O arquiteto Ton Salvadó nasceu em Barcelona e desde cedo se deixou contaminar pelas grandes discussões sobre o futuro das cidades. Já na faculdade, pensava a arquitetura e o urbanismo como uma forma de humanizar o meio urbano.

Daí a ideia das super-ilhas, que surgiu quando Ton foi nomeado diretor do Modelo Urbano do Município de Barcelona, com a Presidente Ada Colau – primeira mulher na câmara e eleita por um conjunto cívico que começou com os protestos contra a subida do preço das casas e os despejos. Seria ele o responsável pela implementação da primeira (e de muitas mais) “superilhas” de Barcelona.

As muito faladas “superilhas” são constituídas por nove quarteirões onde o tráfego de carros é limitado às ruas principais (aquelas que ficam no exterior dos blocos), abrindo-se as ruas interiores aos vizinhos para que usufruam a cidade.

Uma ideia que tem vindo a crescer: Barcelona propõe-se a criar 500 superilhas.

Mas nada disto foi conseguido sem umas quantas lutas. Ton Salvadó viu os seus planos urbanísticos a serem levados a tribunal pelos vizinhos do bairro de Poblenou, no centro histórico, até finalmente as suas ideias conseguirem ir para a frente.

Por estes dias, Ton esteve em Lisboa, na Biblioteca dos Coruchéus, num evento organizado pela Lisboa Possível e a ZERO, para explicar como se poderiam implementar “superilhas” em Lisboa. A Mensagem encontrou-se com ele no Jardim do Príncipe Real para perceber melhor este conceito.

Como é que surge a ideia das superilhas?

A ideia de fragmentos de cidade com mobilidade limitada não é nova. No século XX houve muitos teóricos e urbanistas que se debruçaram sobre esta questão. Em Barcelona, desde os anos 1990 que se desenvolviam teorias sobre as superilhas com um modelo bastante rígido. Mas nós queríamos algo mais adaptável e mais fácil, e por isso a ideia foi-se transformando.

Inicialmente falava-se de recintos fechados. Tentámos dar a volta e centrar os superblocos na questão do espaço pacificado. Passámos de superilhas que eram pensadas como um objeto físico a uma técnica de transformação. Essa técnica passa por discriminar as ruas em que o tráfego de passagem é substituído pelo tráfego de origem e de destino.

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Consegue descrever uma superilha para quem nunca viu uma?

Pensemos numa rua contínua em que eu podia passar de carro de uma parte da cidade à outra. Nessa rua, passam a só poder circular os veículos com origem e destino. Ou seja, ao chegar a determinado ponto, os veículos de passagem veem-se obrigados a mudar de direção e voltar para trás. É o conceito basilar das superilhas: só entram os carros de quem vive ali. A partir daí, posso ampliar espaço público, posso permitir que as crianças brinquem na rua.

Por exemplo, temos esta rua fantástica aqui à frente – a rua da Escola Politécnica -, com duas faixas de estacionamento e duas faixas de circulação para carros. Num superbloco de Barcelona, reduziríamos tudo isto a uma só faixa de circulação, onde passariam as bicicletas e os carros de quem ali vive. Dessa forma, ganha-se espaço para os peões, mais espaço verde, menos poluição, menos ruído, menos acidentes.

O importante é identificar muito bem quais são as ruas onde se podem criar praças e assim vamos multiplicando as praças pela cidade.

Os carros de quem ali vive podem então circular? 

Sim, essa é a ideia. Não se elimina a circulação. Não eliminamos esse direito para os cidadãos que vivem na área. 

Quando surgem estas superilhas há alguma resistência por parte das pessoas, apesar de todos os benefícios. Como explica esta mentalidade? 

Eu uso uma analogia: há doenças das quais te apercebes quando tens um problema de estômago, quando tens um problema de visão. Mas o problema são as doenças das quais tu não te apercebes, como a diabetes. É isso que nos está a acontecer com o planeta.

Transmitir esta questão de saúde é uma questão de emergência. Não é um tema menor: ou atuamos muito rapidamente, ou teremos um problema grave em termos de saúde.

