Arnab abana a cabeça, meio perdido, quando a professora lhe pergunta sobre o que é que era a história que naquele dia se leu na sala de aula. A professora insiste devagarinho: “Era sobre um pato e um sapo?”. O pequeno nepalês de oito anos está no terceiro ano, veio para Lisboa há pouco tempo e ainda não domina a língua portuguesa.

Mas há quem, do outro lado da sala, venha em seu auxílio, traduzindo as palavras para a língua que Arnab compreende bem: o urdu. O tradutor é um menino, tal como ele, de nome Inharim, que veio do Paquistão e conhece a língua do amigo.

Inharim não é apenas tradutor de Arnab, também o é para um outro aluno nepalês, Nabin. 

“Eles ajudam-se uns aos outros”, diz Teresa Pais, a coordenadora da Escola Básica N.º1 de Lisboa, no Largo da Escola Municipal, freguesia de Arroios – que se diz ter este nome graças à sua presença histórica na cidade: será a mais antiga escola municipal. Fundada em 1875, no reinado de D. Luís I, e detentora de um espólio arquitetónico e mobiliário que lhe valeu a designação “escola-museu”.

Com a ajuda de Inharim, Arnab percebe a pergunta da professora e consegue contar alguns pormenores da história que se leu na sala de aula. Uma história que foi trazida pelo colega Lourenço: “O pato que não gostava de água”, um livro de Steve Small.

Lourenço resume a moral da história: “Para sermos grandes amigos, não precisamos de gostar das mesmas coisas.”

Uma lição valiosa para quem frequenta esta escola, onde se faz sentir o espírito de entreajuda entre diferentes culturas e nacionalidades: só no 1.º ciclo, 44 de um total de 84 alunos (52%) são imigrantes ou filhos de imigrantes, como é o caso de Arnab, Inharim e Nabin.

Chegam do Nepal (16), Paquistão (6), Bangladesh (5), Brasil (4), Roménia (3), Rússia, (2), Angola (1), Índia (1), Israel (1), Alemanha (1), Guiné-Bissau (1), Peru (1), Guiné Conacri (1) e Vietname (1).

De onde chegam estes alunos?

A Escola Básica Nº1 não é caso único.

Os dados mais recentes relativos ao número de alunos estrangeiros nas escolas de Lisboa a que a Mensagem teve acesso são de 2014/2015, e mostram que a escola com o número mais elevado de alunos imigrantes é a Escola do Alto da Ajuda (1º Ciclo + Jardim de Infância), com uma percentagem de 87%, seguida pela Escola Básica Lisboa Nº75 (1º Ciclo), com 69%, e pela Escola Básica Galinheiras (1º Ciclo + Jardim de Infância), com 62%.

Uma realidade que ultrapassa as fronteiras de Lisboa.

O total de alunos imigrantes em Portugal entre os anos letivos de 2012/2013 e 2019/2020 passou de 14% para 17%, segundo dados recentemente analisados no “Atlas dos alunos com origem imigrante: quem são e onde estão nos ensinos básico e secundário em Portugal”

Estes alunos distribuem-se sobretudo pelos municípios da Área Metropolitana de Lisboa, pela faixa litoral Aveiro-Porto-Braga, pelo Algarve e o Alentejo Litoral. E as suas origens têm vindo a diversificar-se: se as nacionalidades mais representadas nas salas de aula são a brasileira, a angolana, a francesa e cabo-verdiana, tem-se registado um forte crescimento de alunos nepaleses, indianos e venezuelanos

“É com esta grande riqueza que se ultrapassa o preconceito do adulto”

A Escola Básica N.º1 é uma escola que se diz orgulhar desta diversidade, que parece traduzir-se na forma de pensar destas crianças. “Os adultos têm preconceitos, os miúdos não têm nada disso”, explica a coordenadora Teresa Pais.

Aqui, as diferenças culturais fazem sentir-se em pormenores tão pequenos como na comida que os colegas levam nas lancheiras. “Eles sabem, pelo próprio almoço, quais são os que comem carne de porco, quais são os vegan. É com esta grande riqueza que se ultrapassa o preconceito do adulto.”

Ana Castro, presidente da Associação de Pais, conta a sua experiência enquanto mãe: “Para eles e para nós enquanto família, esta realidade multicultural é normal. Eles reconhecem as diferenças, no meio de tantas outras diferenças.”

E a coordenadora completa: “Uns gostam de futebol, os outros não. Uns gostam de picante, os outros não. Vão-se enriquecendo uns aos outros nas suas diversidades culturais, nos seus gostos, nos seus estilos…”.

