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Numa viagem aos Países Baixos, a visão de Andrea Ribeiro Pinto sobre a mobilidade mudou. Deixou de usar tanto o carro, e agarrou na bicicleta. Agora, quando o relógio anuncia as cinco e meia da tarde, a advogada saca da sua bicicleta desdobrável e parte do seu local de trabalho, na Baixa, em direção a Chelas, onde pratica boxe na Academia Jorge Pina.
São apenas 5,3 km. Vinte e um minutos a pedalar. Seria um aquecimento antes da entrada no ringue, mas não é bem isso que acontece durante este percurso: a cada pedalada é como se os progressos da cidade fossem esquecidos. A ciclovia estreita, até desaparecer por completo.



A viagem que Andrea faz até Chelas espelha aquilo que Miguel Padeiro, investigador da Universidade de Coimbra, confirma num estudo publicado na revista Cities & Health: as áreas mais carenciadas de Lisboa são aquelas com menos acesso às infraestruturas de bicicleta.
Foi essa a conclusão a que o investigador chegou, cruzando dados relativos à distribuição geográfica de ciclovias e docas com um indicador de vulnerabilidade social para cada quarteirão da cidade.


Na fronteira entre o Beato e Marvila, Andrea já não tem ciclovia: são carros que buzinam, pouco espaço para a bicicleta. Marvila e Beato fazem pois parte do conjunto de áreas mais desfavorecidas em termos de infraestrutura, segundo o estudo de Miguel.
O mesmo acontece na Graça, Alta de Lisboa, Restelo, Ajuda e também no Centro Histórico e Bairro Alto. Nestas zonas faltam docas, ciclovias, sistemas de partilha, cobertura de rede, conexão entre as infraestruturas.
Porquê?
Há várias razões que explicam isto. Algumas são socio-geográficas: as comunidades mais pobres geralmente vivem em zonas mais montanhosas e com mais densidade de população, onde portanto é mais difícil construírem-se ciclovias.

Por outro lado, as ciclovias dão boa imagem, atraem quem gosta de modernidade, capital, pessoas de fora, turismo… e por isso normalmente opta-se por construir nas áreas mais centrais.
“Se queremos mostrar que construímos ciclovias, não o vamos fazer nas zonas mais invisíveis, mas sim nas zonas centrais”, explica o investigador. Ou seja, eixo central, em vez de Chelas.
É isso que Andrea sente quando entra pela Estrada de Chelas: a rua vai-se afunilando e afunilando. Se até este ponto ainda se encontravam algumas bicicletas pelo caminho, aqui não há vestígios de mais ciclistas.
Sem Giras ou trotinetas elétricas
Em Chelas não falta só infraestrutura, faltam também Giras. Este é o mapa das docas na cidade:

É um exemplo “talvez ainda mais gritante” da desigualdade na mobilidade, diz Miguel Padeiro. A Gira, que chegou a Lisboa em 2017, continua sobretudo concentrada no centro, sem chegar a áreas como Marvila. “Há um grande secretismo em torno desta questão, é uma caixa negra, ninguém consegue saber o porquê”, diz.
A EMEL responde que a localização das estações Gira resultou de um trabalho de campo realizado por uma equipa multidisciplinar de técnicos da CML e da própria EMEL, tendo em conta as características físicas do local. E que a atual rede “irá sendo revista progressivamente em diálogo com as Juntas de Freguesia”.
Miguel Padeiro compreende que um sistema partilhado tem de avançar por etapas: “Eu também começaria pelas zonas mais nobres, mesmo tendo esta ideia da igualdade social”. Porém, a Gira já tem cinco anos e ainda há zonas completamente descobertas: “Há imenso potencial em qualquer parte da cidade”, acrescenta.
Esta desigualdade não se coloca só no sistema de partilha de bicicletas. As operadoras de trotinetas elétricas também não as fazem chegar às zonas de maior vulnerabilidade social.
Nem a Bolt, nem a Lime e nem a Link entram em áreas como Marvila e Alta de Lisboa.
No mapa da aplicação da Bolt (em baixo), sobre essas áreas surge um “P”: “Não é possível terminar a viagem aqui. A trotineta vai andar mais devagar aqui porque há muitos carros e peões”.
A Lime avisa: “Zona Interdita. Não conduzas nem leves o veículo para esta área. Não irá funcionar e não podes estacionar nesta zona”.


