Para não falhar o barbecue de um amigo, teve de apanhar, à pressa, um comboio perto de Paris. Foram uns 50 quilómetros, entre os mais de três mil que pedalou, de Bruxelas a Lisboa, onde chegou no último dia de agosto. Foi a única batota de Matthew Baldwin, vice diretor da direção geral da mobilidade e dos transportes da Comissão Europeia e coordenador europeu para a Segurança Rodoviária, para chegar, de bicicleta, à Velo-city, a maior conferência da área, que começa hoje em Lisboa e acaba dia 9, na FIL, no Parque das Nações.
“Foi uma honra e um privilégio pedalar por tantos lugares”, diz, no quiosque do Jardim Constantino, em Arroios, antes de subir até ao Saldanha. Até Lisboa, foi seguindo duas rotas da EuroVelo, uma rede de 17 percursos promovida pela Federação Europeia de Ciclistas (ECF), com mais de 90 mil quilómetros por todo o continente europeu.
Nas viagens entre regiões, França “é o país que não precisa de ciclovias”, diz, porque tem “uma rede enorme de estradas rurais”. Depois de entrar em Espanha, Matthew seguiu caminho pela costa norte, passou por Bilbao, a primeira grande cidade espanhola a implementar o limite generalizado de 30 quilómetros por hora nas ruas, e acabou em Vigo. Encontrou “muito respeito pelos limites de velocidade”, conta. “E 30 km por hora é um enorme bónus!”

O coordenador da segurança sublinha muito a importância de reduzir velocidades para dar segurança aos utilizadores vulneráveis – os peões, utilizadores de bicicleta e motociclistas. Ou seja, as “pessoas sem uma cápsula protetora” que representam 70% das mortes nas estradas. “Se formos atingidos por um automóvel a 60 quilómetros por hora, que é a velocidade habitual numa zona de 50 quilómetros por hora, temos menos de 20% de hipóteses de sobreviver”. Por outro lado, diz, se a velocidade do impacto for de 30 quilómetros por hora, a hipótese de sobrevivência sobe para mais de 80%. “Quando dizemos isto às pessoas, incluindo aos políticos, dizem-nos: ‘Meu Deus, pois é. É tão óbvio o que devíamos estar a fazer’”.
Em Lisboa, o limite de 30 quilómetros por hora não se encontra, ainda, generalizado nas ruas da cidade, embora, nos últimos anos, tenham sido implementadas algumas Zonas 30 em bairros da cidade, casos das Avenidas Novas ou do Bairro do Arco do Cego.
Na chegada a Portugal, “uma introdução espetacular” e “a falta de noção nas velocidades”
Depois de Vigo, a entrada em Portugal aconteceu pelo município de Vila Nova de Cerveira. “Foi uma introdução espetacular”, conta o responsável da Comissão Europeia, que fez a longa viagem de Bruxelas a Lisboa porque “tinha muitos dias de férias para tirar”.
Ao entrar no país, as estradas de empedrado não facilitaram a viagem, mas as diferenças não se ficaram pelo piso. Matthew Baldwin reparou no comportamento dos automobilistas: na passagem por vilas e cidades, deparou-se com aquilo que apelida de “falta de noção nas velocidades”.
E não foi o único.
Herbert Tiemens também veio de bicicleta até à Velo-city. Partiu da cidade de Utrecht, nos Países Baixos, onde trabalha para o município no planeamento de infraestruturas destinadas ao estacionamento de bicicletas. Saiu a 19 de julho. Chegou a 2 de setembro, 46 dias depois, 4110 quilómetros percorridos.
Foi a sua primeira vez em Espanha e em Portugal e diz que a viagem foi “fantástica”. Os caminhos que escolheu levaram-no por pequenas aldeias, “fora dos centros turísticos”. Sentiu-se “bem-vindo pelas pessoas” e sentiu-se, também, “parte da paisagem”.
À semelhança de Matthew Baldwin, Herbert também identificou diferenças vincadas entre os automobilistas em Espanha e em Portugal. Do outro lado da fronteira, “são muito cuidadosos, levam o seu tempo a ultrapassar. Se há uma curva e não conseguem ver, não tentam, ficam relaxados atrás”. “Em Portugal”, conta, surpreendido, “é um pouco diferente. Parecem estar apressados, não sei porquê”.
Herbert traz também uma experiência algo diferente na sua área: a do estacionamento de bicicletas. Uma questão que não tem, para já, expressão em Portugal. Por aqui, as bicicletas são poucas e, na maioria dos casos, os postes de sinalização vão dando resposta à procura. Nos Países Baixos, a realidade é bem diferente. Mas é “um bom problema para se ter”, afirma, por causa das muitas bicicletas que têm nas cidades. “Mas temos de pensar nele, de fazer políticas”. Há que pensar a longo prazo, “como é que queremos que seja daqui a 25 anos”, e em articulação com outros meios de transporte, caso dos caminhos de ferro.
Contra a marca de virtude: “Não é má pessoa por trazer o carro para aqui”
Matthew Baldwin diz que Lisboa não vai conseguir fazer o que quer fazer, no seu Plano de Ação Climática – atingir a neutralidade climática até 2030 – “sem a bicicleta, sem transporte público, sem andar a pé.” “Desafio qualquer cidade a apresentar planos de neutralidade climática que não envolvam um aumento substancial na repartição modal da bicicleta e uma tentativa de eliminar ou reduzir drasticamente as deslocações em automóvel dentro da cidade”.

