Nuno Varela, ou o ‘o Padrinho’ para os amigos e conhecidos, nasceu em Chelas há 36 anos, rodeado de esquemas, droga, pobreza e com o pai na prisão. Ao mesmo tempo viveu momentos de muito companheirismo, brincadeira de rua e esperança por dias melhores. Acima de tudo, nunca lhe faltaram sonhos do tamanho do mundo. Grafitou paredes, usava calças largas e queria ser rapper. Devorava revistas de música internacionais, colava posters de artistas no quarto e não largava o seu walkman – através do qual mergulhava na cultura de hip hop dos EUA. A vida nunca lhe foi facilitada, mas sempre lutou por uma decente. É hoje pai de duas crianças e uma inspiração para muitos jovens.

Ele próprio não consegue definir bem a sua profissão. Leva artistas prodígio a palcos grandes, organiza eventos, dá palestras. “Sou um hustler” – diz, e a melhor tradução seria fura-vidas. Trata por «tu» a maioria dos rappers em Portugal. Mas nada do que lhe aconteceu foi do dia para a noite. É verdade que tudo se tornou mais sério quando, em 2007, lançou o projeto Hip Hop Sou Eu, ao qual mais tarde se juntou o seu melhor amigo e influência de vida – Guru [1980-2015].

Queria consolidar o crescimento deste estilo de música em Portugal e o resultado foi tornar-se responsável pela maior plataforma de divulgação de hip hop no país – atualmente com 175 mil subscritores no Youtube, 52 mil seguidores no Facebook e 40 mil no Instagram. 

Todos estes anos depois, e já sem o amigo, Nuno Varela continua a ter e a fomentar o interesse por esta cultura. No entanto, admite que já não é como gostava. “Antes, um rapper tinha de passar pelo nosso canal. Agora já há outras opções, é tudo diferente”.

Chelas é o bairro de Varela, a sua inspiração, o seu mundo. É lá que nos leva, às suas raízes, para mostrar onde tudo começou. “Nada do que te possa acontecer na vida vai abalar mais do que as merdas que passas aqui”, diz. Olhando para trás, a vida, em Chelas, não mudou muito. Continua a haver o mesmo tipo de esquemas, a mesma vontade de ser dali, de curtir, de viver a cidade e de “fazer dinheiro para ir a mariscadas”. 

Varela fervilha ideias e, por isso, é sempre difícil saber em quantos projetos está a colaborar. Ou a liderar.

Nem todos, porém, conseguem dar a volta como ele deu. Educado, divertido, focado, usou a sua adolescência difícil como fonte de força. 

Zona M – 14:52

O encontro fora marcado na sua zona, que como todas, em Chelas, leva uma letra. A dele, nos últimos anos, foi a M. Ali estava, à janela do primeiro andar que o viu crescer. “Vou já descer!”. O acordado era que iríamos de carro dar uma volta às várias zonas, mas Nuno quis começar a pé à porta daquela que foi a sua casa e onde ainda vivem os pais. Arrancamos e a primeira pergunta é dele: “É a tua primeira vez num bairro social?”. Tentei responder alguns nomes, mas rapidamente se riu e garantiu: “Esses não contam”. 

Poucos metros à frente passamos pelo mural do melhor amigo dele, “Guru”, a quem a doença levou cedo da vida. O rosto dele está ali eternizado para que ninguém se esqueça de viver como ele o fazia: a sorrir. Conheci os dois no mesmo dia, em 2012, na Baixa de Lisboa, num destes convívios de gente interessada na cultura hip hop. Guru foi como um irmão mais velho para Varela (ver fotos em baixo). Partilhavam tudo, passavam horas a ouvir música. 

Um ano depois da sua morte, Varela criou a Associação Guru. É um projeto de apoio social à comunidade, especialmente para jovens. Através de workshops procura desenvolver o interesse em áreas como produção de vídeo, música, fotografia, teatro ou desporto. Varela fervilha ideias e, por isso, é sempre difícil saber em quantos projetos está a colaborar.

Ou a liderar, como a Liga Knockout, o evento mais conhecido de battles escritas e acapella entre MC’s em Portugal, com uma dezena de edições e onde rappers se desafiam em batalhas de palavras: entre rimas, improviso, fazer rir e mandar o outro abaixo – literalmente, mesmo. O público presente começou reduzido, mas os vídeos multiplicam-se em milhares de visualizações nas redes sociais e os palcos também aumentaram.

Varela numa das muitas iniciativas com a comunidade em que dá o seu contributo. À direita está também Lewis, de t-shirt branca, rapper em ascensão.

