“Já tiramos o beliche do quarto”, disse o rapaz, sorrindo por baixo da máscara, enquanto eu tentava imaginar como haviam conseguido meter um beliche num lugar onde mal cabia um berço. No anúncio, o T2 em Alfama parecia duas vezes maior, e sim, havia a fotografia do tal beliche como prova. O imóvel, porém, era um de entre centenas que tinham sido adaptados ao alojamento local e destinado a receber turistas num par de dias de visita, e não uma família. Salvo uma família de elfos.
Quem já esteve num apartamento de Airbnb sabe que as fotografias do anúncio raramente correspondem à realidade. Parte do segredo do negócio é contratar fotógrafos hábeis no uso de close ups e perspetivas para ampliar o espaço e deixá-lo mais cool. Um pouco como faziam os profissionais das quase extintas revistas masculinas – se agora, sem trabalho, não forem os mesmos – que nos deixavam na dúvida de quem era o mérito na página central, se da modelo ou do Photoshop.

Nos últimos anos, exceto para um turista, avistar um apartamento para arrendar em Alfama também parecia uma ilusão de ótica. Mas a pandemia, entretanto, afastou os turistas e mudou a paisagem: segundo dados de fevereiro do Instituto Nacional de Estatística, 2020 registou um recuo de 63% no número de dormidas turísticas no país em relação a 2019, o pior ano desde 1993. A Área Metropolitana de Lisboa liderou a queda-livre, com um decréscimo de 71,5% no mesmo período.
Parecia a ocasião perfeita para conseguir aquele imóvel no mais famoso bairro lisboeta, Alfama. Quem sabe, uma pechincha.
Com os turistas confinados nos seus países, os proprietários de alojamento local não tiveram outra saída do que buscar uma vacina para a falta de hóspedes e abrir os espaços a estadias mais longas. Como num passe de mágica, centenas de opções saltaram da cartola dos sites de arrendamento. Parecia a ocasião perfeita para um bom negócio e, finalmente, conseguir aquele imóvel no centro, no coração do mais famoso bairro lisboeta, Alfama, a um preço justo ou até, quem sabe, numa pechincha.
O aumento da oferta traduziu-se também no decréscimo nos valores dos arrendamentos: o Barômetro Imobiliário, divulgado pelo site Imovirtual em janeiro de 2021, apontou uma queda de 13,5% em 2020, quando comparado a 2019. Lisboa novamente acompanhou a descida (-13,9%).

Visitas com máscara, ou virtuais
A pandemia provocou alterações no protocolo de visitas aos imóveis. Algumas agências apostam em listas de interessados para iniciarem o tour presencial quando o confinamento terminar. E quando o atual inquilino ainda está no apartamento, a única hipótese é esperar. Há também a possibilidade de uma televisita.
As onipresentes ERA e Remax intensificaram a produção de vídeos dos apartamentos em adição às tradicionais fotografias e alguns agentes imobiliários, por iniciativa própria, estão a sugerir aos clientes percorrerem o imóvel pelo telemóvel, através de uma videochamada no WhatsApp.
A maioria das agências, porém, não quer correr o risco de perder o negócio. No caso dos apartamentos em Alfama, que há tempo não veem um morador fixo, a inspeção presencial é possível. O site alerta para a obrigatoriedade do uso da máscara e a voz no telefone ainda reforça que, para me sentir mais protegido, poderia usar duas máscaras cirúrgicas. Foi o que fiz.
A decoração não engana: ex-alojamento local. Almofadas tigresa e a casa de banho com papel de paredes das manchetes do The New York Times.
Nesse caso, melhor garantir um bom estoque de máscaras: em apenas um dos sites, o Idealista, no início de fevereiro havia 147 opções em Alfama, entre o ISPA e a Casa dos Bicos, estendendo-se aos limites do miradouro das Portas do Sol, excluindo imóveis na Graça, Mouraria e no Castelo, normalmente inseridos na zona geoafetiva de Alfama.
A pesquisa pode ser feita através de uma lista ou num mapa virtual, que surge no ecrã com os perímetros do bairro coalhados de pontos verdes, dando a impressão de que Alfama é uma imensa e incandescente colmeia. Além da quantidade, impressiona a variedade: 21 T0s, 59 T1s, 38 T2s, 25 T3s e quatro com tipologia T4 ou superior.
As fotografias não deixam dúvidas de que a maioria é oriunda do alojamento local. Imóveis decorados à Airbnb, copiados dos catálogos da IKEA, com vasos de flores nas mesas, posters do skyline de Manhattan nas paredes, almofadas com estampa tigresa e as paredes da casa de banho forradas com papel de paredes das manchetes do The New York Times.
Apesar da decoração excessiva – convenhamos, ler o jornal na casa de banho pode ser um clássico, mas não a mesma notícia todos os dias – as imagens transmitem uma sensação de conforto e ainda emprestam um caráter asséptico ao ambiente, certamente uma valia nestes dias de pandemia. As aparências, porém, podem enganar o lisboeta, como enganava os turistas, com a diferença que o futuro inquilino tem a possibilidade de verificar in loco o grau de Photoshop dos anúncios.