Restringir o acesso automóvel a determinadas partes da cidade, como prevê a Zona de Emissões Reduzidas (ZER) para a zona da Baixa e Chiado é uma maneira de reduzir a presença do automóvel na cidade, mas há outras medidas que podem ser adotadas em simultâneo. “Temos de convencer a pessoa que estacionou o carro ali, temos de alterar os incentivos”. No decorrer da conversa, no Jardim Constantino, várias crianças brincavam. Em torno da praça, encontram-se dezenas de automóveis estacionados
“Não é má pessoa por trazer o carro para aqui. Talvez seja a mãe destas crianças aqui. Quiseram vir a este jardim. Há que facilitar a viagem de transporte público, de bicicleta, talvez o preço do estacionamento deva ser mais elevado”, explica.
Incentivos à adoção de uma mobilidade sustentável e, por outro lado, desincentivos à utilização do automóvel – pode ser esta a receita, mas não deixa de ser “uma mistura complicada”. “Se podes estacionar gratuitamente no local de trabalho, por que é que as pessoas fariam diferente? Cabe às cidades pensar em planos de mobilidade sustentável e decidir quais as medidas certas a adotar”, acrescenta o coordenador europeu para a Segurança Rodoviária, que critica ainda o “problema” dos carros de empresa, que incentiva a utilização do automóvel privado.
As lutas climáticas e a promoção da segurança rodoviária intersetam-se, em Lisboa como em qualquer cidade do mundo. Além das metas ambientais para 2030, a cidade pretende, até esse ano, alcançar zero mortes na estrada – é a chamada Visão Zero. A diminuição da presença do automóvel na cidade liga-se, assim, ao aumento da segurança rodoviária. Importa reduzir velocidades, mas importa também “dificultar a entrada de carros na cidade”.

“Bruxelas quer eliminar um terço do espaço destinado ao estacionamento”, explica Matthew Baldwin, e Paris generalizou o limite de 30 quilómetros por hora na semana passada, traçando ainda como meta a eliminação de 60 mil lugares de estacionamento automóvel à superfície, de um total de 140 mil.
Foi assim que Oslo e Helsínquia mostraram ser possível acabar com as mortes na estrada. Em 2019, alcançaram zero mortes entre peões e utilizadores de bicicleta, com políticas de mobilidade que fizeram subir o preço do estacionamento, reduziram as velocidades, cortaram o trânsito em torno das escolas e eliminaram lugares de estacionamento nas ruas.
Bikelash, ou como encarar a resistência às bicicletas na cidade
Todas estas medidas têm provocado reações negativas, razão pela qual têm entrado como batalha campal na atual campanha eleitoral. Na próxima quarta-feira, uma das sessões da Velo-city vai procurar aprofundar o bikelash – a oposição organizada à bicicleta e à expansão da rede de ciclovias em cidades de todo o mundo. À medida que cidades com sistemas de mobilidade centrados na utilização do automóvel procuram recuperar espaço, distribuindo-o por ciclovias e alargamento de passeios, é frequente que essa ambição esbarre numa oposição popular e, por vezes, política, à bicicleta. Lisboa, como a grande maioria das capitais europeias, não é imune ao fenómeno.
Para Matthew Baldwin, “temos de nos lembrar de evitar uma categorização demasiado dura”. Para isso, sublinha, há que “lembrar que todos nós somos uma coisa – peões. Mesmo o mais fanático automobilista tem de usar as suas pernas de vez em quando para andar do carro até casa. Se insistirmos nesta categorização – ela é uma automobilista, ele é um ciclista, eles são peões – vamos começar a partir-nos”.

