O meu filho, no alto dos seus oito, quase nove anos, quis saber o que era o amor. Quis saber o que era o amor para perceber se ama o pai e a mãe, assim contou.

Perguntou em pleno passeio, na ágora lisboeta, de mãos dadas, sem rodeios, a dúvida seca como as folhas que caíam de um plátano:

– Pai, como sei o que é o amor?

Um inquietamento mais do que justo, necessário, responsável, para depois não ficar por aí repetindo que se ama alguém à toa.

Mas saber o que é o amor é tramado. E não é de hoje.

Uma dúvida filosófica que consumiu muita tinta, neurónios e litros de vinho durante os séculos, desde os lautos e inflamados banquetes platónicos na casa do poeta Agatão. 

Como o pobre filósofo pós-socrático de tasca do pai dele só sabe que nada sabe, desenrasquei-me como pude para responder ao miúdo.

Poderia, claro, sempre evocar Camões e os fogos que ardem sem se ver, mas acho por bem criança não brincar com fogo para não se queimar, pois há feridas que doem e que se sentem, sim, senhor Camões.

Preferi jogar o simples, sem rodeios e dribles desnecessários.

O amor, meu filho – comecei – é um sentimento bom que se sente em relação ao outro. Uma vontade de ter o outro por perto, um friozinho que dá na barriga quando se pensa no outro.

Ele não parecia convencido. E o pobre pai, sem repertórios aristotélicos, foi obrigado a ser mais didático e contemporâneo:

O amor, meu filho – insisti – é como aquela atualização do [jogo] Roblox, que você não tira da cabeça e, quando chega o dia, faz o seu coração bater diferente.

Então, sorriu e chutou uma pedra no passeio para a frente, como quem põe um ponto-final na questão e segue a vida.

Eureka! Ou melhor: ufa!

Poderia também dizer ao meu filho que existem vários tipos de amor, falar do amor dos pais e dos filhos, do amor dos irmãos, do amor dos namorados e até do amor do professor para com os alunos, mas nesse último caso, ele não iria realmente entender.

Pois o amor dele pela escola não tem sido correspondido.

Na primeira semana de aula, a professora nova reuniu-se com a mãe dele. Após uma longa explicação materna sobre certas especificidades do menino, da tendência à distração, de perder-se a pensar em outras questões para além da tabuada de cinco, quem sabe filosofar sobre as razões do amor, a professora chamou a mãe de lado e perguntou:

– Por que razão é que ele não fala o português de Portugal?

Quem parecia não perceber o português de Portugal agora era a mãe, que tentou ainda argumentar sobre a irrelevância do aparte. Afinal, o meu filho fala português, o português é a língua materna – e paterna – dele, e ponto, parágrafo.

A professora insiste:

– Se não fala o português de Portugal, vai ter de aprender.

Isto foi no segundo dia de aula.

Nos outros, o meu filho tem revelado sentir-se ignorado. Queixa-se, por exemplo, de quando a professora pede aos que têm dúvidas levantar a mão, passar uma eternidade com o seu braço magrinho, bracinhos de cana de pesca, ao alto, sem ser notado, invisível, até ser vencido pelo cansaço.

Também ressente-se de a professora chamar os demais pelo nome, mas a ele, apenas como “o aluno” – assim mesmo, na terceira pessoa. Simplesmente, olha para ele e pergunta:

– O “aluno” já acabou a tarefa?

Por fim, “o aluno” escreveu uma redação sobre o que gostaria de ser quando crescer. 

Contou sobre o desejo de ser youtuber, confessou saber ser difícil realizá-lo, mas finalizou o texto – vejam só – reforçando que, mesmo assim, apesar das dificuldades, as pessoas não devem deixar de lutar pelos seus sonhos.

A caligrafia do meu filho é realmente um caos, um gatafunho decifrável apenas pelos especialistas em hieróglifos, mas segundo contou “o aluno”, não houve a mínima vontade da professora em pelo menos tentar ler a redação.

Apenas olhou para o papel e terá dito:

– Está horrível.

Num mundo sem esperança e perspetiva, num mundo consumido pelo ódio, alguém interessado pelas vicissitudes do amor e entusiasta que se lute pelos seus sonhos a qualquer custo, deveria ser saudado, preservado, zelado com o carinho e a delicadeza devotados pelo jardineiro a uma pétala de rosa.

Mas nunca ignorado. 

Ainda mais se esse alguém é uma criança de oito anos, indefesa, incapaz de articular uma pergunta para saber porque mantém o braço magrinho, o seu frágil braço de cana de pesca erguido, sem ser notado, ou para saber o motivo de não merecer a dignidade de ser tratado pelo nome.

Negar-se a ler a redação de um aluno, por pior que seja a caligrafia, ignorar o texto onde uma criança vence o medo de ser ridicularizado e expõe os seus sonhos, os seus desejos, é um sinal claro, eloquente, de que se está nas tintas pelo futuro do pequeno ser à sua frente. 

Justamente o futuro, o maior bem que uma criança pode ter.

O meu filho pode estar a efabular tudo isso, claro que pode, é da natureza dos putos – o que seria até um alívio, pois tamanha criatividade e imaginação render-lhe-ia adiante um salário maior do que o de jornalista ou professor.

Mas o diálogo no segundo dia de aula entre a mãe e a professora, o diálogo real, aberto, sem máscaras, a exigência e intransigência em ter de aprender a todo custo o português de Portugal, abre margens para que se preste atenção ao que diz.

Quando o ouço contar a sua relação de amor não correspondida com a escola, gostaria de sentir raiva, uma fúria avassaladora que me levasse, num impulso, a entrar no prédio com um pontapé na porta e resolver a situação. 

Mas não.

