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Corre-me nas veias sangue africano – e não apenas porque sou, como todos, filha de Eva (e tudo indica que os primeiros humanos dignos desse nome vieram de África), mas sobretudo porque o meu bisavô materno – um militar que participou nas chamadas Campanhas de Pacificação nos finais do século XIX – se casou em Angola com uma rapariga mestiça que, desgraçadamente, morreu poucos dias depois de dar à luz a minha avó.
Tal como eu, Lisboa tem sangue africano. Na cozinha do Museu da Cidade, um painel de azulejos antigo mostra uma negra amanhando o peixe na casa dos senhores; e a verdade é que os africanos estão na capital desde Quinhentos, trazidos como escravos para desempenharem quase sempre as tarefas mais pesadas, como se pode ver em várias gravuras da época que os representam trabalhando, por exemplo, como estivadores no porto.
Mas basta observar alguma nomenclatura (o Poço dos Negros, a Rua das Pretas, a Rua da Preta Constança…) para saber que, mesmo mais tarde, os africanos mantêm uma presença regular em Lisboa, continuando a trabalhar, segundo a historiadora Isabel Castro Henriques, em «sectores criadores de riqueza» e constituindo desse modo «um elemento estruturante da nossa vida urbana»; mas já não fazem só trabalhos pesados: o muito admirado Doutor Sousa Martins, em cuja estátua ainda hoje tantas pessoas deixam flores, era, para quem não saiba, um médico mestiço.
Já depois do 25 de Abril, com os países de origem em guerra e, depois, em crise, os africanos (e também algumas comunidades indianas vindas de Moçambique) procuram na cidade branca uma oportunidade de trabalho e por aqui vão ficando e constituindo família.
Fazendo parte da paisagem lisboeta há tantos séculos, custa a crer que ainda haja quem os estranhe e – pior – quem pense que «deviam voltar para a sua terra» quando «a sua terra» é esta onde vivemos todos juntos.
E porém…
Trabalhei durante uns anos para uma editora cuja sede era em Matosinhos e todos os meses eu e outra editora subíamos bem-dispostas à Invicta para a reunião de programação; contudo, os nossos colegas de lá não manifestavam o mais pequeno desejo de conhecer as instalações na capital, chegando a dizer que não queriam nada com os «mouros»…
Mesmo assim, veio uma rapariga de Vila do Conde estagiar connosco e, num dos primeiros dias, ainda um pouco confusa com as direcções, pediu-me boleia até casa, donde depois apanharia o metro para o Centro.
Ora, eu vivo numa zona onde o conservadorismo das Avenidas Novas aperta a mão ao multiculturalismo da Almirante Reis; um local por onde passam os que apanham o comboio para a Linha de Sintra ou o autocarro para a outra margem, os que vão de metro para o Chiado e os que se dirigem de automóvel para os bairros suburbanos a norte.
Além disso, só na minha praça há uma frutaria de chineses, uma loja de telemóveis de um sikh, uma mercearia de nepaleses que não falam português, o quiosque de um indiano e um café cheio de turistas pela manhã, mas em cuja esplanada abancam, ao final da tarde, romenos de etnia cigana com os pés geralmente bastante sujos. Ou seja, o meu cantinho é mesmo uma boa amostra da cidade colorida que somos.
A estagiária, porém, olhava à esquerda e à direita e só abria a boca.
– É mesmo aqui que mora?! – perguntou, chocada. – E gosta?! É que é um sítio tão esquisito, tem a certeza de que é seguro deixar-me aqui?
Foi então que me apercebi de que, ao contrário da nossa Lisboa de todas as cores, o Norte é realmente muito branco.

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Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.