Foi bandeira da campanha autárquica de Carlos Moedas e está agora prestes a tornar-se realidade: a gratuitidade da utilização da rede de transportes públicos da cidade para estudantes até aos 23 anos de idade e para pessoas com mais de 65. Após a entrada em vigor do Programa de Apoio à Redução Tarifária (PART), em 2019, os títulos de transporte para estas faixas etárias já tinham custos reduzidos, valendo 22,5 euros e 12 euros mensais, respetivamente, mas a lista encabeçada por Carlos Moedas decidiu dar um passo mais ambicioso.
Apesar de muito propalada pelo atual presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), a medida é pouco experimentada na Europa e os seus resultados deixam dúvidas, sobretudo no que respeita à substituição do automóvel pelos transportes públicos – um dos objetivos centrais assumidos até 2030 pela autarquia.
Em Lisboa, a gratuitidade vai custar 14,9 milhões de euros em compensações anuais à Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML), entre 2023 e 2025. Para este ano, a CML conta com um gasto de cerca de 6,3 milhões, já que a medida deverá entrar em vigor até julho para maiores de 65 anos e em setembro para estudantes até aos 23 anos.
A Mensagem falou com dois especialistas em mobilidade sobre as potenciais vantagens e desvantagens da entrada em vigor da gratuitidade nos transportes públicos e o consenso verificou-se, apenas, numa questão central: a equidade da medida.
Para reduzir o número de automóveis a circular nas ruas da cidade, será necessário que incentivos à utilização dos transportes públicos sejam acompanhados de restrições à utilização do automóvel privado.
A necessidade de reduzir a utilização do automóvel

A simplificação dos tarifários (PART), acompanhada de uma descida drástica do preço dos títulos de transporte, foi uma das medidas com mais impacto ao nível da utilização dos transportes públicos na Área Metropolitana de Lisboa (AML) nas últimas décadas. Possibilitou a eliminação de milhares de combinações tarifárias possíveis e agregou operadores de transporte coletivo em dois tipos de passe mensal: o navegante municipal, de uso exclusivamente municipal, no valor de 30 euros, e o navegante metropolitano, no valor de 40 euros, que permite viagens entre os 18 concelhos da AML.
Antes, um único passe mensal chegava a custar 120 euros. Os efeitos do choque tarifário não se fizeram esperar. Em outubro de 2019, quebrou-se o recorde de venda de passes na AML: 768 mil, num crescimento homólogo na cidade de 24,8%.
A chegada da pandemia colocou um travão repentino à enorme subida na utilização da rede de transportes públicos em Lisboa, mas a cidade, agora a regressar à normalidade, tem ambiciosas metas para cumprir. Até 2030, Lisboa está comprometida com uma redução de 26% na utilização do automóvel. O objetivo é traçado pelo MOVE 2030, o documento estratégico da CML que orienta a política municipal de mobilidade para a próxima década. Segundo o documento, em 2017, o veículo automóvel próprio era utilizado em 46% das deslocações dentro da cidade, face aos 34% apontados pela autarquia como meta a alcançar até 2030.
Esta meta é acompanhada pelos objetivos de ação climática da câmara municipal, comprometida em reduzir em 70% as emissões de gases com efeito de estufa até 2030, face a valores de 2002. Já no final do passado mês de abril, a Comissão Europeia anunciou que Lisboa integra o lote de 100 cidades europeias com o objetivo de se tornarem neutras em carbono até 2030.

