As luzes da Igreja de São João de Brito dão cor ao Bairro de Alvalade, numa tarde escura de inverno. É mesmo atrás desta Igreja, conhecida pelo formato em empena, que se esconde uma história de solidariedade e resiliência, ligada a uma outra sobre uma guerra iniciada na Ucrânia, há quase um ano.
Para a contarmos, é preciso descer as escadas de um prédio, até à subcave que há cinco anos servia de casa da porteira. Hoje, a porta de madeira está entreaberta. Do lado de lá, a ucraniana Larissa, de 42 anos, foca os olhos verdes no filho David, de 18. Já o pai, esse está lá longe, ficou na Ucrânia, preso à requisição civil que impede homens maiores de 18 anos de sair do país. E os dois não escondem o quanto temem pela segurança dele.
As preocupações eram outras quando mãe e filho aterraram em Lisboa, em abril de 2022: primeiro, a língua, tudo sons estranhos; depois, a habitação, tão difícil para quem cá vive, ainda mais para quem chega como refugiado de uma guerra.
Mas um grupo de vizinhos uniu-se para inverter a sina deles.


Foi “labrador” a primeira palavra que Larissa aprendeu em português. A culpa é do cão de Rosa, a matriarca da família que começou por acolher esta família em Lisboa, vindos do centro de acolhimento de refugiados na Polónia. “Este foi o meu psicoterapeuta”, a ucraniana aponta para duas fotografias do cão. Ela que sabe bem o papel que os animais podem ter na recuperação de traumas, já que era psicóloga em Kharkiv, a cidade ucraniana onde nasceu.
O retrato deste labrador chama a atenção para a parede onde está pendurado: foram todas pintadas há menos de ano pelos vizinhos do prédio e outros amigos. “Era um crime termos esta casa fechada, no centro de Lisboa, com tanta gente a precisar”, comenta Diana, umas das moradoras de Alvalade, que nos acompanha até à casa de Larissa.
Em março do ano passado, alguns residentes tocados “por esta guerra” quiseram disponibilizar o apartamento (fechado há cinco anos) a uma família de refugiados vindos da Ucrânia.
Aqui, Larissa e David vivem desde julho do ano passado, ao abrigo de um contrato por comodato, cedido pelos vizinhos de todo o prédio e extensível até ao próximo verão. Esta mãe ucraniana confirma: além da língua, o alojamento é um dos principais desafios que enfrentou, como refugiada em Portugal. Por isso é que estes vizinhos se tornaram o seu milagre lisboeta.
Lisboetas unidos à frente de uma renovação
As mãos de Diana procuram a ranhura da porta da arrecadação, onde ainda guarda alguns dos materiais usados na remodelação do apartamento, que hoje acolhe a família de Larissa, mas que teve outros inquilinos ucranianos antes, entre maio e junho de 2022.
“Foi um processo muito difícil, porque a casa estava num terror e assumimos as obras”, recorda Diana. A vizinha escolhe não divulgar o nome nem a cara: afinal, “a história é sobre esta família” e “foram muitos os que ajudaram, não fui a única”.