“Bebemos uma cerveja?”, pergunta, já em direção à porta do café O Primeiro. Cumprimenta o senhor Alfredo, atrás do balcão. Saem duas médias. Brindamos antes do primeiro gole. Varela começa a desfiar as histórias do bairro. “Sôr Alfredo, lembra-se de quando toda a gente ligava da prisão para aqui, para falar com a família? E ao contrário também”. O dono do café recorda as “filas, aqui, à espera da sua vez”. Naquele momento entra outro rapaz, falam todos em crioulo, a língua franca por aqui. E riem-se muito, sem explicar a piada a quem não percebe. 

Voltamos à rua e Varela diz, divertido: “Quem nos está a ver juntos acha que estou a fazer algum esquema contigo. Toda a gente sabe que não és daqui, nem vieste cá passear.”

“Tudo isto que vês é Chelas, sim, mas há diferenças. Só nós que somos daqui é que conhecemos as fronteiras”

Aponta para várias fachadas de prédios e diz o nome de cada artista musical que lá vive. “Chelas, neste momento, está muito forte ao nível da música. Tem putos com bué talento, que, se quiserem, podem fazer acontecer.” Para ele, ter o melhor MC [Sam the Kid], em Chelas, e a maior plataforma de divulgação de hip hop também, são privilégios que dão força. “Isso só pode ser usado a favor deles”.

A favor deles têm ainda o outro lado do bairro: uma união que Varela refere como sendo uma das características de quem vive nestas paragens, uma espécie de companheirismo ancorado no bairrismo. “Quem cá vive defende: «Isto é nosso»”.

Com mais duas cervejas na mão, descemos a rua para um lugar com vista panorâmica sobre o bairro. Aos olhos de um desconhecedor é tudo Chelas. Mas não para um nativo. “Tudo isto que vês é Chelas, sim, mas há diferenças. Só nós que somos daqui é que conhecemos as fronteiras”. E explica que, se houver um bailarico local, conseguem distinguir onde está o pessoal de uma e outra zona – com letras e números a dar-lhes nome. Mas se forem a uma festa fora dali já é tudo igual. “Dentro é por zonas. Fora é Chelas. Mas as fronteiras não são numa de «não podes vir para aqui», mas sim: eu sou daqui, eu represento isto”. 

No carro dele pede “desculpa pela sujidade” mas não esconde o cheiro a (quase) novo e motivo do seu orgulho. Segue a visita ao bairro, onde vai apontando para os prédios que são sociais e os que já são comprados por quem consegue fazer algum dinheiro e quer viver ali.

As estradas em ziguezague deste alto no centro de Lisboa, ele conhece-as como a palma da mão, embora atualmente já não more ali. “Tenho muitos anos aqui e, como trabalho com hip hop que está associado a bairro, era muito bairro. Tive de sair”, justifica. Mas faz questão que os seus filhos também tenham essa noção profunda do bairro. Seja com ele ou quando estão em casa dos avós. 

O jovem Varela na escola a representar a célebre expressão Thug Life.

O equilíbrio às vezes é difícil. “O meu filho conhece esta realidade, claro, mas ele vive um paralelo”. Varela sempre quis fazer as coisas por iniciativa própria. Já a mulher “estudou muito e é advogada”. O pai é cool, dá-se com artistas e, embora não tenha feito um curso superior, Nuno Varela quer os filhos a estudar. Com o filho, partilha o gosto pelos ténis e a música do momento. “Aconteceu ter tido uma discussão ao telefone com um manager e não ter conseguido um artista para atuar numa viagem de finalistas. O meu filho ouviu tudo porque estava no carro comigo e aconselhou-me uns nomes”. Resultado: um deles foi lá cantar, e fez sucesso.

Zona N1 e N2 – 15:43

“Aqui é o mural do Snake” [1979-2010]. Paramos para uma fotografia junto à homenagem do seu amigo e também estrela do rap de Chelas. E logo recorda-se, com divertimento, de quando Snake lhe ligou a perguntar se queria participar no video clip que ia gravar com Sam The Kid. “Convidei um amigo e viemos para aqui, foram feitas várias filmagens durante o dia. Avisei bué gente que ia entrar no clip”. Mas quando este foi para o ar, Varela não queria acreditar: “fiquei o tempo todo à espera de me ver a aparecer, o que nunca aconteceu”, recorda em gargalhada, a olhar para o prédio amarelo onde decorreram as cenas da faixa ‘Negociantes’.

Cruzamos a esquina do prédio e Varela aponta: “Esta era a janela dele. Bastava chegar aqui e assobiar”. Nuno Rodrigues, “Snake”, tinha 30 anos quando um tiro lhe roubou a vida. Entre a primeira versão de que o rapper não obedeceu a uma operação stop, às testemunhas que negam e afirmam que Snake fez inversão de marcha numa zona proibida, as autoridades iniciaram uma perseguição. Começou em Alcântara e terminou fatalmente na Radial de Benfica, às 5h da manhã. A PSP afirmou, na altura, que o agente que puxou o gatilho tinha pouca experiência. Snake, por sua vez, não conduzia sob o efeito de álcool nem drogas, revelou a autópsia. 

