“A casa custa, queremos vida justa.” A frase de ordem fez-me virar a cabeça. Era ele, ali na manifestação Vida Justa, em frente à Assembleia da República. Cartaz, voz rouca, braços erguidos e os brancos. Os brancos eram uma novidade. Colonizaram-lhe a cabeça como arames torcidos e retesados em vedações arrombadas.

Conheci o Mata-Bófias meio adormecido sob o seu chapéu de pala. Recostado no banco à entrada do Flor da Selva, o primeiro café do bairro quando se deixava a estrada principal. O sol quente causava-lhe dormência. Os braços repousavam em cruz sobre o tronco, com as mãos a desaparecerem entaladas nas axilas.

Mantinha-se meio adormecido, mas permanecia na quieta análise dos carros que passavam. A curva encenada pelos prédios tapava a placa nova que apontava em seta o início da Cova da Moura.

Bidões caídos. Destroços de móveis. Fogões sem os bicos. O lixo a ladear o muro, subia com a estrada e repousava, sem que se visse um caixote. Por ali, não havia recolha da câmara e quem lá vivia afastava o lixo da frente do portão e pouco mais.

Os números improvisados sucediam-se nas ombreiras ou sobre a caixa do correio e alguns repetiam-se na casa seguinte. Talvez por isso, o carteiro valia-se do «Aqui vive José Ruas» escrito a tinta branca no portão de ferro.

A Mensagem esteve na manifestação “Vida Justa” a registar o momento. Foto: Inês Leote

Olhava-se para cima e as paredes davam lugar umas às outras, recortadas na encosta, disformes, pintalgadas ou por pintar, mas orgulhosamente de tijolo, crescendo em altura quando o número daqueles que viviam para lá delas também aumentava. Então, naqueles tempos, chamava-se o vizinho ou um empreiteiro improvisado e montava-se a roldana que levava o cimento ao novo piso. À distância, pareciam construções infantis, que um pé de adulto poderia facilmente derrubar.

Rua Principal. Rua do Moinho. Rua de São Tomé e Príncipe. Rua da Alegria. Nomes escritos pelos moradores nas paredes ou em placas improvisadas labirinticamente. As ruas largas davam lugar a outras mais estreitas e a caminhos entre as casas, onde só passava um de cada vez ou dois de lado.

As janelas partidas, protegidas da chuva por plásticos, irmanavam-se com gradeamentos. Casas abertas, que deixavam o interior a descoberto, eram vizinhas de portas blindadas, muros altos, vidros bicudos espetados nos beirais, a dissuadirem os intrusos.

Uns lavavam a roupa no tanque que permanecia vago na rua sob o estendal a pingar. Outros ostentavam parabólicas, carros de luxo, garagens particulares.

Um Audi A4 empatava a rua. Lá dentro um branco esforçava-se por fazer inversão de marcha, um cabo-verdiano dava-lhe o sinal – “pode passar, não vem ninguém” -, o mesmo que lhe fechou o portão da garagem e lhe poliu o vidro da frente.

Quem vê isto é uma mulher de cinquenta anos, por detrás das grades encaracoladas da janela, sobre um peitoril de rosas. Aquela rua cheirava melhor do que as outras, poucas eram as casas que não ostentavam roseiras crescidas no quintal cercado.

Descia uma branca conhecida. Dava-se os bons dias. Para cima, vinha o carteiro, que se demorava junto de uma neguinha, gingando com a vassoura e limpando, ao som de Gylito – O Diamante Africano, a soleira da porta.

“All equal, all different”, no muro em frente à escola primária aparentemente vazia, seguindo-se a tradução “Todos iguais, todos diferentes”. E duas crianças de tinta,
sorridentes, perfiladas lado a lado, comidas pelo tempo. Quem passava não as via, entrava rapidamente na Barbearia e Cabeleireiro, uma das 23 do bairro – um exagero para os sete mil que lá moravam, mas ao fim de semana não se podia estar com gente de fora.

Trancinhas. Desfrisagens. Milagres nos cabelos das pretas e das brancas. Promessas da dona, recostada e volumosa sobre a cabeça da cliente.

Na sombra, um homem trabalhava tapado pelo capot de um carro novo, estacionado a par de mais dois meio desmontados. Outro dos negócios do bairro: arranjos, bate-chapas, transformações, tuning. A informação era publicitada em cartão, a letra de imprensa, e pendurada ao lado do portão de ferro, semiaberto, ocultando o interior da oficina. O homem levantava a cabeça e permanecia meio oculto, mas interessado no caudal de gente na rua.

A Mensagem esteve na manifestação “Vida Justa” a registar o momento. Foto: Inês Leote

Na parede, três buracos com um centímetro de diâmetro, delimitados pela PSP com tinta vermelha. O último contorno de alguém. Em frente, a lista dos mortos. “Rest in peace: Zé, Gingo, Célé,…”. Dez nomes. Quatro deles, mais frescos na parede, grafitados ainda não fizera um ano. Numa rusga. Num confronto.

Num ataque à polícia. A morte nasce das armas de fogo, porque no bairro não se sabe usar as mãos.

O Mata-Bófias permanecia junto ao Flor da Selva, animado pela experimentação do
Fiat Uno transformado. Jantes douradas. Roncos do motor.

“Nunca matou um bófia” – os amigos gracejavam.

Mata-Bófias desde os 14 anos, quando foi apanhado pela polícia por coisas pequenas. No bolso das calças, escondia um desenho: um polícia espancado com uma marreta. Quando o desenho foi descoberto, apresentou-se: “Eu sou o Mata-Bófias!”.

E, se como diz o rap, a Cova da Moura é um condomínio fechado, ele poderia ser um dos porteiros.

Agora, um porteiro sem casa.


Filipa Martins

É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.

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