Chocada com as histórias de refugiados, a família de Diana lembrou-se da casa da porteira, logo em fevereiro do ano passado.
A verdade é que a família tinha contactos com a Ucrânia, depois de participar num projeto, O Abraço, nascido depois da invasão da Crimeia, em 2014, que convida famílias portuguesas a receberam, durante quinze dias, jovens ucranianos no verão, em intercâmbio.
Uma família conhecida do projeto manteve o contacto com o jovem ucraniano que acolhia, nas férias de verão, e alguns dos participantes d’O Abraço pagaram a viagem ao rapaz, à irmã e à mãe, para saírem da Ucrânia, assim que a guerra rompeu em 2022.
Precisavam de um lar. Com os cinco filhos, Diana e o marido começaram a conversar com os vizinhos do prédio, todos proprietários da antiga casa da porteira. Foi esta a primeira família que estes vizinhos de Alvalade acolheram e que acabou por regressar à Ucrânia, um mês e meio depois.
“Uns estavam reticentes, outros tinham medo das despesas. A maioria dos vizinhos do prédio são idosos, por isso diziam «ah, tenho aqui umas chávenas que vou dar, uns cobertores, umas almofadas»”, recorda Diana. “Aos mais reticentes dizíamos, «não se preocupem, que aquilo é fácil…”.
Não foi.
Diana descreve a condição da casa que antes ali havia: “Aquilo estava tudo húmido. Havia armários de madeira na cozinha que saíam tipo papelão, mal se mexia neles. Quando chegámos à casa de banho, havia ratazanas”.
Maria, uma das filhas de Diana, estudante de teatro, também pegou em martelos e em trinchas de tinta. “Foram imensas as pessoas envolvidas. Namorados, amigos, colegas meus do teatro, a nossa família e outras do prédio. Houve até uns vizinhos que só conhecemos nesta remodelação, porque se tinham mudado na pandemia e ficámos amigos”, comenta, ao mesmo tempo que ri e lembra o espírito de união que envolveu a remodelação do apartamento, entre março e maio de 2022.
A solidariedade também se multiplicou, com a oferta do frigorífico, do sofá, das camas, do esquentador. “Inclusivamente, uma vizinha do prédio estava a fazer obras, pedimos uma ajuda ao empreiteiro, moldavo, que arranjou um fornecedor que deu os móveis”, comenta.
Houve momentos em que a moradora do prédio pensou que não conseguia, confessa. “Num sábado de manhã, a primeira família precisava mesmo de vir para cá e não conseguia acabar, ninguém vinha ajudar naquele dia”, lembra. “Escrevi à senhora que tinha acolhido a família a pedir gente. De repente, nesse mesmo dia à tarde, tinha aquilo tudo cheio de pares de mãos.”
A última camada de tinta que a casa levou foi até dada pelos alunos de uma turma do 12º ano, filhos de conhecidos e amigos, em maio do ano passado. “Estava com medo que fizessem uma guerra de tinta ali, mas foram eles que fizeram esse retoque final, impecáveis”, conta Diana, que, depois da primeira família sair, soube da história de Larissa e de Rosa.

Hoje, os vizinhos do prédio olham com admiração para os ucranianos que acolheram desde julho: “Ela é uma batalhadora. No verão, ia com os miúdos do colégio para a praia, até ficava surpreendida pela tamanha responsabilidade. A Larissa contou-me que aprendeu palavras de ordem, como ‘come’, ‘podes ir’, ‘dá-me isto’.”
E viraram família.
Um dos momentos que Diana guarda com mais felicidade foi a entrada de David para a Universidade, em setembro do ano passado. “Ele queria um curso em inglês, encontrou Data Science [na NOVA IMS, em Campolide]. Trabalhou imenso, fez testes de álgebra, de inglês, entrevistas. Depois, quando ele entrou foi uma alegria.”
Conta que “um dos nossos vizinhos até trocou de portátil e deu-lhe o antigo, que está bom”. E, “de um momento para o outro, ele estava na faculdade, tinha um computador, senti que estava com alguma orientação.”
A orientação de David e de Larissa é dupla. Por um lado, recomeçaram em Portugal. Por outro, não esquecem quem deixaram na Ucrânia. A saudade aumenta em tempo de Natal, já que os ucranianos celebraram o Natal ortodoxo há pouco tempo, no dia 6 de janeiro. “Não foi a mesma coisa”, lamenta Larissa, habituada a estar perto do marido e a celebrar este dia em casa do padrinho.
Mesmo assim, Larissa ganhou forças para fazer uma kutiá, um bolo típico do Natal ucraniano – como é para nós o nosso bolo-rei. É feito com trigo e sementes de papoila.
O fluxo de refugiados da Ucrânia, sem precedentes, obrigou a uma ação concertada entre o Estado e a sociedade. Numa reposta urgente e temporária, famílias como a de Rosa propuseram-se a acolher, fazendo uma proposta de alojamento para o e-mail – depois avaliado pelo Alto Comissariado para as Migrações e o Instituto de Segurança Social.
À Mensagem, o ACNUR admite que grande parte dos refugiados ucranianos contou com ajuda de amigos e familiares que já viviam em Portugal. “Não obstante, todos os cidadãos que solicitaram apoio para alojamento tiveram resposta, o que resultou em mais de 11 mil encaminhamentos para alojamento coletivo e autónomo”, detidos por entidades locais e pelo Instituto da Segurança Social.
O ACNUR refere ainda a criação de um regime excecional, ao abrigo do Porta de Entrada – Programa de Apoio ao Alojamento Urgente, que já deu casa a 1200 refugiados ucranianos, em todo o país.
Partir apenas com documentos, roupa e uma Playstation na mochila
Ao lado das fotografias do cão, no apartamento, há três quadros com alusões a personagens da Disney e um barco. David explica que “são trabalhos manuais” que o pai faz “nos tempos livres” e que lhes envia. “O barco é amarelo e azul, como as cores da Ucrânia.”
São sinais de que a família continua unida, mesmo que ele tenha ficado preso no país do qual a mulher e o filho fugiram. “Sinto muitas saudades dele, já passaram 11 meses. Só o WhatsApp ajuda a matar saudades”, desabafa Larissa.

