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O piso revestido de calçada portuguesa é um orgulho para José Rodrigues. Mas não o único. O diretor da Livraria Barata também se orgulha da história de um dos marcos da resistência cultural portuguesa nos anos da ditadura, a então pequena loja na avenida de Roma, ponto de encontro de intelectuais e conspiradores.
Ousadia que custou a liberdade ao seu fundador, António Barata, preso e torturado pelo opressor e violento regime, que combateu com a leveza do papel e a força das palavras. Um homem que José Rodrigues conheceu muito bem, primeiro como funcionário da livraria, depois como genro, ao casar-se com a filha, Elsa.

Uma relação que até hoje obriga este lisboeta nascido em Luanda há 62 anos a cuidar da livraria não como um negócio, mas como um tesouro de família, e levou José ao limite do desespero quando, durante a pandemia, esteve na iminência de fechar as portas e colocar um ponto-final numa história que se iniciara em 1957.

“Vi pessoas a chorarem no balcão”, recorda-se José, a voz baixa, as sobrancelhas arqueadas, como se também estivesse prestes a chorar. A lembrança triste é cortada pelo ruído da máquina de café que manuseia, paciente, com gestos lentos, até o expresso encher a chávena. “Então pensei: alguma coisa boa devo ter feito.”
Fez mesmo. A principal delas foi nunca pensar em desistir.
Depois das dificuldades em 2020, a Livraria Barata conseguiu manter-se em operação graças à mobilização dos antigos clientes. Uma recuperação que ganhou força em 2021 com o apoio da Câmara de Lisboa e novas parcerias, entre elas com a FNAC, garantindo sustentabilidade para que não se veja mais ninguém a chorar no balcão.
O humor pelos lados do Areeiro agora é outro.
A casa da política de Lisboa, pré e pós 25 de Abril
José caminha pela calçada portuguesa no interior da livraria em direção ao piso inferior da loja. As pedras, assim como o pavimento no subsolo, fizeram parte da primeira grande expansão da Barata, em 1986, ampliando-a para além dos limites de quando o fundador acolhia os conspiradores nos cinzentos anos da ditadura.

A nova fase da livraria já ocorreu com José e a herdeira do fundador, Elsa Barata, no comando, após a morte de António Barata, em 1983. O desaparecimento do homem que desafiou com os livros a ditadura e o fim da opressão pós-25 de Abril não impediu que a constelação de políticos continuasse a gravitar na órbita da Barata.
“Entre os nossos clientes habituais, que vinham comprar livros ou lançar as suas obras ou as de outras pessoas, estavam Jorge Sampaio e Mário Soares. Na década de 1980 e 90, a Barata era assim, o centro da efervescência política de Lisboa, frequentada por presidentes e primeiros-ministros”, conta José.
“Entre os nossos clientes habituais, que vinham comprar livros ou lançar as suas obras ou as de outras pessoas, estavam Jorge Sampaio e Mário Soares”
José Rodrigues
Presidentes, primeiros-ministros, eleitores e leitores seduzidos pela arquitetura, inspirada nas livrarias de Paris, pontuada por uma galeria de arte que dividia o espaço com os últimos lançamentos. “Naquela época, conseguíamos importar livros de França e Inglaterra e as novidades literárias chegavam primeiro aqui”, explica.
Foi nessa mesma bela-época que o grande incêndio no Chiado em 1988 redirecionou o norte da vida cultura lisboeta para os lados da avenida de Roma. Com o vento a soprar a favor, a Barata viveu uma nova expansão, abrindo lojas em diversos polos universitários por Lisboa, uma filial em Campo de Ourique e outra em Évora.
“Fomos a primeira livraria da cidade, talvez do país, a informatizar-se, a ter os títulos num banco de dados. Tínhamos também uma revista própria, produzida numa pequena redação aqui, mesmo, na loja, pioneira também em ter um cartão de crédito e de fidelização próprio, o Baratacard”, recorda-se José, orgulhoso.

O passado de resistência que havia levado a um presente de prestígio apontava para um futuro ainda mais próspero. Mas como nos livros nas suas estantes, o enredo da livraria também teve seus altos e baixos. “A partir de 2007, fomos obrigados a fazer uma marcha-atrás”, explica José, o semblante novamente assumindo um ar grave.
Uma marcha-atrás que também conta um pouco da história do setor livreiro em Portugal.
O efeito-Amazon e a marcha-atrás no início do século
José Rodrigues é um bom contador de histórias, detalhado e metódico. A “marcha-atrás” da Livraria Barata na primeira década do novo século foi motivada pelas mudanças que esse mesmo século apresentou. “O primeiro grande revés foi o chamado efeito-Amazon”, lembra, rabiscando um gatafunho numa folha de papel.

