Numa Lisboa de alma Babel, onde a língua oficial por muitas vezes são vários idiomas, dezenas deles, e é comum cruzar ruas inteiras sem escutar o português, captando sons distantes e indecifráveis, da Índia, do Nepal, de Bangladesh, do Paquistão, da China, não é preciso manter apenas o ouvido bem aberto, mas também o espírito e, muitas vezes, o coração.
É o caso da professora Alexandra Barreto.
Docente da Escola Patrício Prazeres, na Penha de França, Alexandra ensina português para quem não o tem como língua oficial, língua materna, nem foi escolarizado no idioma.
São dezenas de crianças, filhos de imigrantes em Lisboa ou de portugueses regressados da emigração, que anualmente passam pela sala de aula da disciplina de Português Língua Não Materna (PLNM), bem ao lado do pátio externo da escola. Aqui, onde o idioma universal das crianças, a alegria, entra abundante pelas janelas na hora do recreio e invade o recinto.
Uma sala de aula aparentemente como outra qualquer, não fossem os cartazes pendurados nas paredes com frases escritas em português, seguidas por versões em hindi, bengali, chinês, ucraniano, inglês, francês e outras línguas faladas na Babel lisboeta.
Sobre uma das mesas, nos últimos anos uma pasta juntou-se à decoração. E, na capa desta pasta, escrita em letra cursiva, é possível ler-se a palavra “Glossário”.

Como nasce um glossário
Este é um glossário escrito a várias mãos, dezenas delas: a mão da professora Alexandra, mas também as mãos de todos os alunos que passaram pela sua sala de aula nos últimos anos. Especialmente os asiáticos, que na falta de um dicionário específico em bengali ou nepali, por exemplo, ajudaram a docente a criar um.
“A nossa escola tem uma tradição em acolher os miúdos imigrantes. O glossário surgiu como uma forma de respeitar cada um deles, muitos que não escolheram nem queriam estar aqui, mas fugiram de perigos, de guerras e não merecem encontrar uma realidade que também lhe seja hostil”, explica a professora que mantém os ouvidos sempre abertos.
A ideia de criar um glossário, na verdade uma sequência de folhas avulsas reunidas numa pasta com uma sequência de palavras e frases escritas pelos próprios alunos, foi justamente a forma que Alexandra encontrou para que os próprios alunos começassem a falar, a partilhar a sua experiência e a vivência cultural, ajudando-os a sentirem-se integrados.
Numa das páginas lê-se em português expressões básicas como “eu sou“, “o meu nome é“, “estudo em“, “eu vivo com” ou “nasci em“, seguidas das versões em bengali e nepali, de forma a que, ao mesmo tempo que o aluno aprende como dizê-las e escrevê-las no novo idioma, acabam por contar um pouco da sua história, da sua tradição.

“Inicialmente, identificamos algumas áreas essenciais, como a forma de apresentar-se ou de expressar gostos, como pela comida. Começamos por uma palavra, depois por uma frase e daí seguimos com anotações sobre aspectos particulares da cultura de cada um deles, até que se sintam integrados e mais à vontade”, conta.
Terror dos professores, o telemóvel tem sido de muita valia nas aulas. Afinal, há alunos que só conseguem expressar-se num idioma específico que nem a professora nem os colegas de sala conhecem. “Algumas vezes, há um estudante que fala inglês e faz essa ponte com o outro do mesmo país, mas para outras o impasse só é resolvido com a ajuda do tradutor do Google.”
Para a professora, as aulas de PLNM têm sido uma forma de aprendizagem. “É uma imersão intensiva em outras culturas. É sempre um privilégio conhecer o mundo e, se tens a oportunidade de conhecer 20 mundos, isto é extraordinário”, reconhece.
A imigração nas escolas de Lisboa
Desde 2016 na Patrício Prazeres, a professora já perdeu a conta de quantos mundos visitou. Todos os anos, os alunos multiplicam-se à sua frente, muitos deles enviados no meio do ano letivo de outras escolas da rede com menos competência – ou boa vontade – em lidar com o mosaico de nacionalidades da cultura lisboeta.

“Já cheguei a ter alunos novos em maio”, conta Alexandra. Nas primeiras semanas do novo ano letivo, a história repete-se e a cada segunda-feira surgem um, dois rostinhos novos nas cadeiras da sua sala de aula. Atualmente, a professora contabiliza 12 idiomas apenas na turma do nono ano. “Mas, em toda a escola, fala-se mais de 30 línguas”, revela.
Instituída depois do arranque do milénio, as aulas de Português Língua Não Materna estruturam-se como uma disciplina de língua estrangeira. Assim como os alunos que falam português frequentam as lições de inglês e francês, os estrangeiros com dificuldades têm o reforço no novo idioma, divididos em três níveis, Iniciante A1 e A2 e Intermédio B1.
“Mas nem pela minha experiência nem de nenhum outro professor de PLNM, os três semestres atuais são suficientes para cumprir as metas”, reconhece Alexandra.
O aumento da imigração para Portugal, como é óbvio, reflete-se na sala de aula.
Se após o primeiro ano de implantação, o número de alunos matriculados na disciplina era de 761, em 2020, no último dado disponível (que não contempla, entre outros fatores, a pandemia e a guerra na Ucrânia), somavam-se 156.954 estudantes em todo o país.
Os dados são do “Atlas dos Alunos com Origem Imigrante“, matriculados no ensino básico e secundário, publicado em 2023 pelo Observatório das Desigualdades – que desde 2012 tem compilado as estatísticas disponibilizadas pelas entidades públicas, numa década em que a presença portuguesa em sala de aula diminuiu em 169.400 estudantes.

