Um jardim, alguns brasões e três imigrantes entram numa polémica e… Eu sei, eu sei, o início da crónica lembra aquela cansada anedota que todos já ouviram, mas digo logo que, no caso destas mal tecladas linhas, certamente não terá a mesma piada no fim, pois o jornalismo – como algumas piadas – tem isso de às vezes não ter graça.
Como também tem isto de se conviver com as críticas e o mau feitio das redes sociais. Afinal, a relação com os leitores é um casamento, passível de queixas e ranzinzices.
É como na canção do Vinícius, eterno enquanto durar, até que a morte e o unfollow os separe. E vez ou outra, também como os casamentos, sujeito às embaraçosas e inevitáveis discussões de relação.
Assim, cá estou para sentar no divã virtual e trocar duas palavrinhas com quem está do outro lado do ecrã.

Duas palavrinhas não sobre a crítica per se, pois o direito de criticar é inalienável e sagrado, seja a crítica justa, necessária, construtiva ou injusta, delirante, nada a ver, conspiratória ou mal intencionada, mesmo que cada uma desses tipos de crítica jogue um jogo distinto no campo da democracia.
As palavrinhas são sobre como o zumzumzum das timelines na órbita de um artigo de minha lavra publicado aqui na Mensagem pode servir de barómetro ao (mau) humor da sociedade portuguesa.
Uma sociedade cujo debate político parece ter abandonado o clinch democrático, o corpo a corpo da troca de argumentos, ora um direto de esquerda, ora um gancho de direita, numa eterna luta por pontos, sem que necessariamente um dos duelistas leve o outro ao nocaute.
No pugilato democrático, o nocaute de um dos participantes não pode ser o nocaute da própria democracia. O que interessa é a luta retórica no ringue das ideias, preservando a integridade de quem combate dentro da constituição, sem golpes baixos.
O texto em questão é a história da reinauguração do Jardim do Império, a cobertura de dois imigrantes, o brasileiro aqui e a fotógrafa letã Rita Ansone, e que teve como personagem central um terceiro imigrante, o calceteiro cabo-verdiano que com o bíblico suor do seu rosto cunhou os polémicos brasões alusivo às antigas colónias de Portugal.
A peça também deu voz aos jardineiros, operários que, com o calceteiro, foram quem realmente ergueu o novo jardim, mas que durante a cerimónia de inauguração ficaram de lado, à margem, enquanto os políticos de sempre recebiam as loas e a atenção dos media.

Para esta matéra não havia um guião: a ideia era, em free style, observar a inauguração e escrever a respeito dela. De forma que eu não sabia que lá encontraria um calceteiro nem que seria cabo-verdiano, assim como não suspeitava da presença dos jardineiros.
Acontece que como imigrante sei muito bem o que é não ter voz. O que é comumente pregar para o deserto – os ouvidos europeus geralmente um Saara – árido até o último grão.
E agora, com a rara oportunidade de ter voz e de ouvir voz a quem quase nunca é ouvido, não tive dúvidas de que a matéria seguiria por ali, na minha praia, entre os meus, na ponta mais frágil da corda, os imigrantes. E, por empatia, os operários portugueses.
Foram as fontes que elegi.
Só que calhou de tanto o calceteiro como os jardineiros minimizarem a polémica central do novo jardim, a manutenção dos brasões coloniais. Minimizarem, não, solenemente ignorarem: para todos eles, a questão havia passado à margem.
Um alheamento que poderia ser tanto um sinal de desinformação como de sabedoria, pois quem está no lado mais frágil da corda sabe que o mais prudente às vezes é silenciar.
O meu desejo secreto inconfessável era de o calceteiro e os jardineiros se rebelarem contra a opressão do eterno colonizador e do patrão – na maioria das vezes, a mesma pessoa – erguerem as suas ferramentas de trabalho e, de martelo e foice em punho, partirem os brasões do novo jardim.
Isso é que era.
Mas sem o martelo de calceteiro ou a foice dos jardineiros a manifestarem-se contra a opressão do colonizador e dos patrões, paciência: o jornalismo não é como a indecorosa proposta do presidente do PSD de se buscar um imigrante à medida.
Se o calceteiro dos brasões disse que estava orgulhoso pelo seu trabalho, era isso o que tinha para o texto. Dei-lhe o microfone e ele disse o que sentia, pensava ou queria dizer.
Uma declaração que poderia, essa sim, suscitar uma reflexão e um debate necessário:
Pois um imigrante não ver problema em cunhar o brasão do seu próprio país numa ode ao processo colonizador, independentemente de ser por desconhecimento ou sabedoria e instinto de sobrevivência, talvez diga muito sobre a herança maldita desse mesmo processo.
Essa era a história dentro da história.
As redes sociais, porém, preferiram o caminho mais fácil e conveniente, o silogismo preguiçoso, conspiratório e oportunista.
Entre as críticas à esquerda, estava a sugestão de que a matéria usava deliberadamente um cabo-verdiano, pois os cabo-verdianos são o “fetiche das eleições de Portugal”, com a bênção do “governo de Cabo Verde e das elites lusofossilizadas”, ou ainda a cansada crítica-cliché de que a Câmara de Lisboa havia pago pela peça.
Mais à direita, mas muito bem mais à direita, chegando na extrema-direita, o alerta sobre a polémica dos brasões ser parte da “purga ideológica típica da esquerda”, um dos “grandes cancros na sociedade portuguesa”, ou ainda o apelo para que essa “gente antipatriótica” não apague a história, como “fizeram com a ponte Salazar”.
Um tresloucado apelo que terminava de forma patética, a sugerir que “se querem dar nomes, façam primeiro as obras e batizem”.
Quem fez e batizou o Jardim do Império todo mundo sabe quem foi, num outro tempo, num outro Portugal. E o mais natural e justo agora era que o jardim tivesse o mesmo destino da ponte, deixasse para trás o mau gosto dos brasões e talvez até mudasse de nome.
Isso é o que penso e deixo claro aqui, pois a crónica é o espaço para isso.
No texto da inauguração do novo jardim, concentrei-me no que vi e ouvi das fontes que escolhi, para contar uma das versões daquela história, a versão de quem colocou a mão na massa para construir o jardim.
Pois, há sempre histórias e histórias, que precisam ser contadas e contextualizadas.
A história da colonização poderia ser contada como reflexão para as atuais e futuras gerações, mas assim como os textos opinativos, num lugar apropriado, num memorial, como tantos outros memoriais registam os atos nada nobres dos países. Não num jardim que convida a um alegre passeio sobre o sangue e o sofrimento de milhões.

Como está, o novo Jardim do Império nasce velho, um hectare de betão e plantas que não honra o passado nem o presente de Portugal. Oportunidade perdida para mostrar a grandeza de um país que agora se volta para o mundo, não com o punho fechado de um cruel colonizador, mas com uma mão generosa estendida para receber quem busca oportunidade, segurança e paz.
Uma paz que corre lá seu risco quando o diálogo e a capacidade de reflexão perde espaço numa sociedade que prefere enxergar um texto – que certamente tem lá seus erros e poderia ser melhor escrito – como uma ação deliberada contra ou a favor de tal ponto de vista, de tal força, de tal causa.
Um delirante ruído que, se interessa a alguém, não é à democracia.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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Muito bom O MENSAGEM…o olhar oe quem é de fora se faz necessário para compreendermos quem é quem neste jogo de ” Casa Grande e Senzala”…os tempos passaram mas a mentalidade do colonizador e do colonizado ainda permanecem. Mãos estendidas e Acolhimento: vamos refletir sobre isso ?