Não é de agora que a história fique mal contada quando se fala de tragédias relacionadas com bairros sociais e preconceito à primeira vista. Snake foi um caso mediático. Mas há outros a lamentar. 

Varela abre o vidro do meu lado, buzina e puxa pela voz: “Então Pina, como é que é? Estás em forma ou quê?”. Do outro lado há um sorriso, um aceno, um “tá-se bem”. E segue caminho, reforçando: “Chelas é enorme, olha a quantidade de prédios que ainda tens para ali.”

Entre as zonas N1 e N2, encosta o carro numa paragem de autocarro. De um lado só se vê campo – um campo a sério, verde, como quase já não há em Lisboa. Este é um lugar muito importante na sua vida. “Aqui era a Azinhaga das Teresinhas. Eu e o Guru somos daqui”. Aponta para um local muito específico, como se estivesse a visualizar tudo novamente, e descreve: “Esta era a entrada, onde eu vivia numa barraca de madeira sem condições nenhumas.”

Do outro lado da estrada está o colégio Valsassina. “Todos os dias eu saía da realidade da merda e via a realidade do luxo”. O contraste choca. Para lá deste lugar, onde surgiu um campo de golfe que depois faliu, vê-se ao fundo o bairro organizadinho de Alvalade. 

“Ali ao fundo é a zona I, do Sam. Aqui é N2, ali é zona J e aquela é a M. Daqui vemos tudo. Grande vista, não é?”

O colégio está rodeado de prédios sociais onde Varela diz que “parava muito e tinha bué amigos brancos que me gravavam cassetes”. Mas hoje, é tudo diferente. E Nuno sabe-o bem. “Há pouco tempo tive de parar o carro ali e ligar à minha mulher”. Varela levava consigo os filhos e desatou a chorar. “Íamos neste carro, quase novo, enquanto antigamente eu andava aqui e saía da barraca para ir para a escola”. Nuno Varela não defende que os miúdos devam andar em colégios, mas admite uma vontade de lá pôr os seus. “Como conquista no meu percurso, percebes? Eu cresci na barraca”. 

Varela a relembrar os anos em que viveu na Azinhaga das Teresinhas, numa barraca de madeira.

Voltamos à estrada e nesta altura já posso confirmar que Chelas é muito maior do que um estranho possa imaginar. Conduzimos por mais uma zona, outra letra, outra identidade. “Ali ao fundo é a zona I, do Sam. Aqui é N2, ali é zona J e aquela é a M. Daqui vemos tudo. Grande vista, não é?”. Sem dúvida, amigo. 

No alto deste centro de Lisboa há várias vistas panorâmicas da cidade. E agora já sabemos identificar as fronteiras entre cada zona, cada identidade. [Foto: Nuno Mota Gomes]

Passamos pela igreja onde foram velados a maioria dos seus amigos que já morreram. “O Guru, por exemplo”. E voltamos a descer pela N1, que considera ser uma zona muito importante para o hip hop: foi dali que saíram os melhores breakdancers de Chelas. Por aqui, identificamos vários automóveis de gama alta. “Em muitos bairros, a forma de arranjar dinheiro é roubar e traficar. Chelas não. Pode ser tudo. Há milionários de tudo”. 

Varela não considera que os esquemas sejam feitos por quem ambiciona simplesmente uma vida melhor. E reforça que viver no centro da cidade é uma vantagem “por haver vários tipos de trabalho”. Ou seja, “quem tem esse estilo de vida é porque quer ser rico e não quer trabalhar das 9 às 5”. 

16:23

Varela recebe uma mensagem importante no telemóvel. “Sempre queres falar com o Sam? Ele respondeu-me para irmos ter com ele. Mas está a perguntar: «é jornalista de onde?»”, diz-me em tom de riso. E arranca em direção à zona I. 

Varela espreita por um lugar para estacionar perto do ponto de encontro que marcou com o amigo Sam The Kid. [Foto: Nuno Mota Gomes]

“Chiquinho, então ‘pá, estás bacano? O teu puto está a jogar onde? Estás na Carris agora, não é? A minha mulher diz que te apanhou no bus. Qual é a carreira que fazes?”

Varela encontra só mais uma cara bem conhecida e encosta na berma para pôr a conversa em dia. “Estás todo bem vestido”, diz-lhe em tom de brincadeira. O amigo ri-se, orgulhoso da farda de motorista, gabando-se do trabalho certo e do contrato efetivo. 