A possibilidade de aceder a títulos estrangeiros através de um premir de botão desarticulou uma das mais-valias da livraria para atrair os seus clientes, os livros importados. E pior: ocupou o espaço, não só da Barata, mas de todas as lojas físicas, como intermediário de edições nacionais que não estavam nas estantes.
O início do século também viu a alteração no padrão de consumo dos lisboetas, atraídos pelos recém-inaugurados centros comerciais, o Colombo, em 1997, e o Vasco da Gama, dois anos depois. “As grandes superfícies retiraram os clientes das ruas e alteraram o cenário não só da Barata, mas de toda Avenida de Roma”, diz.
Ao contrário do que ocorreu nos anos 1980 e 90, quando assumiu o papel de vanguarda das mudanças no setor livreiro em Portugal, a Barata não teve a mesma agilidade para se reinventar e acompanhar as mudanças que o novo século trazia. Um terceiro golpe engataria em definitivo a “marcha-atrás” em 2007.
Um golpe do qual José se ressente ainda hoje. “A formação dos grandes grupos editoriais fez estremecer o negócio das livrarias independentes”, aponta. Começava o tempo das editoras que também tinham os seus pontos de vendas, como a gigante Leya e, a partir de 2010, com a Porto Editora, após comprar o grupo Bertrand.
No olho do furacão, a Barata foi obrigada e diminuir as suas operações e, pouco a pouco, fechou as lojas em Campo de Ourique, nos institutos superior Técnico e de Agronomia, e nas universidades Nova de Lisboa, Lusíada e de Évora. Dos cerca de 70 funcionários, menos de uma dezena ficaram na única unidade de portas abertas, na avenida de Roma.
Encastelado por entre estantes e o chão em calçada portuguesa na primeira e agora única das lojas, José e Elsa preparavam-se para resistir aos novos desafios. E assim o fizeram por mais de uma década, quando uma nova e arrasadora adversidade se impôs, tão grande quanto microscópica, cristalizada na forma de um vírus.
O vírus da pandemia e o da solidariedade
José desliza pelas pedras da calçada portuguesa no subsolo da livraria, que entre setembro e novembro recebe no amplo espaço a exposição Livros que nos transformam: diz-me o que lês, dir-te-ei quem és, disposta em curiosos objetos em mostruários de vidro e coloridos cartazes afixados nas paredes.

A exposição e a livraria são exemplos das parcerias recentes que evitaram que a Barata deixasse de operar. “Apesar das dificuldades durante a pandemia, não deixámos de abrir as portas um único dia”, relembra José, enquanto observa a visita guiada dos curadores da exposição, António da Cruz Rodrigues e João Cunha.
Não fechou por muito pouco. Em meados de 2020, José venceu a timidez e um certo pudor para expor nos perfis das redes sociais a situação delicada da Barata durante a pandemia. A mensagem viralizou de imediato e uma rede de apoio, formada por amigos e clientes, mostrou-se disposta a evitar o desaparecimento.



“Uma cliente que percebia de marketing ajudou-nos nas redes sociais, outro que produzia transmissões em streaming disponibilizou-se a fazer alguns debates na livraria, que por sua vez foram conduzidos pelo amigo e poeta António Carlos Cortez, e assim contamos com uma rede de atividades para não parar”, conta José.
Entre os antigos amigos e clientes, alguns políticos. Esteve lá mais de uma vez o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, além do antigo presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina. Foi justamente da CML que veio o maior apoio, quando a autarquia decidiu ocupar o subsolo da loja para atividades do programa Lugar de Cultura.
“A Câmara tinha memórias das nossas capacidades em atrair atividades culturais, o que fez com que olhasse para nós com esse espírito.”
José Rodrigues
É através dele que o salão no piso inferior prestes a apagar as luzes agora brilha, não só com exposições, mas debates literários sobre história portuguesa e obras de escritores e poetas, concertos de fado, orquestras de berimbaus, workshops de origami e música eletrónica, para citar apenas algumas das atividades só no mês de outubro.
“A Câmara tinha memórias das nossas capacidades em atrair atividades culturais, o que fez com que olhasse para nós com esse espírito”, resume José. “Agora, atuamos também como um espaço de acolhimento da produção cultural do município”, reforça.
O apoio também veio da iniciativa privada. No piso principal, um dos corners, da loja está ocupado por produtos diversos com a chancela da FNAC, que se aproveitou da localização privilegiada da Barata para expandir o ponto de recolha das vendas digitais e demarcar-se diante da concorrente Bertrand, a poucos passos dali.
O afeto é a alma do negócio
O oxigénio das novas parcerias que permitiu à Barata respirar sem a ajuda de aparelhos durante a pandemia também deu um novo gás ao negócio e as portas que estiveram prestes a fechar agora ficam abertas das dez da manhã às oito da noite. A intenção de José é, um dia, ter a hipótese de ampliar este horário.

“Durante mais de quinze anos, funcionávamos das nove da manhã às onze da noite. Era comum passar aqui às nove, dez, dez e meia e ver a loja cheia. Éramos o ponto de encontro das pessoas que viviam sozinhas e saíam para passear o cão, e paravam, compravam uma revista, tomavam um café e conversavam”, recorda-se.
Para já, é celebrar que “o pior já passou”. José revela que em 2021 a Barata teve o “melhor rácio de equilíbrio financeiro dos últimos vinte anos”, mas alerta também sobre as suscetibilidades do negócio, que de um momento para o outro pode voltar a ser afetado por crises, inflações e até guerras no continente europeu.
“O afeto dos novos e antigos clientes é o melhor do que levo para casa.”
José Rodrigues
A entrevista termina e José tira o último expresso na máquina ruidosa. Olha em volta, contemplativo e estende-me a chávena. “A Barata é a minha casa e gosto de receber aqui as pessoas.” São oito da noite, a “casa” de José está prestes a fechar e um jovem acena um adeus após comprar um livro.
“Este jovem é neto de um antigo cliente, cujo pai também foi nosso cliente”, explica. “Mais do que um comércio ou empresa, fico feliz de que a Barata seja uma grande família, que tratemos pelo nome próprio quem passa por aqui”, completa.
“As estantes, os livros, sempre foram o esqueleto”, diz, a girar o dedo no amplo espaço. “O afeto deles é a alma. É o melhor do que levo para casa”, conclui.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
As dificuldades e os desafios foram muitos, mas a capacidade de lutar e de renascer das cinzas é algo que nem todos o conseguem.
A Livraria (revistas, jornais e livros) Barata notabilizou-se com a venda das obras proibidas, procuradas e apreendidas pela PIDE.
O resto e deste tema que não fala, o texto tem alguma verdade, e muita efabulação.