Até faz confusão. “Desde ontem que está em silêncio”, conta Olinda Almeida, lisboeta desde novembro do ano passado, altura em que chegou a Lisboa, vinda do Porto. Trabalha na Drogaria Central, loja que abriu em 1919 e onde se vendem produtos para o cabelo, champôs, sabonetes e pastas dentífricas. Depois de uma inundação que atingiu a cave das lojas e levou ao ceder do passeio, a Rua da Prata, onde Olinda trabalha, esteve encerrada ao trânsito automóvel durante a semana.

A evidência, em Lisboa e noutras cidades, aponta para o aumento da faturação do comércio local quando o espaço é predominantemente pedonal. Não é o que acontece na Rua da Prata, dominada pelo automóvel. Aqui, passam menos pessoas a pé e faz-se menos negócio, ao contrário daquilo que acontece na Rua Augusta, ali ao lado e exclusivamente pedonal.

Por ter estado encerrada ao trânsito, a Rua da Prata proporcionou esta semana um vislumbre de uma paisagem pouco vista nas mais movimentadas artérias da Baixa lisboeta – sem carros, quem por ali andou a pé não teve de ficar-se apenas pelo passeio, à margem, pôde ocupar a faixa de rodagem e atravessar a rua onde bem entendesse, sem receios. Ao contrário do que é habitual, os sons da cidade fizeram-se ouvir.

A Rua da Prata encerrada ao trânsito e aberta às pessoas. Durante uma semana, não se ouviram automóveis.

A necessária reparação do buraco que se abriu permitiu que Olinda descobrisse como é a Rua da Prata sem carros. As diferenças que encontrou na vida da rua também entraram loja adentro. Pela porta, recebeu um silêncio que causou “confusão”. Deu por si a ouvir aquilo que antes, com o trânsito, não se ouvia – “a música que um senhor tocava para a esplanada”.

O trânsito, o ruído e a fragilidade do comércio local na Rua da Prata

“Se calhar, com os carros a gente nem se apercebe”, diz Olinda, referindo-se à música que lhe entrou pela porta da loja e causou surpresa. Na Rua da Prata, o ruído da circulação rodoviária conduz a conversas que não acontecem e a sons da cidade que se perdem.

Olinda Almeida, lojista na Drogaria Central, loja que abriu na Rua da Prata há mais de um século, em 1919. Foto: Inês Leote

A Rua da Prata corre paralela à Rua Augusta e une três das principais praças da cidade – o Terreiro do Paço, a Praça da Figueira e o Rossio -, mas nem por isso compete em número de transeuntes. Com muito menos tráfego pedonal que a Rua Augusta, que em 1984 se tornou exclusivamente pedonal, a Rua da Prata apresenta uma oferta de comércio local fragilizada. Ao longo da sua extensão contam-se dezenas de lojas encerradas e uma grande rotação na ocupação dos espaços.

Em dezembro do ano passado, contavam-se ali 32 lojas encerradas. A intensidade do tráfego rodoviário e o ruído presentes podem ajudar a explicar a possibilidade de sucesso comercial das ruas. Retirar de uma rua o tráfego automóvel pode trazer mais vida à cidade e ajudar na regeneração do comércio local.

No final de 2018, quando Madrid restringiu o trânsito automóvel num perímetro alargado da cidade, os níveis de qualidade do ar das ruas melhoraram e a faturação do comércio de rua subiu 9,5% relativamente aos dois últimos períodos homólogos. Nos Estados Unidos da América, a pedonalização de Times Square, em Nova Iorque, trouxe em 2010 um aumento de 71% na faturação do comércio local.

“Cada vez que uma rua com tráfego automóvel é convertida numa rua pedonal, há oportunidades renovadas para ouvir outras pessoas. O ruído dos carros é substituído pelo som de passos, vozes, água corrente e por aí em diante. Torna-se outra vez possível ter uma conversa, ouvir-se música, falar-se com pessoas e as crianças brincarem”.

A citação é de Jan Gehl, arquiteto dinamarquês, no seu livro A Vida Entre Edifícios, publicado em 1971 e com edição portuguesa desde 2017.

O reconhecido arquiteto e urbanista leva uma carreira pautada pela reorganização do espaço urbano em função da proximidade e da priorização da qualidade do espaço público e das deslocações a pé. Aponta o tráfego intenso e o ruído por este provocado como um dos maiores obstáculos à vida de rua e ao sucesso do comércio local. “Quando o ruído de fundo excede os 60 decibéis, o que é geralmente o que se passa em ruas com tráfego misto, é quase impossível ter conversas normais”. Na Rua da Prata, segundo o mapa da ruído de Lisboa, de abril de 2021, os níveis de ruído ultrapassam em vários locais os 60 decibéis.

A azul, os níveis de ruído da Rua da Prata. Fonte: Mapa de Ruído Global, Câmara Municipal de Lisboa (Abril 2021)

Para além de promover mais interação humana, as ruas pedonais podem também trazer impactos positivos ao nível do comércio local. Um estudo realizado em várias cidades espanholas e publicado no início do ano na publicação internacional Cities, dedicada à divulgação de investigação em políticas urbanas e planeamento, conclui que “lojas localizadas em ambientes pedonais tendem a registar volumes de venda superiores aos de lojas localizadas em ambientes não [exclusivamente] pedonais”.

Os resultados do estudo apontam ainda para o facto de “as pessoas preferirem nas suas atividades de consumo ambientes orientados para o peão relativamente a ambientes orientados para o automóvel”.

“Em vez de pensar na pedonalização de uma rua, reduzir o tráfego em toda a baixa pombalina”

Olinda reconhece que a vida da Rua Augusta se deve sobretudo ao seu caráter exclusivamente pedonal e gostava que também na Rua da Prata “houvesse menos [carros] e mais espaço para as pessoas”.

Ao abrigo da proposta para a Zona de Emissões Reduzidas (ZER), anunciada em janeiro de 2020 para as zonas da Avenida da Liberdade, Baixa e Chiado, a Rua da Prata seria reservada exclusivamente ao tráfego pedonal e à passagem de elétricos da Carris. Mas a ZER não avança, para já.

Mário Alves, engenheiro civil e especialista em transportes e mobilidade pedonal não tem dúvidas de que a Rua da Prata “deveria ter muito mais espaço para o peão” e considera que ali deveriam passar muito menos veículos do que acontece atualmente.

Não acredita na pedonalização da Rua da Prata por si só, já que “depois o tráfego todo iria para as ruas mais pequeninas”. Sugere, antes, que “seria muito mais lógico começarmos a reduzir o tráfego de uma forma dramática e considerável em toda a zona da baixa pombalina e colinas adjacentes”.

A Rua da Prata antes (à esquerda) e depois (à direita) da pedonalização proposta pela ZER. A imagem da direita é uma simulação da situação proposta. Segundo a proposta apresentada pela Câmara Municipal de Lisboa, a Rua da Prata deixaria de ter trânsito automóvel. Os passeios cresciam e com os peões, que poderiam neste cenário atravessar a rua em qualquer ponto, apenas circulariam elétricos. Fonte: CML

Tal como anunciada pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), a aplicação da ZER propunha a retirada do centro da cidade de 40 mil automóveis por dia, devolvendo ao tráfego pedonal e ciclável uma área de 4,6 hectares e proibindo, no perímetro proposto, a entrada de automóveis não elétricos, com exceção dos veículos de moradores e comerciantes.

Segundo a CML, no início de 2020, “60%” das pessoas que se deslocavam diariamente para a baixa, faziam-no de transportes públicos. Apesar disso, na área proposta para a aplicação da ZER passavam todos os dias 100 mil veículos, situação que Fernando Medina, então presidente da câmara, considerou “paradoxal”, já que, disse na apresentação da ZER, esta é a “zona mais bem servida de transportes” do país.

Com a entrada em vigor da ZER sem data prevista, Mário Alves defende que “seria muito melhor começarmos a pensar” em restrições à circulação automóvel na baixa da cidade, mas prefere falar na implementação de “zonas de tráfego condicionado”, explicando onde está a diferença destas em relação ao modelo proposto no mandato anterior: “A ZER está mais relacionada com as emissões dos veículos, enquanto que as zonas de tráfego condicionado estão preocupadas com os veículos no seu total, independentemente das emissões que os veículos poderão emitir”.

Menos poluição do ar e do ruído para potenciar o comércio e o usufruto da cidade

Para diminuir a poluição do ar e o ruído e para potenciar o usufruto público da cidade, bem como o comércio local em ruas como a Rua da Prata, o especialista em mobilidade pedonal defende que na baixa da cidade apenas possam entrar moradores, comerciantes e veículos afetos a cargas e descargas. Deve restringir-se “claramente o tráfego de atravessamento”. Isto é, os automóveis de “quem atravessa a baixa e cuja origem e destino são diferentes da baixa”, esclarece.

Considera que “não faz sentido” avançar com a pedonalização de ruas de forma independente, preferindo, antes, uma restrição generalizada à entrada de automóveis que queiram utilizar o centro da cidade para a atravessar, sem por lá parar.

Com um caráter rodoviário, a Rua da Prata tem muito menos tráfego pedonal do que a Rua Augusta, exclusivamente pedonal. Foto: Frederico Raposo

“Ao reduzir as velocidades e o número de automóveis, poderíamos conquistar muito mais espaço”, afirma Mário Alves, acrescentando que “ninguém compra sentado no seu carro. Somos todos peões quando vamos às lojas”.

Apesar de não estar atualmente prevista a implementação de quaisquer restrições à circulação automóvel em Lisboa, o especialista considera que estas são medidas “que vão acontecer com certeza no futuro”. “Terá que acontecer” se Lisboa quiser ver aprovada a candidatura da baixa pombalina a património da humanidade da UNESCO, diz.

Olinda, na Drogaria Central, também não acredita que o sucesso do comércio local dependa de quem passa na rua de carro. “O trânsito não nos afeta nada porque as pessoas não param para entrar”, diz. Os seus clientes são turistas e pessoas que trabalham na baixa e a lojista acredita que ali o trânsito “só devia ser permitido a determinados [veículos]”. Sandra Pereira, sua colega na histórica drogaria, também dá conta do silêncio que paira na rua por estes dias e deixa, para o futuro da rua, uma sugestão: “faz-nos falta bancos de jardim”.

Ao longo dos seus mais de 500 metros, a Rua da Prata não tem um único banco, uma única árvore.

Parques subterrâneos como interposto de cargas e descargas

A garantia das cargas e descargas é, para Mário Alves, um dos pilares do bom funcionamento de uma zona de tráfego condicionado. A par do trânsito de moradores, a circulação de veículos de cargas e descargas deve ser considerada essencial, ao contrário do restante trânsito de automóveis particulares, que deve ser condicionado, permitindo a libertação de espaço nas ruas.

Na baixa de Lisboa, é comum a ocupação de espaço pedonal por veículos afetos a operações de cargas e descargas. Foto: Frederico Raposo

Mesmo assim, o especialista sugere para o futuro das operações de cargas e descargas uma solução que requer a realização de testes piloto: a utilização de parques de estacionamento subterrâneos como interpostos logísticos. A sua proposta é que na baixa de Lisboa estes parques, como são os do Martim Moniz e da Praça da Figueira, sirvam de local de troca de mercadorias – de veículos pesados e poluentes para veículos elétricos e mais pequenos, “amigos dos peões e do espaço público”, explica.

Para o especialista, “não faz sentido camiões ou camionetas entrarem no Bairro Alto ou em ruas da Baixa”.

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Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.

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5 Comentários

  1. Mas que grande hipocrisia, que grande hipocrisia.
    Então os comerciantes estão sempre a queixar que se tirarem os carros das ruas é mau para o negócio, vão à falência, perdem clientes…… Agora vêm dizer que uma rua sem carros aumenta as receitas e é bom para as vendas?????
    Afinal em que é que ficamos??

  2. aquilo de que não se está a falar é do custo para a saúde desta medida. a rua da Madalena está neste momento com uma sobrecarga de trânsito, poluição e ruído completamente grotesca!

    a rua da prata muito mais larga, plana, com ventilação directa ao rio e à praça da figueira está a ser substituída por uma rua que sobe e desce 28m!!! acumula-se poluição por causa da topografia e está a bloquear-se o transito de emergência a s. josé com filas de transito, tuk-tuks, cruzamentos para a sé e castelo, e sirenes desesperadas durante todo o dia.

    para se oferecer uma rua às esplanadas e aos turistas, sacrifica-se uma rua que nunca teve vocação de atravessamento como a rua da madalena. é o mesmo que fechar a rua do ouro ao transito, para fazer todo o transito passar pela rua do carmo e nova do almada.

    é a saúde dos utilizadores regulares e residentes que é sacrificada pela exposição a poluições muito mais exacerbadas.

  3. Da curta inteligência do Dr Fernando Medina que se vislumbra também na sua estadia no Ministério das Finanças, restam paradoxos sim no que se passa em geral na baixa cujas ruas mais parecem ruas de BOMBAIN. Do que à circulação automóvel que é que importa, deve ser mantida com redução de velocidade e de paragens (pois são estas que mais contribuem para a poluição) na rua da Prata e Áurea. Ainda é adicionalmente deveria ser criado um condicionamento horário para cargas e descargas numa zona central da cidade, semelhante ao que foi criado durante a presidência do Dr. Jorge Sampaio na CML. Este condicionamento deveria ser maus rígido nas ruas de trânsito pedonal mais estreitas da baixa.

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