Assim que estacionamos à porta do prédio resolvo perguntar-lhe o óbvio, que faltava. Por que é que és ‘o Padrinho’? Varela desliga o carro. Olha para mim a sorrir e diz: “O teu início de relação com o Sam, quem é que apadrinhou? Fui eu… Percebes?” Saímos, batemos com as portas e Varela acrescenta enquanto põe os óculos escuros: “Fui eu que olhei para mim e comecei a dizer: I’m the Godfather”.

Zona I, Café Periquito – 16:34

“Sam é o Nuno; Nuno é o Sam. Tu conheces o Sam; o Sam não te conhece. Puxa uma cadeira, boy. Queres beber uma cerveja?”. Samuel Mira, o lendário Sam The Kid, vai antes buscar uma água com gás. E não demoram mais do que trinta segundos para a conversa entre os amigos há mais de vinte anos resvalar do “está tudo bem” para hip hop. Da falta de eventos, das novas tendências lá fora e de como eles, mais velhos, querem motivar jovens mais novos a fazer acontecer. A humildade dos dois fala mais alto. É bonito.

Nuno Varela e Samuel Mira são amigos há mais de vinte anos. E têm sempre novidades para contar e histórias para recordar. [Foto: Nuno Mota Gomes]

Do nada, Varela encara Samuel com muita curiosidade. “Epa, vou fazer-te uma pergunta que de certeza que nunca ninguém te fez. Sempre que íamos a tua casa, o teu avô estava a fazer um puzzle de uma vida ou eram vários?”

Samuel vai dizendo que “sim” com a cabeça, já a soltar um sorriso nostálgico, olhando para o nada e a reviver memórias. E responde: “Ele estava sempre ali sentado à entrada do quarto, ouvia os sons em primeira mão. Mas sim, essa era uma ocupação dele. Até costumo dizer que: se um gajo não tiver objetivos morre. Nem que seja um puzzle.”

Um abraço aos dois.

Esta reportagem continua à conversa com Sam The Kid. Para ler aqui.


Nuno Mota Gomes

É jornalista. Adora escrever, fotografar e perder-se em pensamentos. Anda de mota, faz surf, viaja sempre que pode – e nem sempre para o estrangeiro. Agora fá-lo mais aqui, em Lisboa, onde nasceu. Um Interrail abriu-lhe horizontes, publicou um livro e muitas reportagens de viagens na Volta ao Mundo – onde se estreou na TV. Passou ainda por outras publicações e durante dois anos integrou o Diário de Notícias. Há quem diga que percebe de redes sociais. Tem 29 anos. 

Entre na conversa

11 Comentários

  1. Excelente artigo! Continuem a publicar este tipo de conteúdos. Fiquei colado do princípio ao fim. Obrigado

  2. Excelente contributo para uma melhor percepção de (e para) Chelas. Nada como partir da história de “alguém de dentro”, para quebrar os tabus do desconhecimento.

  3. Emoção nostálgica. Conheço pessoalmente os dois, passei bons momentos com ambos, e sempre que é possível, falamos ao telemóvel. Concertos, festas, workshops de breakdance, vídeo clipes. Como costumo dizer, fiz parte do movimento, até a vida permitir. Mas ainda sigo, praticamente, todas as pisadas. Simplesmente, mais um grande artigo deste hip hop world. É claro, também sou filho de Chelas.

  4. Outro filho de cheila.
    Conheço bem is corredores, as zones e as divides do bairro pois fez muito parte da minha infancia.
    Estou fora a mais de 20 Amos mas me resta memorias frescas dos anos 90.
    Poderia mencionar 1001 homes de amigos, casinos, colleges de infancia etc, etc…
    Não estou aqui para isto ou aquilo, venue aqui para te parabenizar Varela.
    No meu tempo não tinha ninguem para nos apoiar com esses events ou projecto pois se isso fosse possivel cheila teria cristi muitas Sam the Kid, Snake ou Nuno etc.
    Mais 1 × amigo is meus sinceros parabens pelo vertigo publication.
    For a com os teus projectos e sonho por realizar.
    Sff ajuda is outros a saires da marginalização para um futuro melhor.

    Alf Mendes ( careca de chelas)

  5. Grande Varela. Amigo, boa onda,genuíno. Tinha tudo para se ter perdido, e ainda assim, ajuda muita gente a encontrar-se.

  6. Muitos parabéns!!! Estou fora a 14 anos mas sei bem.o que é dizer com orgulho quando alguém.me pergunta de onde és: Sou de chelas!! Muito obrigada pelo documentário! Muitas Felicidades aos 2 vizinhos 🙂 😄

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *