António Manuel, Fernando e Dinis entram no número 8 do Largo de São Domingos, no Rossio. Dentro da pequena taberna típica lisboeta, infiltrada pelo cheiro doce e intenso de licor, está um homem baixo, com algum cabelo branco, alguma idade e um polo bege da Ginjinha Espinheira. Pergunta: “Com elas ou sem elas?”. A resposta depende da vontade do freguês.
“Quem vem ao Rossio não pode deixar de passar na Ginjinha. É quase como ir a Roma e não ver o Papa. É paragem obrigatória”, conta Dinis, enquanto apanha uma das cerejas de dentro do pequeno copo de vidro.
À porta do mítico espaço, entre grupos de turistas e conversas paralelas, os três angolanos relembram as noites de juventude passadas no Largo de São Domingos. Com gestos largos e entusiasmados, António Manuel – Tomané, para os amigos – relembra, com Fernando, o circuito que faziam nas noites de festa pela cidade a ouvir os ritmos africanos que duravam até de manhã.
“Quando cheguei a Lisboa, senti-me logo em casa”, diz António. A Baixa Pombalina lembra-lhe a Mutamba, em Luanda. Veio para Portugal num dia já esquecido de 1994, quando percorreu o oceano que liga os portugueses e os africanos há séculos, fugindo da guerra civil angolana.



Fernando e Dinis chegaram também durante os anos 1990 à capital portuguesa, ainda jovens, à procura de mudança, tal como as dezenas de milhares de cabo-verdianos, angolanos, moçambicanos e guineenses que migraram nesta época para escapar à instabilidade política e social dos seus países, antigas colónias de Portugal. Lisboa foi o destino para muitos dos que ocuparam um papel determinante na construção e reconfiguração da cidade.
E é de imigrantes africanos que se faz a concentração diária no Largo de São Domingos, já uma imagem de marca da Baixa, que se tornou (sempre foi) num lugar de confraternização entre as diversas comunidades africanas. Este espaço é uma representação da cidade multicultural e tem um lugar de peso nas reflexões contemporâneas sobre o espaço urbano.
Em 1993, quando José Eduardo Agualusa, Fernando Semedo e Elza Soares publicam o livro Lisboa Africana, que explora o período das vagas migratórias intensas do continente africano e retrata a presença dos grupos de imigrantes estabelecidos na comunidade lisboeta, contextualiza a presença secular africana no Rossio, palco de criação de partidos e movimentos políticos e até conspiração de golpes de estado, que terão sido organizados a partir de míticos cafés da zona.
Ainda hoje, 28 anos depois, quem passar por aqui, encontra grupos de africanos a conversar sobre política, futebol ou o país de origem – mesmo que o tenham deixado há muito.
Todos os caminhos vão dar ao Largo de São Domingos
No meio do alvoroço da multidão em frente à estação do metro do Rossio, na Rua do Amparo, está todos os dias um grupo de guineenses à conversa. Alguns são antigos combatentes da Guerra Colonial que lutaram por Portugal, revela Dinis. Muitos usam o kufi ou taqiyah, um chapéu tradicional sem abas usado por homens da diáspora africana e do Sul Asiático, maioritariamente por membros da religião islâmica.

É o caso de Soleimani, que convive todos os dias com os companheiros de longa data. Veio da Guiné-Bissau em 1989 à procura de melhores condições de vida e encontrou-as num emprego como segurança. Hoje, o Largo de São Domingos faz parte da sua trajetória diária.
Sentado num canto do banco de madeira e com um sorriso simpático (escondido pela máscara, mas que se adivinha pelos olhos), Soleimane recorda-se bem do dia em que chegou à capital portuguesa. Era 31 de outubro de 1989. Veio sozinho à procura de trabalho para um país com o qual apenas partilhava a língua.
Agora, já mais velho, está reformado e partilha os seus dias com compatriotas seus, como Ângelo, também reformado, jogador de futebol durante a juventude e adepto entusiasta do Benfica. O desporto rei é um dos temas invariáveis das conversas acesas.
Indiferentes às discussões futebolísticas, um grupo de mulheres vestidas com longas túnicas de cores vibrantes e mistura de padrões – os trajes típicos, que variam consoante a etnia -, vendem ali perto produtos da Guiné-Bissau.

