensar o território e unir as “descontinuidades” urbanas da cidade, dando como exemplo Marvila.

“Este é um momento de urgência”, afirmou a arquiteta, no final do debate. “Encaro isto como uma oportunidade e densificar deve ser uma oportunidade para resolver outros problemas”, disse, destacando o caso de Marvila, lembrando que a cidade tem “questões por resolver – a requalificação do seu espaço público, a eficiência como a água circula pela cidade – o problema das cheias”. Estes desafios, diz, implicam “que tenhamos inteligência a decidir como densificar”.

A oportunidade sublinhada por Inês Lobo, que nas últimas eleições autárquicas foi a segunda candidata à Câmara Municipal de Lisboa na lista Mais Lisboa, encabeçada pelo ex-presidente da câmara, Fernando Medina, foi também seguida pela arquiteta da SRU, Susana Rato, que falou no “entusiasmo” com que os técnicos e arquitetos da empresa municipal encaram a tarefa de pensar territórios da cidade com desafios e espaço para densificar, como é Marvila.

O debate passou do palco, onde se sentaram arquitetos e as entidades responsáveis pelo lançamento de concursos de habitação em Lisboa e ouviram-se críticas ao modelo escolhido para o lançamento de concursos públicos, com o foco apontado ao elevado número de horas de trabalho empregues por ateliês de arquitetura em candidaturas, que muitas vezes terminam sem qualquer pagamento ou entrega de prémio monetário.

Recorde-se que no âmbito do PRR, e com um apertado prazo de execução – até 2026 – devem ser concretizados 26 mil fogos habitacionais para dar resposta a situações identificadas de habitação indigna em todo o país, como a que recentemente demos conta, num edifício de habitação pública, em Lisboa. Só no município, de acordo com a Estratégia Local de Habitação de Lisboa, estão identificadas 8164 situações de carência habitacional.

Em Lisboa, a SRU avançou até ao momento com 15 concursos destinados à produção de fogos com rendas acessíveis, totalizando 1345 habitações. Só em Entrecampos, no Loteamento Forças Armadas, estão a ser construídos 476 novos fogos habitacionais. Do lado do IHRU estão previstos vários investimentos em habitação no concelho de Lisboa, entre os quais 100 fogos na Rua de São Ciro, na freguesia da Estrela, 168 fogos na Quinta das Conchinhas, o Bairro do Condado, em Marvila, e de 266 fogos na Quinta Baldaya, em Benfica.

À margem do debate, Fernando dos Santos Almeida, do IHRU, anunciou que a obra deverá levar 9 meses, a partir do momento do seu arranque, e deverá estar pronta daqui a 20 meses.

Questionado sobre o aumento do custo dos materiais de construção e possível impacto na exequibilidade da concretização de 26 mil fogos até 2026, o vogal da direção do IHRU diz esperar “que não haja essa influência” e anunciou que o IHRU está a “desencadear junto da Comissão Europeia alguns procedimentos para solicitar mais verbas”. “Não esquecer que entre dezembro de 2019 e dezembro de 2022 o custo de construção subiu 22%”, sublinha.

Entre outros investimentos do IHRU, está ainda prevista a criação de fogos habitacionais no antigo Hospital Miguel Bombarda e em antigas estruturas militares, como é o Quartel Cabeço da Bola.

No âmbito do PRR, o IHRU lançou, até ao momento, 27 concursos, totalizando cerca de 3040 fogos. Só na Área Metropolitana de Lisboa (AML), o IHRU já lançou 15 concursos de conceção para um total de 1345 habitações.

À margem do debate desta quarta-feira, a Mensagem falou com a arquiteta Inês Lobo e com Fernando dos Santos Almeida, da direção do IHRU. Vídeo: Rita Ansone | Edição: Inês Leote

“A possibilidade de escolher onde vivo”

Sobre a exequibilidade dos investimentos anunciados para a habitação no âmbito do PRR, Inês Lobo diz “querer acreditar que é possível”, mas assume que “eventualmente não será”, acrescentando que teremos de “continuar a encontrar mais formas de construir mais habitação”.

Sobre a conversa desta quarta-feira, a arquiteta destacou “o enorme número de arquitetos que vieram assistir e participaram na discussão – é uma coisa que devia acontecer muitas mais vezes”, diz, acrescentando que “a arquitetura tem-se demitido um pouco da reflexão sobre o que deve ser a cidade, em primeiro lugar, e o que deve significar a densificação da cidade”.

Inês Lobo explicita o desafio que hoje a classe dos arquitetos enfrenta – a “necessidade de construir mais habitação”. Refere-se à crise da habitação em Lisboa como a falta de “direito à habitação adequada, que tem a ver com o direito à escolha, com a possibilidade de escolher onde vivo, de poder viver num sítio que tem as qualidades todas de que necessito para a minha vida hoje”.

O PRR prevê 1211 milhões de euros a fundo perdido para pôr fim a situações de habitação indigna e ainda 775 milhões de euros em empréstimos destinados à produção de habitação a custos acessíveis.

Dois debates e uma exposição para criticar a habitação “tendencialmente homogénea e convencional”

Este foi o primeiro de dois debates em torno do tema da habitação e teve como objetivo fazer um balanço provisório dos concursos já lançados

Os arquitetos presentes reclamaram, ao longo de cerca de duas horas de discussão, por mais espaço para a apresentação de propostas diferentes e pela possibilidade de pensar os territórios através de abordagens diferentes, criticando aquilo que consideram ser o “copiar e colar” de alguns dos projetos vencedores de concursos de conceção já realizados.

Depois do debate “Balanço da habitação em concurso”, no próximo dia 10 de maio decorre a segunda e última conversa, desta vez sob o tema “Bairros PER. Presente e futuro”, no ano em que se celebram os 30 anos do Plano Especial de Realojamento (PER). Este debate vai contar com a participação da vereadora da habitação de Lisboa, Filipa Roseta, Marco Allegra, investigador no ICS-ULisboa, Gonçalo Antunes, geógrafo e investigador na NOVA FCSH, e com os arquitetos Nuno Valentim e Paulo Tormenta Pinto.

Programas como o PIMP (Programa de Intervenção a Médio Prazo) ou o PER (Programa Especial de Realojamento) – criado em 1993 para dar resposta às necessidades urgentes de realojamento -, constituíram alguns dos maiores investimentos públicos no acesso à habitação das últimas décadas.

Na altura, estavam sinalizadas 11129 famílias com necessidades de realojamento no município de Lisboa. Ao abrigo dos dois programas, ficou resolvida a situação de 19711 famílias, que viviam em barracas ou habitações indignas na cidade.

A Mensagem é parceira de comunicação deste ciclo de debates, organizado pela Garagem Sul CCB em parceria com o DINÂMIA’CET-ISCTE. Estas duas conversas antecedem a realização da Exposição Habitar Lisboa, com curadoria de Marta Sequeira e que poderá ser visitada entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024 na Garagem Sul do CCB.

A exposição vai servir de montra para muitos dos projetos não vencedores dos concursos já lançados e pretende lembrar que “uma grande parte dos projetos concebidos por arquitetos não chega a ser construída” e que, hoje, “hoje, a habitação que se constrói é tendencialmente homogénea e convencional”, lê-se em texto que antecipa a montagem da exposição.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

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1 Comentário

  1. O que tem de ser densificado é a Grande Lisboa de 400 km2 e 1 milhão de pessoas (Lisboa, Oeiras, Amadora, Odivelas, Loures). A solução está aí e não no pequeno município de apenas 100 km2 que é Lisboa.

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