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Quem o conhece bem sabe que, mais tarde ou mais cedo, um projeto como o Kriativu sairia do papel. Afinal, Nuno Varela já andava há muitos anos com essa ideia: criar um espaço que servisse o desenvolvimento da criatividade da comunidade. Não só de Chelas, um dos maiores bairros de Lisboa, onde cresceu, mas de todos os que tenham vontade de aprender e de explorar o seu talento em várias artes.
Varela, também conhecido como “O Padrinho”, não esconde o que teria significado, como estímulo, se, há uns anos, tivesse acesso a um canto destes. Hoje, com 38 anos, é um dos maiores empreendedores de hip hop em Portugal e uma inspiração para muitos – dos jovens que querem vingar aos idosos a quem dá formação. No entanto, nem sempre foi assim. Até porque a vida nunca lhe foi facilitada, teve sempre que lutar por uma decente.
“Temos estúdio musical, sala de podcast e outra onde vamos fazer workshops. Ainda quero fazer aqui um estúdio de fotografia e temos um projeto de bicicletas”. Nuno Varela é o responsável do Kriativu, mas fala sempre no plural. O que é dele, é de todos. E vai apontando para o equipamento de som, para as paredes que ainda irão mudar e para o material das obras ainda à vista. “Alguém que queira vir gravar sobre culinária, fado ou metal, são todos bem-vindos”.
“Percebi que havia muitos moradores sem trabalho e que conseguia fazer a obra com eles. Não são profissionais, mas sim curiosos”
Nuno Varela
Há música a sair das colunas e movimento de amigos e curiosos do bairro a passar pela praceta. Varela não perde tempo e oferece uma cerveja. Brinda-se. Afinal, hoje é dia de festa. Paulinho é o homem da grelha. Vai abanando e preparando a brasa, quase pronta para receber a carne. Ao mesmo tempo, olha pelas bicicletas que estão a ser requisitadas. “Maquelé” quer andar numa. Marcelino noutra. São crianças aqui do bairro, que agora têm oportunidade de, gratuitamente, pedalarem à vontade.




“Este é o projeto Roda Viva, que vem através da Associação Descalçada e é apoiado pelo programa Bip/Zip da Câmara de Lisboa. Vamos ter um festival de cinema e oficina, onde os jovens podem pegar numa bicicleta e devolver noutros pontos que sejam parceiros”, explica Varela, enquanto dá uma mão no preenchimento das folhas. “Falta aqui a hora em que vens entregar”, explica, apontando para o papel de um deles.
Para os menos atentos, pode parecer algo mais básico do que já existe por Lisboa com a partilha de bicicletas e trotinetes, da Câmara e de empresas privadas. Mas quem aqui vive, nesta e noutras zonas mais sensíveis da cidade, sabe que não há docas da Gira. E as trotinetes, quando entram no bairro, ficam a apitar: são lugares interditos e estão delimitados no mapa da aplicação. No Kriativu começa assim, ainda em fase embrionária, uma alternativa à oferta em Lisboa.



Varela também já foi um destes miúdos a correr para cima e para baixo. “Eu cresci nesta praceta. Antigamente, todo o bairro parava aqui”. Tinha uns 13 anos quando a sua família veio das antigas barracas de madeira da Azinhaga das Teresinhas, em frente ao Colégio Valsassina, e foi realojada na Zona M. Olha os prédios em volta e lembra-se bem como o bairro estava sempre cheio de pessoas e negócios abertos. Havia talho, cabeleireiro, loja dos 300, café, mercearias. E crianças a brincar por todo o lado. O oposto do que agora vemos. Para seu desânimo.
Por isso, o Kriativu vem também trazer vida e um novo ponto de encontro ao seu bairro. Há pessoas de todas as idades a querer espreitar o interior do que em tempos foi um mini-mercado.
A obra era para durar um mês e pouco, recorrendo a uma empresa de construção, mas arrastou-se por mais de três meses e com gente do bairro. Varela tinha já vários orçamentos e no dia em que ia adiantar 50 por cento do valor, andou por estas ruas, que tão bem conhece, à procura do que é que um e outro sabiam fazer. “Percebi que havia muitos moradores sem trabalho e que conseguia fazer a obra com eles. Não são profissionais, mas sim curiosos.”


Quem mais tempo dedicou à obra foi Paulinho, que tem uma história muito difícil para trás e aqui esteve concentrado todos os dias, dedicado a tudo. Como agora, enquanto vai despachando papo secos com mistas de carne. “Olá, Dona. Hoje é dia de comer. Vá ali tirar uma entremeada”. Varela vai conversando e dando as boas vindas a quem passa.
Também ele pôs as mãos na massa sob indicação dos outros. Lixar, pintar, colar o chão ou insonorizar o estúdio. Fez um pouco de tudo. “Quando não sabíamos, íamos ao Leroy e perguntávamos aos profissionais como é que se aplicava”. O espaço não está finalizado, garante Nuno Varela. “E se a nossa criatividade não parar, também nunca estará acabado. É como a Sagrada Família”.
“Podes ter muito gás, mas precisas daquela faísca para pegar fogo. O Varela é essa faísca”.
A tarde vai passando, a música vai aumentando de volume e cada vez se juntam mais apoiantes do projeto. Há várias mãos a mostrar como o equipamento que ali está não é para enfeitar. Uns divertem-se cá fora nas bicicletas. Outros pedem ajuda a Varela para pôr a funcionar a mesa de som que será usada para gravar podcasts. E assumem o microfone, dando asas à imaginação do que têm para dizer.