A quem utiliza a bicicleta, o vice diretor da direção geral da mobilidade e dos transportes da Comissão Europeia alerta para a necessidade de se “ter cuidado com a sinalização de virtude. ‘Eu sou uma pessoa boa porque ando de bicicleta e tu és uma pessoa má porque andas de carro.’ Eu não sou uma boa pessoa porque ando de bicicleta”, afirma, lembrando que em cidades como Copenhaga, em que a bicicleta é o principal meio de transporte, “a vasta maioria das pessoas não anda de bicicleta por estar a marcar uma profunda posição ambientalista, mas por ser a forma mais conveniente de se deslocar”.
“Precisamos de chegar a um estado em que andar de bicicleta é uma opção tão normal, natural e fácil para a vasta maioria dos residentes”. Matthew Baldwin assegura que “não existe uma linha dura que nos separa” e que, se uma cidade for capaz de aumentar a atratividade da bicicleta, a pessoa que estacionou o carro no Jardim Constantino para levar as crianças ao parque, “vai ter boas razões objetivas para não o fazer”.
O afastamento gradual da dependência automóvel deverá conduzir a uma menor taxa de propriedade destes veículos e a uma situação em que a partilha de automóveis – o car-sharing – conquista mais adeptos. “Não vamos ser proprietários de um automóvel porque é um mau uso de recursos. Vamos utilizar um carro quando formos buscar uma cama para casa ou quando precisamos de ir buscar família à estação de comboios. Será um evento esporádico. Precisamos de desenvolver incentivos”.
Recorde-se que, atualmente, não opera em Lisboa qualquer sistema de partilha de automóveis.
Velo-City: de 6 a 9 de setembro, Lisboa é a capital das bicicletas
Com 750 visitantes acreditados e mais mil online a Velo-city é co-organizada pela ECF, EMEL e a Câmara Municipal de Lisboa (CML) (e a Mensagem é parceira de comunicação). Até quinta-feira, realizam-se várias sessões de apresentação e discussão sobre mobilidade urbana, com um foco particular nas virtudes da mobilidade ciclável. Este ano o tema é a diversidade.
Na Feira paralela haverá 33 stands com a presença de empresas fornecedoras de soluções de mobilidade, operadores de mobilidade, representantes de entidades como a Dutch Cycling Embassy e a Cycling Embassy of Denmark – em português, as embaixadas da bicicleta dos Países Baixos e da Dinamarca.
Ao longo da conferência, Matthew Baldwin, que integra o painel da sessão A mudança de velocidade para uma economia mais verde e um turismo sustentável, espera poder ver “aquilo que Lisboa tem feito de forma holística”. O responsável da Comissão Europeia vê, na seleção de Lisboa como cidade anfitriã da conferência, “um sinal de interesse na cidade”. Será a sua primeira conferência física “em 16 meses, ou algo ridículo assim”, conta.
Ao longo do evento, “que se prepara para receber estes ciclistas loucos”, espera ver, por parte da autarquia e dos lisboetas, “uma prontidão de dizer ‘sim, estamos prontos para mostrar o que fizemos’. Espero que haja um sentido de orgulho”.
Herbert Tiemens vai participar numa conversa sobre A evolução das ciclovias na Europa, onde apresentará a estratégia dos Países Baixos para a utilização da bicicleta em longas distâncias, “entre subúrbios e vilas” e os grandes centros urbanos, sublinhando o papel potencial da bicicleta “enquanto solução para as regiões”.
Entre os oradores presentes, encontra-se Carlos Moreno, urbanista responsável pelo desenvolvimento do conceito da cidade de 15 minutos, em aplicação na cidade de Paris.
Rede de bicicletas Gira com perturbações durante a conferência
Na quarta-feira à tarde, parte da FIL um desfile de bicicletas que chegará ao centro, com a presença de cerca de 500 participantes. Para possibilitar o desfile, estão a ser retiradas 350 bicicletas do sistema de bicicletas partilhadas da cidade – maioritariamente não elétricas. A retirada de bicicletas do sistema está a causar algumas perturbações na operação do mesmo, com a diminuição da disponibilidade de veículos. No dia do desfile, os constrangimentos poderão ser maiores, com a retirada de bicicletas elétricas para compor a frota do passeio, que poderá chegar a um total de 500 velocípedes. Recorde-se que, atualmente, o sistema GIRA conta com mais de 800 bicicletas.
* A Mensagem é parceira da Velocity e terá entrevistas exclusivas sobre mobilidade, todos os dias, no site. Catarina Carvalho será a moderadora e apresentadora do evento. Siga aqui.

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
✉ frederico.raposo@amensagem.pt
É um aparte, mas duvido que alguma mãe se desloque de carro de propósito para levar o filho ao Jardim Constantino, repleto de sem-abrigo e toxicodependentes, lixo, cocó de cão, beatas e com um parque infantil coberto por uma extensa camada de cocó de pomba.
Será um feliz dia quando para além de terem estes problemas do jardim resolvidos, as ruas residenciais que circundam o jardim Constantino não estejam atulhadas de carros estacionados, ou em excesso de velocidade (para ficarem mais tempo parados no semáforo) ou a apitar noite e dia.