Um dos problemas é o aumento da temperatura. Em cidades como Lisboa e Barcelona, onde há muitos pavimentos, asfalto e casas, há que pensar nesta questão. Isso é algo que temos de contar às pessoas para que elas entendam. É uma questão de pedagogia, de muita pedagogia. E essa pedagogia só se pode fazer bem com a ajuda das administrações locais.

O problema são as pessoas que não acreditam e que colocam os seus interesses pessoais acima dos coletivos. É preciso falar com elas.

Por exemplo, no que diz respeito ao tema do consumo, o preço da água aumenta quanto mais elevado for o seu consumo, mas isto não é porque a pessoa pode pagar mais, é porque estamos a sobrecarregar o planeta.

Há que falar sobre estes problemas. Tenho de falar com o vizinho sobre o quanto os automóveis estão a afetar a nossa saúde. E a verdade é que para isso temos de tornar as cidades espaços para deslocações a pé e de bicicleta. Porque nas cidades em que há carros, bicicletas e trotinetas, a maioria das pessoas vai escolher o carro para fazer o seu percurso diário. 

E por que é que as pessoas continuam a preferir o carro? 

O lobby dos carros já tem muitos anos. Havia um anúncio há uns dois, três anos em que se via uma pessoa num veículo que ia passando por uma paisagem fantástica e se dizia que aquilo era a liberdade. Não se dá conta que o carro dá um gasto enorme na fatura familiar. Para eliminar os veículos, há que dar algo em troca.

Numa cidade com passeios como Lisboa por vezes não se pode caminhar, é preciso passeios mais largos para isso.

É preciso reforçar o sistema de transportes públicos. É preciso inverter a ordem: neste momento, os automóveis estão em primeiro lugar, os peões em último. Há que inverter: vêm primeiro os peões, a seguir as bicicletas e as trotinetas, o transporte público e só depois o transporte individual.

Esta não é uma questão de Lisboa, nem de Barcelona, nem de Paris: é uma questão planetária. Se não entendermos, estamos perdidos. Mais evidências do que este último ano não há!

O que mais me preocupa é que não aprendemos com a pandemia: foi aí que se percebeu que, quanto menos nos movemos, mais fauna, mais vegetação, mais qualidade de ar existe. Não é possível que nos tenhamos esquecido. Estamos num beco sem saída, não há mais alternativa. 

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Ton Salvadó acredita que o urbanismo é uma forma de tornar as cidades mais justas. Foto: Rita Ansone

Depois de alguma resistência, como tem sido a vivência nas superilhas? 

Desde as primeiras experiências até às últimas, aprendemos muito e apercebemo-nos do quão importante era trabalhar com os vizinhos. O trabalho foi fundamental. Conseguimos que os vizinhos inicialmente resistentes se tornassem defensores.

Para além do primeiro caso, o do Pobleneu, vimos que alguns vizinhos resistentes se deram conta do quão importante era a transformação, e não podiam renunciar àquele benefício para os filhos, os pais, os avós, os cães.

É o mesmo com o tema do fecho ao trânsito nas áreas comerciais: ao início os comerciantes são contra, até que descobrem que afinal ganham muito mais dinheiro.

Eu creio que, com o tempo, não haverá outro caminho… o que aconteceu em Barcelona foi muito bonito. Chegámos a ter petições de outros bairros a pedir-nos superilhas. Nem todo o mundo estava contra, e isso foi positivo para o processo de transformação. A praça é o foco das superilhas e queremos que elas cresçam: é a ideia de uma raiz que vai crescendo e se vai alastrando, reduzindo a mobilidade de passagem ao mínimo possível.

As super-ilhas acabam por funcionar um pouco como a cidade dos 15 minutos, não? 

A intenção, em última instância, é que as pessoas não se tenham de mover tanto pela cidade. Que tenham o supermercado perto de casa, a escola, a biblioteca, etc. A ideia é que, viva onde viva, terei os serviços à distância de um passeio.

Ton Salvado Príncipe Real
Com as superilhas, é possível libertar-se mais espaço para o usufruto da cidade. Foto: Rita Ansone

E como é que surge a sua ligação com todas estas ideias?

É uma pergunta interessante, mas complicada. Eu sempre me dediquei à arquitetura e ao urbanismo. Na faculdade, havia essa preocupação de criar cidades mais humanas, e é certo que, com os anos, a consciência em relação aos conflitos da cidade contemporânea, que se tornava cada vez mais hostil, ia crescendo.