Cá fora, atento ao movimento, Ricardo – mais conhecido por Mr. Cohen – não tem dúvidas de que este é um espaço com muito potencial, se todos souberem usá-lo e dinamizá-lo. Mas também avisa, no geral, que “não pode ser só uma casa de alunos, com putos curiosos”. Ou seja, tem de haver pessoas com conhecimento por perto. É fundamental.
E dá o exemplo dele, que gostava de desenhar, fazer graffitis e explorar o mundo das artes, até que alguém o desafiou a arriscar-se como tatuador. Esse alguém foi Varela, em 2007.
Mr. Cohen, que viveu na Zona J e trabalhou aqui mesmo na Zona M, descreve o amigo de longa data como alguém que puxa pelos outros e não precisa de estar diretamente envolvido no projeto. “Podes ter muito gás, mas precisas daquela faísca para pegar fogo. Ele é essa faísca”. Para este tatuador profissional, que se apresenta como “designer no papel”, há muita gente que, com metade dos conselhos de Nuno Varela, acaba por se safar. “Chega ao pé de ti e diz: começa a fazer isso, experimenta só”.
Há quem possa dizer o mesmo, como Lewis ou Danny The Dawg – que também aqui está na inauguração. São artistas de música da Zona M e trabalham muito com Varela. Ele já os puxou de um estúdio caseiro, improvisado no quarto de alguém, para um profissional. Já os pôs a cantar para uma plateia.
Quem também está entusiasmado em usar o equipamento de som é Erickson. Chega-se à frente e assume um dos microfones. Chama por “Cohen”, que rapidamente se posiciona no outro, e começam a conversar sobre a oportunidade que o Kriativu vem trazer a todos.
“Sejam bem-vindos aqui ao viveiro, porque em Chelas há muito talento”, diz Erickson. Ouve-se à volta: “estão a gravar para alguma rádio?”. É a sensação que dá, vendo o profissionalismo que assumem numa brincadeira que anuncia longas conversas a gravar.

Agora, Erickson aponta o dedo e chama outro artista ao microfone. “Vem cá contar-nos a tua cena. Não te escondas”. O intimado é Wilson Lopes – também amigo de Cohen há muitos anos, de quando viviam na Apelação, em Loures – que se aproxima timidamente, segurando um par de ténis com a sua arte da BNC Movement (Bringing New Colours).
Wilson lembra quem ali está daqueles ténis que adoram, mas têm lá em casa, a um canto, velhinhos e muito gastos. “Naturalmente, começam a oxidar e então há todo um processo para contrariar isso. Com uma pintura voltam a ficar mais apresentáveis.” É essa a arte de Wilson, económica e amiga do ambiente.
Para além de recuperar ténis, outra componente do seu trabalho é personalizá-los. E não lhe faltam encomendas. São vários os jogadores de basquetebol que recorrem ao seu talento: João “Betinho” Gomes, do Benfica; Diogo Ventura, do Sporting; e outros dos EUA que estão cá em Portugal. Wilson também estudou design, mas a prática veio igualmente do graffiti. Ele e Cohen chegaram mesmo a ter um grupo. O orgulho com que falou da sua arte valeu-lhe uma salva de palmas.

Os beats voltam a tomar conta da sala. Há miúdos a puxar pela invenção. Paulinho, lá fora, aguenta a brasa e a carne continua a sair. Um dos papo secos chega às mãos de Malabá, conhecido rapper da Margem Sul e grande amigo de Varela, que acaba de chegar e não perde tempo. Começa a fazer aquilo de que gosta.
Pede a música mais alta e improvisa umas rimas, divertindo toda a gente. Ele, que também adoraria ter tido um espaço como este quando estava a crescer enquanto artista. “Só vem inspirar novos talentos, fazer o povo unir-se pela arte, pela criatividade. Por aquilo que é bonito”.
Varela, conseguiste.
KRIATIVU: Rua Bento Gonçalves, 727, loja A, Chelas
Projeto planeado e executado por “Hip Hop Sou Eu” e “Chelas é o Sítio”, contou com o apoio do programa Bip/Zip, da Câmara Municipal de Lisboa, através do projeto “Roda Viva” com a Associação Descalçada. E contou ainda com o apoio de outros parceiros, como a Associação Rés do Chão 119 , a Junta de Freguesia de Marvila, “Rimas ao Minuto”, o Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento da Universidade Lusófona e o Grupo Recreativo Janz e Associados.

Nuno Mota Gomes
É jornalista. Adora escrever, fotografar e perder-se em pensamentos. Anda de mota, faz surf, viaja sempre que pode – e nem sempre para o estrangeiro. Agora fá-lo mais aqui, em Lisboa, onde nasceu. Um Interrail abriu-lhe horizontes, publicou um livro e muitas reportagens de viagens na Volta ao Mundo – onde se estreou na TV. Passou ainda por outras publicações e durante dois anos integrou o Diário de Notícias. Há quem diga que percebe de redes sociais. Tem 29 anos.

Inês Leote
Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 21, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. Agora, está a fazer um estágio de fotografia na Mensagem de Lisboa.