Longo termo… de seis meses
Era o caso daquele T2 na rua de São Miguel, anunciado por € 650, num contrato “a longo termo”, embora em Alfama, mesmo por estes dias, o conceito de “longo” seja flexível e, como viria a saber, raramente se estende para além dos seis meses. Em alguns casos, o anúncio deixa bem claro que “longo” quer dizer até março ou abril, também conhecido como “o mês que vem”, subentendendo que uma possível renovação esteja sujeita ao êxito da vacinação, a medidas sanitárias, a o prolongamento do confinamento e, ainda, ao achatamento da curva. Ou tudo ao mesmo tempo.
O valor também não era propriamente uma pechincha, mas diante do que se ouvia sobre os preços astronómicos no bairro, por €650 ao mês não se arrendava nem uma mesa na Tasca do Chico. E, caraças!, era um T2 em Alfama. Em pouco tempo, eu dormiria ao som do fado de uma das casas da vizinhança. Ok, a decoração era artificial, principalmente o tapete que ocupava toda a sala com o que parecia ser a pele de um zebu, além do citado beliche num dos quartos, mas nada a que não se desse um jeito.
Os apartamentos são laboratórios onde arquitetos na pele de cientistas provam que dois corpos ocupam o mesmo lugar no espaço e no tempo.
Por telefone, avisara ao agente imobiliário que o segundo quarto era para o meu filho adolescente e a voz no outro lado garantira que o beliche sairia. E realmente saiu, embora, agora, percebia que a única hipótese dele dormir no minúsculo quarto não seria numa cama, mas num sarcófago, em pé, como as múmias. O anúncio falava em 55 metros quadrados, mas assim como o conceito de “longo”, Alfama parecia desafiar a física e contrariar, simultaneamente, as leis do tempo e do espaço.
Os apartamentos do bairro são laboratórios onde arquitetos na pele de cientistas tentam provar que é possível, sim, que dois corpos ocupem o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. O chamado “princípio da impenetrabilidade” parece não ter efeito diante de uma grandeza física tão poderosa como a pressão imobiliária. Se Newton tivesse visitado um TO de 20 metros quadrados destinado a duas pessoas, fatalmente escreveria uma quarta lei. O AirBnb seria a sua segunda maçã.

A nova tradição arquitetónica em Alfama exige malabarismos tanto de arquitetos como dos inquilinos. Uma hipotética Quarta Lei de Newton diria que nem sempre duas portas podem estar abertas ao mesmo tempo no mesmo espaço. Haveria ainda uma adenda à primeira lei, a que trata da inércia, a dizer que para um corpo estar em movimento, o segundo necessariamente deve estar parado. Gay-Lussac certamente teria o que dizer sobre como certos gases comportam-se numa casa de banho com as dimensões de um frigorífico e sem janelas.
As leis da Física, contudo, parecem não ser um problema. O agente imobiliário confirmou que o T2 esteve arrendado nos últimos seis meses – com o beliche e tudo – assim como estão arrendados o apartamento no andar de cima e outros três com a mesma tipologia e o mesmo senhorio – um empresário brasileiro – espalhados por Alfama. Para não o deixar mentir, uma semana depois o imóvel saiu da lista. No mesmo período, a oferta na área havia descido de 147 para 141. Não há tempo a perder.
Ovos e despertador incluídos
Outras zonas preferidas do alojamento local também estão agora mais recetivas aos contratos a longo prazo, como a Graça, onde uma busca mais detalhada pode findar em algumas surpresas, como um T2 vizinho ao agrupamento de Gil Vicente por € 749 com 71 metros e direito a uma bucólica… capoeira no quintal. O anúncio não deixa claro se o galo e as três galinhas fazem parte do arrendamento.
Casas com ovos e despertador incluídos, entretanto, são raridades. O mais comum, mesmo, são os ambientes, digamos, mais minimalistas. Na Graça, 45 dos 142 apartamentos disponíveis é de no máximo um quarto, incluindo o clássico T0 com vinte e poucos metros quadrados, por € 400.