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Foto: Rita Ansone

E é na festa de final ano que realmente se celebra essa diversidade, contam as duas. É neste momento que as famílias são convidadas a trazer pratos típicos da sua terra. “Todos os pais se aprumam para trazer a comida típica, seja a siricaia do Alentejo da terra da avó, seja o caril de frango, seja outra coisa qualquer do Vietname”, diz Teresa.

Português, Língua Não Materna

A comida, essa, não tem língua.

Mas a barreira linguística é, claro, um dos desafios mais evidentes para quem chega a Portugal. Uma das estratégias encontradas para contornar esta dificuldade foi a instituição pelo Governo no sistema educativo português da disciplina de Português Língua Não Materna (PLNM), em funcionamento desde o ano de 2018/2019, para que aqueles que chegam à sala de aula sem conhecer a Língua Portuguesa a possam aprender à parte.

Na Escola Básica N.º1, esta é uma aula frequentada por 21 dos 44 estrangeiros desta escola. Porquê apenas 21? “Os outros alunos ou andaram no Jardim de Infância da Pena e já têm aquisições de português ou já cá estão há mais anos”, explica a coordenadora Teresa Pais.

No ensino básico, as aulas de PLNM acontecem uma vez por semana, participando estes alunos nas aulas normais no resto do tempo, onde a aprendizagem é muito feita através de gestos, de exemplificações ou recorrendo aos fiéis amigos tradutores.

“Basta uma simples exemplificação para se perceber”, diz Teresa Pais. “E muitas vezes há tradução para inglês ou para outras línguas. Quando há irmãos ou conhecidos, nós chamamo-los para serem os tradutores oficiais.” 

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Os alunos estrangeiros têm oferta da disciplina Português Língua Não Materna (PLNM). Foto: Rita Ansone

O procedimento nem sempre é assim noutros países. “Há alguns países onde se aprende a língua primeiro, mas o contacto com colegas desses países também me diz que nem sempre é a solução”, explica Maria João Hortas, professora da Escola Superior de Educação de Lisboa e investigadora do Centro de Estudos Geográficos (CEG). “É uma ilusão ter o aluno num grupo onde apenas está a fazer a aprendizagem da língua, estamos a privá-lo de integrar uma turma e de socializar.”

No 2.º ciclo, já haverá algumas escolas que optam por um “ano zero” para os alunos estrangeiros, em que os alunos têm uma maior carga do PLNM e frequentam apenas algumas disciplinas do currículo.

Mas Maria João Hortas acredita que o modelo, tal como ele está no 1º ciclo, funciona ao nível da socialização das crianças. “Os miúdos mais pequenos revelam uma grande preocupação em acolher os outros e em conseguir comunicar com eles.” No entanto, a investigadora aponta algumas fragilidades, como o número escasso de horas da disciplina e de professores disponíveis para a ensinarem.

E o aproveitamento escolar dos alunos imigrantes? 

Talvez por estarmos no 1.º ciclo, também o desempenho escolar aqui é positivo.

“Temos uma situação de diversificar o trabalho para que as aquisições sejam conseguidas. No ano passado, só tivemos uma retenção de uma aluna estrangeira por ter estado muito tempo retida no país de origem”, explica Teresa Pais.

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O professor Luís de Amaral. Foto: Rita Ansone

O professor Luís de Amaral leciona Português Língua de Acolhimento, no Agrupamento Nuno Gonçalves, a que pertence a Escola Básica N.º 1, a alunos com mais de 18 anos. Conta mesmo que, no ano passado, quando ensinava na escola básica, o seu melhor aluno era nepalês. “Ele não dava erros como aqueles que sempre falaram português.”

Segundo o documento do Observatório das Migrações, “Indicadores de Integração de Imigrantes: Relatório Estatístico Anual 2022”, nas várias edições do teste PISA, onde se avalia a literacia de jovens de 15 anos nas áreas da Leitura, Ciências e Matemática, tem-se identificado sempre um hiato entre o desempenho escolar dos estudantes imigrantes e não imigrantes, com os imigrantes com piores resultados.

Porém, os estudos apontam que o desempenho escolar não se associa apenas à condição de imigrante, mas sobretudo às condições socioeconómicas, muito embora os estudantes imigrantes estejam “frequentemente em situações de dupla desvantagem pela sua condição de imigrante e pela sua classe social ou privação social”.

“Na inquirição de 2018 identifica-se que as desvantagens socioeconómicas continuam a influenciar o desempenho dos estudantes imigrantes em Portugal (…) Resulta, assim, que o desempenho escolar encontra-se muito ligado ao estatuto socioeconómico das famílias dos estudantes, mostrando-se que, quando controlada o seu efeito, o hiato entre imigrantes e não imigrantes diminui substantivamente.”