Separaram-se em abril, quando o pai pediu para que saíssem de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, mesmo junto à fronteira com a Rússia, “porque estava a tornar-se demasiado perigoso”.
David ainda conseguiu passar até à Polónia porque fez os 18 já cá em Portugal, a 13 de julho. Mas muitos dos colegas não tiveram a mesma sorte.
Desde fevereiro, a invasão russa alterou o curso da vida de milhões de pessoas e deu origem a uma das maiores crises humanitárias na Europa, desde a Segunda Guerra Mundial. Como Larissa ou David, já saíram da Ucrânia, até janeiro deste ano, perto oito milhões de refugiados.
Quase 58 mil fizeram um pedido de proteção temporária a Portugal, segundo dados do ACNUR cedidos à Mensagem. A maioria mulheres, cerca de 34 mil, acompanhadas por perto de 15 mil crianças e jovens até aos 17 anos.
Por trás destes números, há uma viagem, um momento para dizer adeus, que muitas não conseguem esquecer.


David tem, por baixo dos quadros, uma coleção de figuras animadas, com personagens do Star Wars e dos Simpsons. Um conjunto de peças que o pai também enviou, mais tarde. “Quando saímos da Ucrânia não deu para trazer mais nada, além de documentos e de muita roupa, por ser inverno. Não sabíamos para onde íamos, nem que bagagem podíamos levar”, recorda a mãe.
Mesmo assim, David conseguiu encaixar dentro da mochila a Playstation que tem. “Demorámos uma semana a chegar a Lviv [uma cidade na fronteira polaca, que serviu de entreposto para muitos refugiados], já que as filas de trânsito eram enormes e toda a gente queria sair”, conta o jovem de 18 anos.
Os longos dias que levaram a atravessar a Ucrânia contrastam com o pouco tempo que passaram no centro de acolhimento de refugiados, na Polónia. Duas horas depois de chegarem, foram convidados a partir por voluntários portugueses, da Missão Ucrânia, uma caravana humanitária que levava bens de primeira necessidade e ajudava refugiados a virem para Portugal.
“Jamais imaginámos vir para Lisboa”, comenta Larissa. “Só queríamos sair dali. Aceitámos porque também a viagem [que demorou três dias] era de graça”, acrescenta David. “Fomos uns sortudos, alguns refugiados ficaram dias a fio na Polónia.”
A chegada à cidade “barulhenta”
Nas encomendas que o pai enviou, David recebeu o álbum de fotografias da turma do 12º ano. O jovem vai percorrendo as imagens, de todos os alunos vestidos de fato e com longos vestidos, como nos bailes de finalistas organizados em Portugal. “A escola foi destruída e todos os meus amigos estão a ter aulas on-line”, lamenta.
Kharkiv está longe de ser o que era, em paisagem. Mas Larissa lembra-se bem como era a vida por lá: “Uma cidade muito bonita, com uma das mais antigas universidades ucranianas e, por isso, cheia de jovens. Havia muitos parques e temos uma das maiores praças da Europa, a Praça da Liberdade.”
Os traumas da guerra fizeram-se sentir-se mal chegou a Portugal, em abril. Ao início, Larissa teve uma ligação difícil com Lisboa, por ser uma cidade “barulhenta”. “O barulho das bombas é algo que nunca se esquece. Aqui, o som dos bombeiros, do trânsito, dos aviões, incomodava-me, ao início até gritava, era perturbador. Tinha flashbacks de Kharkiv”, explica.

Por isso, Larissa diz que gosta muito de Cascais, por ser “calma”. É um sítio que conheceu graças a Rosa, com quem Larissa e David viveram, na mesma casa, nos primeiros meses em Portugal.
E os passeios com o cão, labrador, ajudaram na recuperação.
Além de “dinheiro e de comida”, a mãe de David conta que, graças a esta família, conseguiu um emprego como auxiliar num jardim de infância. “A minha paixão é trabalhar com crianças”, explica a ucraniana, que trabalhava como psicóloga numa escola.
Por agora, a porta fecha-se neste prédio de Alvalade. Larissa trabalha amanhã na creche. David tem aulas. E a vida vai seguindo, para quem não baixa os braços.

João Damião
É aluno do mestrado de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa/ FCSH. É um tanto idealista. Acredita que o melhor futuro é pautado pela educação, informação, beleza e tolerância. É isso que o move a contar histórias.

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