Poderá, agora, a gratuitidade da utilização dos transportes públicos em duas faixas etárias fazer aumentar os níveis de utilização dos mesmos e, sobretudo, levar a uma diminuição do número de viagens realizadas em automóvel na cidade? O que aconteceu onde a medida foi implementada?
Em Talin, o transporte público conquistou 14% e o uso do automóvel desceu
A capital da Estónia, onde a utilização da rede de transportes públicos é gratuita desde 2013, será uma das experiências mais duradouras e de maior escala no continente europeu. Se é verdade que a medida alcançou sucesso nalguns campos, também é verdade que noutros a sua eficácia revelou-se limitada.
No primeiro ano, a utilização da rede de transportes públicos aumentou em 14%, com evidência de “melhorias para a mobilidade das pessoas com mais baixos rendimentos”, ainda que “o efeito da tarifa zero seja substancialmente mais baixo do que o apontado em estudos anteriores, dados os bons níveis de serviço, a alta percentagem de utilização e os custos baixos já existentes antes da tarifa zero”, lê-se em estudo de 2014.
Quase um ano após a entrada em vigor da medida, os impactos ao nível da utilização do automóvel foram positivos, embora com menor expressão, registando-se uma descida de 5%. Num estudo de 2014, quase um ano após a entrada em vigor da gratuitidade, é revelada uma das consequências mais inesperadas: uma diminuição de 40% nas deslocações a pé.
Antes da entrada em vigor da gratuitidade, Talin contava já com uma elevada taxa de utilização de transportes públicos – cerca de 40%, face aos 22% de Lisboa, verificados em 2017.
Luxemburgo e Cascais: gratuitidade em tempo de pandemia
Anunciado em meios de comunicação internacionais como o primeiro país do mundo a tornar a sua rede de transportes públicos universalmente gratuita, o Luxemburgo implementou a medida em março de 2020, quando a pandemia teve início, facto que ainda dificulta uma avaliação dos seus impactos.
Ainda assim, a utilização dos transportes públicos, no país que tem uma população idêntica à do concelho de Lisboa, aumentou. Dados oficiais mostram um aumento de 35% na utilização diária da rede de elétricos. Se em fevereiro de 2020, era utilizada por 31 mil passageiros diários, em fevereiro do ano seguinte, este número atingia, já, os 42 mil.
Também em Cascais, a gratuitidade foi implementada no início de 2020 a todas as pessoas residentes, trabalhadoras ou estudantes no concelho. A medida, acompanhada de um aumento substancial da oferta, com o “dobro dos quilómetros” relativamente à oferta anterior, resultou num crescimento de 10% na utilização, alcançando os 12 milhões de passageiros anuais.
“Mais do que o preço, é a frequência, regularidade e qualidade do transporte público” que opera mudanças

Em 2020, no relatório “O Estado da Nação e as Políticas Públicas”, elaborado pelo ISCTE e coordenado pelo economista Ricardo Paes Mamede e pelo atual ministro da cultura, Pedro Adão e Silva, lia-se no capítulo dedicado às políticas de transportes que, “mais do que o preço, é a frequência, regularidade e qualidade do transporte público, em conjunto com medidas restritivas ao uso do automóvel, que leva à transferência de viagens em carro para o transporte público”.
A frase citada é de Mário Alves, especialista em transportes e mobilidade, que sublinhava que o aumento de cerca de 25% dos passes vendidos e de 30% no número de passageiros não era correspondido com uma “clara” redução do uso do automóvel na cidade.
À Mensagem, o especialista considera a medida positiva, nomeadamente ao nível da “equidade social”, acrescentando ainda que, por ser orientada particularmente para uma camada jovem da população, pode ter como efeito “jovens habituarem-se a utilizar o transporte público e terem tendência para comprar carro ou tirar a carta mais tarde”.
“A transferência através do preço, do carro para o transporte público, é extremamente reduzida”
Mário Alves
É em relação ao potencial da gratuitidade para a transferência do automóvel para o transporte público que Mário Alves reserva o seu ceticismo. “A transferência através do preço, do carro para o transporte público, é extremamente reduzida”, diz, acrescentando que para a concretização das metas ambientais assumidas “acaba por não ter grandes consequências”.
À semelhança do que aconteceu na capital da Estónia, a gratuitidade pode, ainda, conduzir a um efeito menos desejado: a diminuição das deslocações a pé, nas distâncias mais curtas. Tudo, porque, diz Mário, “a cidade tem muito más condições para andar a pé. Os semáforos demoram muito, há carros em cima do passeio, a calçada portuguesa é escorregadia e tem buracos que não são tratados. Andamos, há muito tempo, a tratar mal os peões. Os peões, principalmente os idosos, têm medo dos carros, da velocidade, das calçadas, [e] poderão ter tendência para usar o transporte público. É pena em termos ambientais. Estamos a passar de um modo de transporte ambientalmente positivo para outro ambientalmente negativo”.
Gratuitidade “devia ser encarada numa perspetiva metropolitana”
Para Filipe Moura, professor de Sistemas de Transportes no departamento de Engenharia Civil e Arquitetura do Instituto Superior Técnico (IST), a medida adotada pela CML “vem ao arrepio daquela que era a grande ideia do passe Navegante: a simplificação do sistema de tarifário e de bilhética”.
“Viemos de um sistema com mais de cinco mil títulos de transporte possíveis na Área Metropolitana de Lisboa para dois ou três. [Se] Começamos outra vez a voltar para trás, estamos a complicar o sistema e a introduzir exceções”, diz o especialista, discordando da adoção de exceções locais.
Recorde-se que a proposta de gratuitidade aprovada pela CML não contempla o passe metropolitano, mas apenas a utilização dos transportes públicos dentro dos limites do concelho.
“A lógica da gratuitidade faz sentido, mas devia ser sempre encarada numa perspetiva metropolitana. Começarem com estas iniciativas, município a município, vai dificultar a vida a quem tem de pensar o sistema como um todo – que é a Transportes Metropolitanos de Lisboa”.
O especialista, que também considera que a gratuitidade “faz todo o sentido do ponto de vista da equidade”, não acredita, tal como Mário Alves, que a medida possa contribuir para “combater a dependência automóvel”. “Já há alguma evidência científica que mostra que em muitos casos não é o fator preço que muda as pessoas”.
Push and pull: a estratégia para tirar carros da cidade

