Se parar no trânsito da 2ª Circular, na zona do estádio de Alvalade, talvez tenha a sorte de reparar numa camada verde de plantas, uma muralha contra o ruído. Para muitos, passará despercebida, com a pressa da hora de ponta a fazer disparar o som das buzinas, mas para lá da estrada e da barafunda dos carros, há um pequeno oásis escondido no meio da cidade.

“É uma barreira contra a poluição sonora”, diz uns dos mais recentes habitantes deste pequeno reino, António Vaz Pato, um dos chamados “guardiões” (voluntários) da Horta da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Horta FCUL), da qual fazem parte alunos e ex-alunos dos seus vários cursos, mas especialmente de Biologia.

Os voluntários da horta da Faculdade de Ciências são os chamados “guardiões”, responsáveis por cuidar do espaço. Foto: Inês Leote

Ali os baloiços são feitos de pneus e os caminhos são atravessados por árvores como a cerejeira e a amendoeira. Um pequeno lago cintila, com uma parede de vidro acrílico a expor as raízes submersas das suas plantas. Do solo, rebentam as alfaces, as couves e as courgettes.

As minhocas rastejam em velhos contentores cedidos pela Câmara Municipal de Lisboa, transformando os restos de comida dos bares da faculdade em húmus, adubo para a terra, e as galinhas livram-se das ervas daninhas, fertilizando o solo com as suas fezes – e também por isso têm direito, merecidamente, a “condomínios de luxo”.

Num ponto de descanso, uma rapariga observa este pequeno país das maravilhas. “Estamos em fase de arrumações”, diz, apontando para a revolução que vai no espaço de convívio. Não se chama Alice, mas o seu nome tem tudo a ver com o ambiente que a rodeia: Madalena Horta é mais uma das guardiãs que se prepara para sujar as mãos, dando vida à terra.

Os ciclos da horta

Neste dia, assinala-se o regresso das atividades da horta e da famosa “sopa” que será servida ao jantar, cozinhada com as colheitas do dia. E, no dómus que os próprios guardiões construíram, talvez se oiça música e se dance, como dantes se fazia.

Tal como os convívios, espera-se que as atividades da horta arranquem finalmente, depois de a pandemia as ter adiado. É que por aqui já se fez um pouco de tudo: as colheitas da horta já serviram de ingredientes para a sopa da cantina e das plantas aromáticas já se produziram óleos essenciais e sabonetes.

No ano passado, a Horta FCUL chegou mesmo a marcar presença na exposição Hortas de Lisboa, e Rebecca Mateus, a responsável pela comunicação da horta, lembra-se bem de fazer bolinhas de sementes à uma da manhã para serem instaladas no Palácio Pimenta do Museu de Lisboa.

Hoje as tarefas são outras e os guardiões retomam as suas funções: cultivam cá fora ou na estufa, um “berçário” de plantas, e completam aquele que é o princípio deste projeto: a de “abrir e fechar ciclos”, como explica Rebecca, a jovem com estilo hippie que conhece todos os recantos da horta.

Aqui, até mesmo os resíduos da jardinagem são reciclados, fazendo-se a triagem entre os verdes, com mais azoto, os castanhos, com mais carbono, e os ramos, para depois serem misturados proporcionalmente. O resultado é aquilo a que Rebecca chama “uma lasanha de compostagem” que, depois de maturada, serve de adubo para fertilizar a terra.

Abrir e fechar ciclos – princípios da agricultura sustentável que os guardiões começaram a explorar – e que fizeram os seus voluntários descobrir outros caminhos. “A horta fez-me perceber que o que curto mesmo são as questões ligadas à sustentabilidade na cidade”, diz Madalena, que está a estagiar numa startup de compostagem. O mesmo diz António, ainda a estudar Biologia: “A minha cena são plantas”.

Rebecca também se descobriu neste espaço, até porque o viu nascer. Já colabora com a horta desde 2012 e assistiu a uma série de transformações. Entretanto, não só foi professora de horticultura como hoje é bolseira do Instituto Superior de Agronomia (ISA) na área da agricultura sustentável.

Os primeiros rebentos

Os princípios da agricultura sustentável foram importados pelos pioneiros da Horta FCUL. E David Avelar foi um deles. Hoje é investigador da Faculdade de Ciências na área da adaptação com base em ecossistemas e tem a sua própria startup. Mas em 2004 era um só um jovem curioso.