Em São Vicente de Fora, das 116 casas, metade são de T0s ou T1s. No Castelo, idem, 105 dos 193 apartamentos vagos têm, no máximo, um quarto. O que até pode satisfazer o seu desejo de morar na zona histórica, mas apenas o seu desejo e de mais ninguém.
O must é a decoração, inspirada num delírio lisérgico, o que pode agradar a muitos, exceto a quem sofre de labirintite.
Com paciência e orçamento um pouco maiores, porém, é possível encontrar opções interessantes. Há T2s por cerca de € 800 em pleno Chiado e na Baixa, com uma área razoável (67 metros quadrados). Ainda na Baixa, por € 1.099 mensais (estava € 100 mais caro há uma semana), há duas opções de T3 no mesmo prédio na rua dos Sapateiros, o segundo deles um duplex de 127 metros quadrados e duas casas de banho, com vista para o elevador de Santa Justa – ok, vê-se da janelinha da cave e apenas o topo do elevador, mas não sejamos tão chatos. O must é a decoração, inspirada num delírio lisérgico, o que pode agradar a muitos, exceto a quem sofre de labirintite.
Na sala, os candeeiros desabrocham em forma de imensas rosas brancas e os degraus da escada em caracol estão pintados de cores diferentes, assim como todas as paredes e os todos os tetos da casa. Num dos quartos, o papel de parede simula a capa do icónico Sgt. Pepper’s, para não deixar nenhuma dúvida de que, em tempos de pandemia, a oportunidade de viver no centro de Lisboa não é necessariamente uma experiência limitadora e pode ser, sim, bem rock and roll, baby.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Muito bem escrito.
Inspiradíssimo.
Dá para vivenciar como se tivessemos ido na visita.
Aqui perto na Graça, no mesmo prédio a mesma senhora dá a cara por dois apartamentos.
Só do 1 dto para o 2 esq ganhou 15 kg e uma raiz no cabelo a precisar de tinta.
Os cartazes são um must.
Perto de Almada, numa rotunda movimentada, só dando duas voltas concluis que a senhora promotora não é sósia da Dilma.
E pensar que se criaram zonas de contenção, impedido os proprietários o uso das suas propriedades, com base na crença de que muitos queriam viver no centro histórico e só não podiam devido aos malvadões do AL que andavam a despejar velhinhos…
A culpa também é nossa de deixar que estas narrativas por serem repetidas muitas vezes se tornem verdade para muitos dos que votam
Caríssimo jornalista, Álvaro qualquer coisa!
Deuxe-se de larachas e piadolas e fale de coisas sérias.
Desde quando o Alojamento Local (não é AirBnB que se chama) foi a razão de as pessoas deixarem de viver nos centros históricos?
As pessoas sairam da ‘baixa’ das cidades porque não tinham condições de lá continuar, pela exiguidade dos espaços e, muistas vezes, pela insalubridade dos mesmos.
O AL veio trazer uma nova dinâmica aos CH, reabilitando e ‘limpando’ as cidades, nomeadamente, Lisboa e Porto, dos ‘podres’ e desocupados prédios, na sua grande maioria devolutos, e que eram um perigo para a sociedade.
Lembre-se disso, quando quiser escrever (ou até ficcionar) sobre o Alojamento Local.