A receita que leva à alteração de comportamentos nas deslocações e promove a diminuição do uso do automóvel já é conhecida.
“O que se sabe, depois de muitas décadas a trabalhar nestes assuntos, é que, geralmente, o que funciona é o chamado push and pull”, diz Mário Alves. É uma estratégia que exige “medidas para encorajar” a utilização de transportes públicos”, mas também medidas para “desencorajar” a utilização do automóvel.
O especialista em transportes critica aquela que considera ser a postura habitual dos políticos: “[têm] sempre tendência para políticas de encorajamento e têm muitas dificuldades em usar políticas de restrição ou de desencorajamento do uso do automóvel”.
Mas, sublinha, para a receita funcionar, as duas devem coexistir. Sem isso, “não haverá mudança de comportamento”.
“Tem que haver uma fortíssima restrição ao automóvel. Tem que ser caro estacionar [e] tem que haver menos lugares de estacionamento dentro das cidades”
Filipe Moura
Os dois especialistas estão de acordo quanto ao caminho a seguir. Filipe Moura acredita que “tem que haver uma fortíssima restrição ao automóvel. Tem que ser caro estacionar [e] tem que haver menos lugares de estacionamento dentro das cidades”.
Ambos criticam a medida, anunciada por Carlos Moedas, que prevê oferecer os primeiros 20 minutos diários de estacionamento e reduzir em 50% o seu custo para residentes em Lisboa. Para Mário Alves, a proposta pode “encorajar os moradores a andarem de um lado para o outro de carro”. O percurso a seguir devia ser o inverso, afirma, através de uma política “que é muito eficiente e usada no resto da Europa – a redução do número de lugares de estacionamento”.
Já do lado dos incentivos, acrescenta Filipe Moura, e para além do custo, “temos de atingir um nível de excelência nos serviços prestados pelos transportes públicos”.

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
✉ frederico.raposo@amensagem.pt
Sim considero uma proposta interessante.
A questão é quando pensamos em transportes públicos, pensamos em metro carris e comboio.
Ignoramos todas as outras transportadoras, como a Rodoviária de Lisboa que tem fins de semana hora a hora. Ou o metro que fecha a 1 da manhã.
Antes de sequer ponderamos que os serviços sejam gratuitos. Porque depois o que mais se vai ouvir é “é grátis e ainda reclama”…
Devíamos focar-nos em ter uma rede de transportes pública de qualidade.
Com maior frequência, horários mais alargados e veículos com condições.
Porque pagar para qualidade todos pagamos, pagar para estar 1H a espera de um autocarro que nem sequer sabemos se vamos entrar porque está cheio… well.
MAS FALTA AINDA MAIS UM POUCO DE TOLERÂNCIA PARA O PASSE METROPOLITANO QUE CUSTA 20 EUROS. COMO AGORA É GRATIS PARA LISBOA, QUEM QUISESSE O PASSE METROPOLITANO SERIA MAIS JUSTO TER O MESMO TRATAMENTO QUE OS REFORMADOS DO METRO E CARRIS, QUE PAGAM VOLTA DE 11 EUROS.