Sinto apenas uma vontade enorme de chorar, de pena do meu filho, de pena dos demais alunos imigrantes, fugitivos de guerras e da fome, esses sim, sem o português como língua materna, e as suas centenas de braços erguidos e ignorados, das milhares de redações e futuros não lidos.

Pena também dos coleguinhas portugueses dele, crianças que quando adultos perpetuarão a violência simbólica aprendida na escola com os colegas de trabalho, os funcionários, com os seus pais e filhos.

E ainda pena da professora, não da professora em questão, pois a situação tende a ser resolvida sem pontapés na porta, mas através do diálogo, como deve ser sempre.

Mas pena de todos professores que chegam ao fim da carreira e após anos e anos de sala de aula, pouco ou nada aprenderam sobre o amor e o respeito aos desejos de quem não abre mão de lutar pelos seus sonhos.

Quanto ao meu filho, não sei se um dia falará o português de Portugal. Sei que amará bastante e será o que quiser – inclusive, se assim desejar, um grande youtuber.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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10 Comentários

  1. Entendo bem o que seu filho sentiu. Fiz uma entrevista que a recrutadora disse que se fosse selecionada teria que falar português e não brasileiro. Porque os brasileiros na visão dela não sabem se comunicar.

  2. O seu artigo me cortou o coração. Tive mesmo que secar os olhos, que turvos, me impediam, várias vezes, de seguir a leitura.
    Fui professora. Hoje, aposentada, vivo em Portugal. Não quero lhe falar da minha vida aqui. Quero lhe falar de ser professora, de amar ser professora, de amar aquelas crianças e adolescentes, minhas alunas e meus alunos, com quem tive a sorte grande de compartilhar a minha vida. Sim o seu menino é um amor, é O amor em forma de gente.
    Meu sonho era poder encontrá-lo um dia desses para saborearmos um sorvete de chocolate bem bom. E quando a moça nos perguntasse: desculpa lá, o que queres? Não percebo o que é sorvete? Responderíamos: é gelado rapariga, aquilo que faz a gente sorrir com a cara lambuzada de chocolate em creme!
    É só um sonho que me alivia o coração, desejando e tendo a certeza que seu filho ainda provará com a alegria de um sorvete, o amor de uma professora.

  3. Creio que o seu menino teve azar com a professora. Não será a regra, mas a estupidez é muito democrática. Não escolhe profissões… 😒

  4. Fico duplamente triste ao ler esta história: pelo menino que a vivenciou e porque esta história aqui exposta e que vai moldar a forma de pensar sobre este assunto a todos os que a vão ler não corresponde, de maneira nenhuma à forma como os alunos imigrantes são acolhidos nas escolas portuguesas. Eu sou professora e poderia contar muito episódios que retratam o carinho e atenção com que recebemos todos esses meninos que chegam de outros países sejam eles quais forem. Este artigo apesar de muito bem escrito, deixa-me realmente triste!

  5. Com lágrimas leio a reportagem. Hoje vivo em Portugal com minha família e meus filhos estão enfrentando alguns gigantes que eu como mãe gostaria de poupá-los. Mas a cada dia vejo eles sendo mais fortes e se adaptando ao novo. Todos os dias exercemos o amor, aquele amor genuíno, que não recebe nada em troca, não se vangloria, não busca seus próprios interesses…o mesmo amor que recebemos de um Deus Pai que tem cuidado de nós, mesmo quando não merecemos….eu sinto que seja uma realidade as palavras desta crônica, mas sinto também para aqueles que estão em seu país lidar com tantas diferenças culturais…em uma história sempre existe os dois lados…ah se eles entendessem o que é o “amor”, a mistura de raças, idiomas e cultura os faria ainda mais felizes!

  6. Em Portugal uma boa regra para a convivência entre portugueses e brasileiros é não forçar a utilização dos vocábulos do português brasileiro equivalentes ao português europeu. Por exemplo, nunca utilizar moça ou moço se o destinatário for um adulto, tem uma conotação depreciativa, é como se lhe estivesse a chamar criança.

  7. Sou professora e depois de ler o seu texto estou profundamente triste. No mundo de hoje, como pode haver pessoas com atitudes descriminatorias dessa dimensão, quando até estamos a falar de crianças a quem a senhora devia ensinar. E, ensinar não é só falar português de Portugal, por mais que isso possa ser importante para o futuro dele se as regras de exames nacionais não mudarem, é ensinar a ser pessoa, a ter valores, que não transmite, como pode vir a exigir… Espero que essa senhora se reforme rapidamente, porque em nada dignifica a escola.

  8. Caro Álvaro Filho, conforme já terá escrito antes, fazendo referência a Lisboa, “A loba cuidou dos meus filhos, deu-lhes segurança, educação, uma rede de proteção, um presente, um futuro.”
    Quanto à atitude da professora, no que diz respeito à indicação de que o seu petiz, deverá aprender o português de Portugal, parece-me lógica – em Portugal ensina-se esse mesmo português, certo?
    Obviamente, essa aprendizagem deverá ser efectuada ao longo do tempo, de forma pedagógica e gradual, sobretudo, num espírito positivo e de incentivo.
    Quanto às restantes atitudes que a dita professora terá tido para com o seu filho, não representam de forma alguma, as professadas pelo universo de professores existentes – aliás, quanto muito, trarão vergonha à classe profissional onde a mesma, erradamente, se insere.
    Pontapé na porta, não me parece aconselhável, agora um valente “puxão de orelhas” a tal senhora …

  9. Obrigada por este testemunho.
    Espero que ele chegue a muitas pessoas, inclusive a outras professoras que possam ajudar aquela colega a entender o mundo de hoje e o importante papel que tem na vida de tantos meninos, porque dessa matéria não está a entender nada.

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