Mais uma vez é preciso perguntar: porquê?
Santiago Parámo, responsável pela micromobilidade da Bolt Portugal, explica que a Bolt “está dependente da adesão dos centros urbanos a novas soluções”.
“O progresso frequentemente não ocorre de uma vez só”, e por isso é preciso “implementar soluções de infraestruturas em todas as partes das cidades”.
Uma pescadinha de rabo na boca? Como não há infraestrutura, não há rede… e vice-versa.

Na Link, o aviso no mapa é ainda mais estranho: “Proibido trotinetas. As leis da cidade proíbem a circulação e o estacionamento nesta zona”.
Leis da cidade? Questionámos a Link em relação a isto, mas não obtivemos resposta até à data de publicação.
A Mensagem fez também um teste com uma trotineta Link para perceber o que acontecia se se entrasse numa zona proibida.
No início da rua Gualdim Pais (na fronteira entre o Beato e Marvila), a trotineta abrandou e começou a apitar.
Joana Zagalo, diretora de marketing de 28 anos que vive em Chelas, tem alguma coisa a dizer sobre isto: “Toda a gente tem acesso, e nós por morarmos aqui não temos”, diz. “Tendo em conta a mobilidade, o ambiente e até questões financeiras, era preciso apostar numa rede mais alargada de soluções de mobilidade elétrica”.
Recentemente uma nova operadora de trotinetas elétricas veio alterar este paradigma: a Whoosh, que parece sobretudo limitar a circulação em zonas como o Bairro Alto e Alfama.
Segundo Marco Rebelo, City Manager da Whoosh, o objetivo da operadora passa mesmo por “aconselhar as entidades responsáveis quanto ao desenvolvimento das infraestruturas da cidade”, e por isso a sua área de operação alarga-se.
“Sentimos que os nossos serviços não se cingem aos turistas ou aos moradores das zonas centrais, mas também à periferia da cidade ou a zonas habitacionais com menor oferta de transporte de micromobilidade”, acrescenta.

O receio e o jogo político
Mas por que é que ainda não se criaram mais infraestruturas nestas áreas? Porque não se alargaram os sistemas de partilha?
Miguel Padeiro tem uma resposta: receio. “Receio de que haja problemas porque as pessoas não vão utilizar as ciclovias, receio de vandalismo e de problemas sociais. Há a ideia de que vai ser um desperdício”.
O assunto das bicicletas divide os lisboetas, e muitos ainda se mostram avessos à mudança da mobilidade suave, como a Mensagem verificou através de comentários negativos sobre bicicletas num grupo de vizinhos de Chelas – onde colocámos uma pergunta para preparar esta reportagem.
“Há aqui um jogo político muito delicado, e daí a prudência que tem sido mostrada pelo executivo”, diz Miguel Padeiro.