Fomo-nos apercebendo que havia um problema de saúde e o trabalho começou por ser reverter a maneira de entender a cidade. Passámos a pensar o urbanismo com a perspetiva de género, mas a ideia não era pensar uma cidade para as mulheres, mas pensar a cidade com os olhos de uma mulher, que são olhos mais sensíveis do que os homens.

Queríamos uma cidade melhor para as mulheres, para as crianças, para os avós, para as pessoas com problemas de mobilidade ou de visão. Uma cidade para a vida quotidiana, e esse olhar feminino ajuda-nos. Hoje, as crianças não podem brincar tranquilamente no parque se não puderem atravessar tranquilamente a rua. Queríamos recuperar aquilo que os nossos avós e os nossos pais nos contavam da cidade deles. É essa a ideia que está por detrás: a de humanizar a cidade, de a tornar menos hostil.

Quando nos perguntam se o urbanismo tem uma ideologia, pois claro que tem! O urbanismo tem de favorecer a justiça social. E um modo de justiça que me agrada é a justiça do espaço. A cidade pode ser mais justa quando ajuda a equilibrar os bairros. 

Aqui em Lisboa, um dos motivos a que se deve a resistência à substituição do carro pela mobilidade suave é a própria topografia da cidade. Como é que se contorna esta questão?

Barcelona é uma cidade mais horizontal, embora não toda, também há bairros acidentados. Lisboa não é uma cidade tão fácil, claro, mas há que fazer um esforço. Uma topografia abruta como Lisboa permite que algumas ruas horizontais, como esta rua aqui, se tornem em ruas de trânsito de origem e destino.

Há que identificar quais as melhores ruas para implementar diferentes formas de mobilidade. Aqui, por exemplo, falta espaço para as bicicletas. Nesta rua, havia que eliminar os carros e o estacionamento, colocar estacionamento para bicicletas e ampliar o espaço. Noutros casos podem implementar-se bicicletas em faixas partilhadas com os carros, onde estes circulem a 30 ou 20 km/h.

Se é chato para os carros? Temos pena.

As bicicletas elétricas são boas para as ruas mais inclinadas, e têm mais lógica em Lisboa do que em Barcelona. Há que atender à topografia, e pensar numa rede que funcione em toda a cidade para a bicicleta. Há que haver uma planificação arterial muito bem pensada para que as pessoas se possam deslocar de forma confortável. A ideia é que a dependência da bicicleta não seja um ato heróico, mas sim um ato normal. Não pedimos um cidadão heróico, mas sim um cidadão normal. 

E um superbairro seria possível aqui em Lisboa?

Seria distinto. Há que pensar em estratégias, dar algumas voltas, a solução é adaptar sempre à realidade física. Há que ver quais as ruas principais e secundárias, quais as ruas que podem ser pacificadas. Quando pensamos numa rede de autocarros, pensamos em toda a cidade, aqui é o mesmo. 

Os carros ainda podem ocupar um lugar nas cidades do futuro?

Eu creio que eliminar os veículos na sua totalidade é uma ideia utópica, mas o mundo move-se por utopias. Parece-me bem imaginar uma cidade sem carros. Vai demorar muitos anos, e entendo que o automóvel tenha trazido também muito: os meus avós passaram a conseguir ir até ao centro de saúde graças ao automóvel.

O problema é que é um setor de negócio com uma capacidade de influência sobre a classe política muito grande, tal como as companhias energéticas. Vai custar muito eliminar os carros, o importante é ter objetivos utópicos e objetivos realistas. Seria um erro pensar que vamos trocar os veículos de combustão por veículos elétricos. Os veículos elétricos são mais poluidores no seu ciclo de vida do que os de combustão. 

Podemos dizer que cidades mais verdes e sustentáveis nascem de uma alteração de mobilidade?

É uma consequência. É da alteração da mobilidade que se amplia o espaço público e nascem mais espaços verdes. Quando se fala nas ilhas de calor, precisamos de mais superfícies verdes para gerar espaços climaticamente confortáveis. A diferença de temperatura num sítio com árvores ou sem árvores é brutal. Se eu tenho solo verde, a permeabilidade é mais importante. Há uma ligação entre tudo isto.

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Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

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