Lembram-se as duas, ou só a mãe? Hoje, vêem-se uma à outra de manhã, mas é coisa fugaz: de mochila às costas, a miúda sai cedo e sem olhar para trás. Leva uma fatia de pão de forma com manteiga na mão e, antes de chegar à porta, já tem música nos phones.

A mãe queixa-se, diz que ainda lhe diz alguma coisa, mas os Metallica tocam em cima do “Tem cuidado a atravessar a estrada” e do “Não te metas a comer só batatas fritas”. Vê-a sair de casa e todos os dias há uma tristeza. Para onde foi o tempo?

Quinze anos antes, levara-a para aquele apartamento, centro de Benfica, direitinha do hospital. O marido ainda estava vivo, os carros atrás apitavam por causa da lentidão, mas nenhum solavanco podia perturbar o bebé. Nas fotografias antigas, ainda sorriem os três como quem tem tudo pela frente: a família inteira e até mais família do que aquela, os filhos que não chegaram a nascer.

Um dia, um carro não teve cuidado e o pai que se apressava para ir ter com a bebé nunca mais chegou a casa. A mãe, enquanto metia as colheres de papa à filha, ainda se queixava a sós, julgando que o marido se demorava com os colegas do escritório e que ela é que tinha de se amanhar em casa sem ajuda. Não fazia ideia de que, a essa hora, já o homem estava estropiado. Nunca mais passou no Saldanha sem um baque.

Criou a filha sozinha. Não voltou a casar. Durante muitos anos, o dia-a-dia era a batalha que tinha recompensa. Quando o céu de Lisboa fechava, bastava-lhe ver uma criança a sorrir e a chutar a bola na mata de Benfica e não havia sol que se rompesse.

A mãe nunca falhou, que eu bem a vi, e a filha também soube ser filha. Quando tinha medo, entrelaçava-se na perna da mãe em busca de um abrigo, e cheguei a vê-la chorar quando a mãe se aleijou com uma faca. Juntas, eram a beleza toda – mãe e filha, filha e mãe.

A Mariana foi crescendo. De bebé foi a criança, hoje é adolescente. Já vai sozinha para a escola, já não corre para a mãe em busca de consolo. Já conhece mais mundo do que o que a mãe lhe dá. Já tem segredos e histórias. Em casa, esconde-se no quarto, mete a cabeça no telemóvel, no computador, na Netflix. A muitas das conversas, responde apenas: “Ai mãe. Que seca.”

A mãe tenta mas não pode, comida que está pela sensação de já ter perdido a filha, de a ver à frente a fugir-lhe pela porta e pelos dedos. A sós, na sala, folheia álbuns. Em dias menos românticos, vê fotografias antigas no computador, no telemóvel. Há uma esperança misturada com tristeza. E, de vez em quando, a filha ainda ouve, a filha ainda ri – e são beleza outra vez.

Sabia que a filha estava feita para crescer, mas ninguém a preparou para aquela melancolia. Ainda tenta ver o que há lá dentro, pergunta-se se é a mesma, quer que seja a mesma. Será que ainda se lembra daquele dia à chuva em que a agarrou nos braços enquanto as sarjetas entupidas inundavam Lisboa?

A avenida do Uruguai era um rio. Não estava frio, mas as botas da miúda eram de camurça e a mãe não queria a filha com as bolhas dos pés molhados. Nas condutas de água, também havia inundações. Sob os toldos das lojas, apertava-se quem não tinha pressa. Elas eram dois corpos contra a tempestade que estalara, mas e depois?

As duas sabiam que não podia acontecer nada. E, quanto mais tempo durasse, mais tempo ali ficariam até voltarem para casa, juntas outra vez. Enquanto esperavam, a menina contava a birra que a Duda tinha feito na pré-primária por causa de um brinquedo.

Hoje Lisboa ainda se inunda, mas nenhuma pega na outra ao colo. Se a mãe diz “Abriga-te para não te molhares”, a filha responde “Ai mãe. Que seca.” A adolescência venceu tudo, a chuva não faz assim tão mal. Com a vida pela frente, a Mariana ainda não começou a olhar para trás, ainda não foi vencida pelo torpor do envelhimento, pela angústia que dá entender que a vida é irrecuperável. Para ela, só há presente, só há futuro.

O tempo precioso passa, há uma sensação de culpa. E, a cada dia, há mais pó em cima das coisas. Para a mãe, a pedrada foi perceber que a filha gostava do Sporting só por causa de um rapaz qualquer. As horas que tinham passado as duas no estádio da Luz já não significavam nada?

Cada ano que passa tem um sabor a traição. Eu vejo que as duas se afastam, que a adolescência ganha o espaço que perderá para a velhice. Um dia, a filha vai à sua vida, a mãe vai ficar mais velha. Virão as doenças, as rugas, os passos lentos. Talvez venha também o esquecimento, talvez o Alzheimer vença tudo e caiba à Mariana lembrar-se daquele dia sob o toldo do pronto-a-vestir no colo da mãe.

Nessa altura, lembrar-se-á da Duda, das noites e dos dias em que existiam apenas mãe e filha? Por aí, o corpo da Maria João estará mais frágil, talvez a Mariana queira pegar numa cadeira de baloiço, pegar na mãe ao colo, cantar-lhe Abba ou Johnny Clash ou ler-lhe o “Love forever” do Robert Munsch. Para já, ainda não tem noção de nada, nem sequer de que um dia desejará que o chão inundado de Lisboa se possa cobrir de flores só para ver a mãe passar.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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