Henrique Chaves, que é sociólogo e está a fazer um doutoramento em Políticas Públicas na Universidade de Aveiro, discorda: “há muita gente que quer andar de bicicleta”. É esse o tema do seu doutoramento: a mobilidade ciclável em Marvila.
Os resultados serão anunciados em breve, mas num inquérito a 396 pessoas da freguesia muitos mostraram interesse em alterar os hábitos de mobilidade.
Em Chelas já há várias iniciativas que incentivam as crianças a usar a bicicleta, como o projeto Roda Viva, promovido pela Associação Descalçada, e apoiado pelo BIP/ZIP, e que funciona no espaço Kriativu de Nuno Varela. “As crianças acabam por não sentir falta destas infraestruturas porque têm aqui bicicletas ao seu dispor e andam sempre dentro do bairro”, diz o próprio.
O problema é mais sentido pelos adolescentes e pelos adultos, tal como explica Henrique Chaves: “O que eu sinto é que não há oportunidade de continuarem a andar de bicicleta quando crescerem e tiverem trabalhos”. Ou seja, quando tiverem de sair do bairro para outras zonas da Lisboa. “Faltam ligações de ciclovia na cidade”, acrescenta ainda.
Andrea conhece a realidade. “Na verdade são as pessoas que aqui vivem que precisam mais de alternativas de mobilidade”, diz.
E é verdade: afinal, um passe da Gira é de apenas 24 euros, bem mais barato do que um passe da Carris. O passe só é grátis para maiores de 65 e estudantes até aos 23 anos (em alguns casos, 24).
Quem conhece a realidade do terreno contrapõe. “Os decisores políticos acham genuinamente que se criarem redes de bicicleta em zonas mais pobres não vão ter sucesso e isso é falso”, afirma Miguel Padeiro. “Se houver apoios, que não são só financeiros, mas que partem também da sensibilização das associações locais, nos bairros mais pobres passam a usar-se as ciclovias”.
Um estudo do Ipsos publicado este ano concluía que quanto mais seguras as pessoas se sentirem mais vão pedalar. E a segurança parte, claro, da construção de infraestruturas.
Há mesmo exemplos de bairros carenciados que alteraram os seus padrões de mobilidade a partir do momento em que se construíram ciclovias: aconteceu em Londres, no Reino Unido, e em Minneapolis e Milwaukee, nos Estados Unidos.
Segurança não é a palavra que ocorre quando se acompanha Andrea.
Na Avenida Santo Condestável, é só estrada e vegetação à volta. Muitos carros a circular. No meio dos terrenos descuidados, surgem trilhos que sobem pelo bairro: são marcas dos pés daqueles que não têm por onde caminhar. Ou pedalar.
E a saúde?
Não é só a segurança que está aqui em causa: é também a saúde. “As pessoas ainda não perceberam que existe uma relação entre políticas de mobilidade suave e saúde”, diz Miguel Padeiro. “As pessoas precisam de meios para conseguir melhorar a sua saúde”, e andar de bicicleta pode ser um desses meios. Não é uma solução mágica, claro, mas faz parte do caminho.
Por exemplo, numa área sem ciclovia, uma pessoa a andar de bicicleta está sempre mais exposta aos tubos de escape dos carros.

A Avenida Santo Condestável desagua numa grande rotunda, onde os carros disputam o seu lugar. Para evitar o caos, Andrea comete uma infração: atravessa a rua de um lado para o outro e desloca-se pela passadeira.
Finalmente, está a salvo.
Chegando ao Bairro do Armador, não há sinais de ciclovias ou bicicletas. Há, sim, muitos carros estacionados. À porta da Academia Jorge Pina, Andrea salta da bicicleta e prepara-se para o treino.
É aí que repara numa trotineta Whoosh, a única que pode entrar no bairro. Talvez esteja a começar a mudança.

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Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Não é verdade que a freguesia de Marvila não seja servida por ciclovias, é possível entrar numa ciclovia à beira rio, junto à fábrica Braço de Prata e seguir na direcção do Vale Fundão, bairro das Amendoeiras, atravessar a ponte sobre a Avenida Santo Condestável, seguir para o Bairro da Flamenga e da Bela Vista sempre em ciclovia. Na Avenida Paulo VI junto ao Bairro do Condado (antiga zona J) também há uma ciclovia. Pela minha experiência pessoal não é, de modo algum,das zonas de Lisboa com menor cobertura de ciclovias.
As ciclovias são tão necessárias como as estradas para os carros, e cada vez mais.
Mas é algo que ainda está muito atrasado no nosso país em relação a outros paises.
Nem sei por é que esta reportagem foi simplesmente publicada aqui. Todos sabemos que as pessoas dos bairros desfavorecidos não têm Formação nem Cultura para utilizar estes meios de transporte. Portanto faz todo o sentido que eles só existam nos bairros mais ricos
Mário, pode ver os mapas que estão no artigo. É uma das zonas com menos cobertura.
Olhando para o mapa, penso que confirma a minha descrição, há zonas pior servidas por ciclovias do que Marvila/Chelas, zonas tão diferentes entre si como Santa Clara, Ajuda, Estrela, Misericórdia ou Santa Maria Maior, pelo que o argumento da disparidade económica na escolha dos percursos das ciclovias não colhe, na minha opinião. Em relação aos operadores privados e públicos de bicicletas/trotinetas partilhadas, concordo que, aí sim, há uma discriminação intolerável e esperemos que o futuro regulamento municipal de utilização destes meios de transporte ponha fim a essa situação.