As mulheres, o comércio e os sabores de África
Passa pouco das 16h30 e o sol teima em queimar. Ao fundo da rua, por debaixo das altas árvores, amarrada à mala preta que tinha ao colo, Mariama, de rosto envelhecido, refugia-se do calor.
Com um português marcado pelo sotaque guineense, pergunta a quem passa se quer comprar cajus, cabaceiras, óleo de palma ou cola (uma fruta, semelhante à castanha, com um sabor amargo). Chegou da Guiné-Bissau há três anos devido a uma doença prolongada, cujo tratamento procurou em Portugal, e desde então que quase todos os seus dias são passados a vender produtos alimentares no Largo de São Domingos, porque sabe que é aqui que vem quem procura ingredientes e produtos típicos africanos.
O que ganha chega para a renda e pouco mais. Às vezes, nem para isso, quando tem multas para pagar por estar a vender sem licença naquela zona. Num tom baixo e saudoso, Mariama recorda os 11 filhos que não a acompanharam neste percurso pelo Atlântico, do marido e dos dois filhos que já morreram. Está sozinha em Lisboa, mas agora é esta a sua casa.
O comércio aqui vem de longe. Já em 1707 existiam comerciantes africanas no Rossio, que vendiam milho, arroz e chícharos cozidos, como escreve Cristina Roldão numa reportagem para o Público. Neste mesmo ano apresentaram ao rei uma petição onde reclamavam das perseguições e maus tratos por parte das autoridades e reivindicavam o reconhecimento do seu direito a trabalhar naquela zona, “dado que as suas ancestrais o faziam ‘desde que o mundo era o mundo’”.




Isabel Castro Henriques contava, em entrevista à Mensagem, que o Rossio era para os lisboetas e os africanos o largo da feira onde tudo se comprava e vendia, o local onde tudo se podia encontrar. Era o espaço das festas, das touradas, das tabernas e do famoso Hospital de Todos os Santos, na escadaria do qual se reuniam as comerciantes negras.
Este espaço está cheio de histórias: foi palco da Matança da Páscoa de 1506 – no dia 19 de abril, há 516 anos – o massacre de milhares de judeus, acusados de serem a causa de surtos de peste e da seca prolongada -, e anos mais tarde, durante a Inquisição, lugar de onde partiam os autos de fé em procissão.
Ponto de encontro dos africanos
Na Igreja de São Domingos foi criada a primeira Confraria do Rosário dos Homens Pretos, que se tornou num local de devoção e de proteção social de escravos e forros negros lisboetas. Também por isso o Largo de São Domingos se mantém até aos dias de hoje como o local de convívio escolhido pelos africanos – apesar de a importância social e religiosa do lugar se ter perdido na memória coletiva, visto que já são poucos os que conhecem esta parte da História da cidade.
Parte dos roteiros que focam a Lisboa africana, esta particularidade e singularidade de Lisboa causa, no entanto, admiração a todos os afrodescendentes e africanos que visitam a cidade: são poucas as cidades europeias que podem proporcionar esta experiência.
Já é tarde e a esta altura o sol já se pôs, mas os três angolanos estão ainda em conversa, à porta da Ginjinha. Combinam as preparações para o 56º aniversário de Dinis, a acontecer dali a dois dias. Já tinham comprado o peixe seco para o Calulu – um prato típico angolano – às comerciantes, aqui no Largo.




Feitos os preparativos, discutem o estado da política em Angola. No telemóvel, António partilha a música que escreveu em crítica ao governo angolano em 2014, em colaboração com o Príncipe “Virex”, Venâncio Lucundo, que afirma ser descendente da rainha angolana Ginga, Ngola Nzinga Mbandi ou Ana Sousa.
Clarisse abana lentamente a cabeça em desacordo com que está a ser dito. A angolana chegou há três meses a Portugal e, sem conhecer ninguém decidiu visitar o Rossio, sabendo que aqui encontraria alguém com quem conversar. O debate é interrompido pela brisa fria que se faz sentir. E vão todos para casa. “Já não reconheço a noite lisboeta”, confessa António. Ainda assim, ao Rossio, não deixará de vir.
* Nascida em Braga, Júlia Mariana Tavares fez de Lisboa casa, com vontade de contar histórias desta cidade cosmopolita e multicultural. Finalista de Ciências da Comunicação da Faculade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa, estagiou na Mensagem de Lisboa. Texto editado por Catarina Pires.
Gostava de ir uma semana á Guine Bissau S.Domingos estive lá entre 1966/68 e gostaria de alugar um carro para dar umas voltas mas tambem só ha um hotel e bastante caro ainda não vou este ano de 2022