Tão curioso que decidiu passar seis meses numa comunidade de permacultura em Espanha – e saiu fascinado. Numa conversa de café com colegas, lançou-se a ideia de uma horta para a faculdade. David e os amigos queriam um espaço onde a aprendizagem fosse para além dos livros. Onde se sujassem as mãos de terra em vez de se encher a cabeça de matéria.

David Avelar foi um dos fundadores da Horta FCUL em 2009. Foto: Inês Leote

Esse grupo de jovens da Faculdade de Ciências conseguiu-o. Em 2009, semearam-se os primeiros rebentos da Horta FCUL num pequeno terreno concedido pela faculdade, que hoje tem o nome de “hortinha”.

David lembra-se bem das árvores que brotavam levemente do solo quando tudo começou. Agora as raízes estão fortes e as árvores robustas. Sente-se quase como um pai que nem se apercebeu do crescimento dos filhos.

Nessa “hortinha”, uma área mais exposta aos olhares dos alunos e docentes, cresceram palmeiras e uma buganvília, que há anos que trepa pelas paredes da faculdade (uma pequena rebeldia cometida por alunos).

Pela extensão de verde germinam as plantas rasteiras, as chagas, os arbustos (um deles cheio de malaguetas) e uma delicada amendoeira, que se avista à distância. Este foi o primeiro dos passos – mas David e os colegas não ficaram por aqui.

O espaço da “hortinha”, o embrião da Horta FCUL. Foto: Inês Leote

Em 2016, criou-se um living lab, um ecossistema aberto e colaborativo, também a propósito da tese de doutoramento de David – o PermaLab, o espaço voltado para a 2ª Circular onde hoje funciona a maior parte das atividades da horta.

Neste PermaLab, a aprendizagem fervilha. Foi aqui que se fizeram grandes investigações e descobertas científicas: estágios de ERASMUS, teses de doutoramento e de mestrado, como foi o caso de Madalena, que fez a sua tese de mestrado sobre compostagem comunitária com base na experiência da horta.

Trabalhar em comunidade

A ciência é vida e está em constante mutação. E a mudança traz novos desafios e descobertas – que David não quer parar de explorar. Por isso mesmo, no ano passado, alguns dos membros da horta uniram-se para criar a FCULresta, uma floresta densa mesmo em frente à “hortinha”, para ser estudada e monitorizada.

Uma floresta densa dentro da faculdade – o projeto da FCULresta. Foto: Inês Leote

O projeto, que nasceu no âmbito do 1Planet4All – Empowering youth, living EU values, tackling climate change (uma aliança de 14 organizações não-governamentais da Europa e da qual a associação portuguesa VIDA faz parte), inspirou-se no método do botanista japonês Akira Miyawaki, que assenta nos princípios do solo, do cultivo de espécies autóctones, da densidade e da integração comunitária.

Nesta floresta, plantaram-se árvores que, estando próximas umas das outras, crescem para cima e não para as laterais, convergindo neste grande repositório de biodiversidade, onde até se criou um abrigo para os anfíbios que por lá saltitam.  

Por cada árvore plantada surge ainda uma etiqueta com o nome da sua espécie e de quem a plantou, propagando-se aquele que é também o mote da Horta FCUL desde o seu nascimento: a agricultura sustentável em comunidade.

E esse espírito de comunidade que alia a ciência à agricultura sente-se na Horta FCUL pelos seus vários espaços: no PermaLab, na hortinha e na recente FCULresta. É talvez o aspeto que Rebecca mais valoriza na sua experiência na horta: “A horta ensinou-me muito sobre como trabalhar em grupo e em comunidade”, diz. “Deu-me ferramentas para ouvir toda a gente e tomar decisões”.

No final da tarde, com o sol já a esconder-se nas nuvens cinzentas de um dia de inverno, o experiente David e o recém-guardião António escavam buracos para cultivo. Nem os pingos de chuva que começam a cair os demovem.

É o amor que têm à terra e que faz a natureza seguir o seu curso, com as minhocas a decompor os resíduos, as galinhas a revolverem o solo e os humanos a transformá-la – e a descobrirem-se nessa transformação. “Isso também é bonito, perceber que este projeto mudou o caminho de várias pessoas”, diz Madalena Horta.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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2 Comentários

  1. Adelaide Hortas da Silva… 😄 ♥️
    PARABENS de uma Amiga da velha guarda… Cuja SAUDADE se torna a Verdadeira Razão de estar Presente… e em comunhão de interesses Reais e Sinceros…
    ♥️
    Eu

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