“Indicadores de Integração de Imigrantes: Relatório Estatístico Anual 2022”
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É o contexto socioeconómico que mais influencia o desempenho escolar. Foto: Rita Ansone

É algo que se verifica também nesta escola.

Muitos dos alunos estrangeiros são filhos de pais com habilitações literárias. “Muitos destes pais têm licenciaturas e agora trabalham em hotéis a fazer limpeza, são ajudantes de cozinha…”, diz a coordenadora.

Teresa faz uma pausa para depois refletir: “Se nós tivéssemos que sair do nosso país por razões políticas, religiosas ou outras, também não teríamos as mesmas vantagens no país para onde fôssemos, é a segurança que importa em primeiro lugar. Mas reparem bem o que seria sair do nosso país e irmos para outro lado fazer uma coisa qualquer.”

Burocracia e falta de recursos: os desafios

Onde por vezes há falhas é na comunicação com os pais. A filha do jornalista Farid Ahmed, que veio para Lisboa do Bangladesh, andou na Escola Básica N.º 1 e Farid deparou-se com alguns obstáculos: falta de informação para os pais imigrantes, alguma burocracia difícil de contornar, poucos recursos, entre outros.

A comunicação com os pais nem sempre é fácil, diz a presidente da associação de pais Ana Castro. “Há muitos pais que não falam Inglês. Algum inglês básico, alguma informação rudimentar consegue-se passar, mas há dificuldades.”

Um ponto que é levantado no trabalho de Maria João Hortas de 2013, “Educação e Imigração: A integração dos alunos imigrantes nas escolas do ensino básico do centro histórico de Lisboa”, onde se deixava a seguinte recomendação: 

“Disponibilizar uma bolsa de mediadores socioculturais e tradutores que possam ser solicitados pelas escolas, para participarem nas reuniões com as famílias e na integração dos recém-chegados assim como colaborarem, junto com os docentes, na gestão da diversidade.”

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Teresa Pais com dois pais imigrantes: Farid Ahmed e Aleksandra Mesropian. Foto: Rita Ansone

Apesar destas falhas, Maria João Hortas reconhece que já se tem trilhado um longo caminho para a integração destes alunos. Mas ainda há muito a fazer. “Há muito trabalho a fazer, mas há um percurso que é importante valorizar. E, como o iniciámos mais tardiamente do que alguns países europeus, é um percurso que é fundamentado pelas práticas e pela própria investigação.”

Um dos principais obstáculos para a investigadora: “Os professores não chegam para os desafios que lhes estão a pedir”. Alana Moreira, coordenadora de projetos do NIALP (Intercultural Association Lisboa & Language School), concorda: “Os professores estão sobrecarregados e fazem um esforço hercúleo. Muitas vezes têm 7, 9 nacionalidades numa sala.”

Novos projetos de esperança

Ao longo dos anos, têm surgido projetos para auxiliar o trabalho desenvolvido nas escolas, como é o caso do “Academia CV”, da Renovar a Mouraria, com o objetivo de trabalhar a integração de crianças imigrantes com dificuldades de comunicação em português.

No âmbito deste projeto, realizam-se aulas semanais de reforço, promovem-se ações de envolvimento dos pais para potenciar a aprendizagem fora do contexto escolar e criou-se uma rede de tutores voluntários para se dinamizarem atendimentos individualizados e ações de interculturalidade.

Alana Moreira elenca ainda o projeto Escola para Todos, financiado pelo BIP-ZIP, e que visa mediar a integração da comunidade estrangeira, sobretudo do Sul Asiático, através do PLNM. Neste contexto, estão também pensadas ações para unir as diferentes comunidades e até mesmo as diferentes religiões presentes numa sala de aula.

Maria João Hortas resume: “É um processo e toda esta questão é extremamente complexa. Não há soluções que possam funcionar em todos os espaços da mesma maneira, mas, ao nível das políticas, estamos muito bem avaliados à escala internacional.”

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Foto: Rita Ansone

Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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3 Comentários

  1. A mais bonita escola primária de Lisboa, a escola onde eu andei entre 1980-1984 se nao estou em erro
    Na mais bela freguesia de Lisboa ( Freguesia da Pena ) e que saudades que tenho dela

  2. Tenho perguntado o que fazem os emigrantes em Portugal?
    Já não há trabalho para eles,do que vivem?
    Recebem subsídio?
    São eles que fazem filhos?

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