Esses mesmos dados dão conta de que, ao contrário do que se poderia supor, Lisboa não está no topo da lista dos municípios com maior percentagem de alunos imigrantes. O posto cabe a Sintra (com 8% do total), contra 6.9% da capital. Seguem-se Amadora, Almada, Cascais, Seixal, Loures, Odivelas, Loulé e Oeiras.
Apesar de ser o novo em percentagem, Loulé é na proporção o município com maior participação de alunos imigrantes em sala de aula, contabilizando 45,9% dos alunos matriculados.
O curioso é que a maioria dos alunos nas aulas de Português Língua Não Materna tem o português… como língua materna. Maior comunidade imigrante em Portugal, os brasileiros são quase um terço dos matriculados na disciplina, 28,6% do total ou 44.962 alunos.
Um dado que deve alterar-se sensivelmente no próximo estudo. Uma determinação da Direção-Geral de Educação, de outubro deste ano, corrige um erro histórico e orienta para que os brasileiros não mais sejam inseridos nas disciplinas de PLNM. Desta forma, o maior contingente deverá ser o angolano: em 2020, estavam matriculados nas escolas portuguesas 21.830 estudantes vindos de Angola, seguido pelos franceses, com 14.981.
Há ainda portugueses matriculados na disciplina. Em 2020, eram 2900 alunos filhos de pai ou mãe portuguesa que viviam no exterior e regressaram para Portugal. Atualmente, há um caso na turma do sétimo ano de Alexandra. “Tenho um aluno com pai português e mãe inglesa que foi escolarizado em Inglaterra e ainda não percebe bem a sua língua materna.”
Um história de itinerância no sangue
Ensino e imigração são velhos conhecidos de Alexandra.
A professora de 42 anos é neta de um professor, o avô materno Apolinário Monteiro, que ensinou numa escola em Goa, de onde a família imigrou, primeiro para Moçambique, onde os pais dela conheceram-se em 1980, antes de criar raízes em Lisboa. “A história de itinerância está no meu sangue”, conta.
Sobre o avô professor, Alexandra pouco se recorda. Não se esquece, porém, da fama do mestre Apolinário na sala de aula. “O meu avô ensinou a minha mãe e as minhas tias e todas dizem que era bastante severo”, conta, entre risos, a professora, a primeira a nascer em Portugal, no bairro lisboeta de Chelas.
As duas filhas de Alexandra estão em idade escolar, mas como a legislação não permite que se repita a história familiar de pais a ensinarem aos filhos, escaparam de saber se a mãe é uma professora tão severa quanto o bisavô.

Itinerância também resume a trajetória de docente de Alexandra. Após licenciar-se em 2004, a professora cumpriu o conhecido périplo dos professores portugueses de precariedade e pular de escola em escola, muitas delas a centenas de quilómetros de Lisboa. Até conseguir entrar para o quadro definitivo, apenas em 2022, prestou 18 concursos.
As voltas que o mundo da docência deram levou Alexandra inclusive para o exterior: atendendo a uma convocação internacional, a lisboeta acabou por ensinar na Universidade para Estrangeiros em Bari, instalada num centro italiano de acolhimento de refugiados.
“Foi no ano letivo de 2008 e 2009. Também foi meu primeiro contato com estudantes imigrantes, principalmente da Líbia e Somália, uma experiência marcante e enriquecedora”, relembra.
A experiência levou Alexandra a aproximar-se da disciplina de PLNM em 2011 e, de lá para cá, não mais parou. Em 2016, ainda na precariedade, entrou no quadro de docentes da Patrício Prazeres, mas não só. “Para conseguir somar o tempo necessário para subir nos escalões, dava aula na Patrício Prazeres e em mais duas escolas, ao mesmo tempo”, revela.
O interesse em dar voz aos imigrantes partiu de uma experiência particular.
“Vivi carregada de gente que vinha das ex-colónias e logo percebi que as coisas que ouvia os meus professores dizer na escola não batiam com a história real”, explica Alexandra.
O estranhamento aumentou quando o pai de Alexandra morreu e a professora herdou caixas e caixas com documentos, entre cartas e outros papéis. “É um manancial que me inspira. A história de imigrante do meu pai reforça a certeza de que o que ouvia nas aulas de história não traduzia a verdade.”
O desejo de Alexandra é encontrar tempo para um dia debruçar-se nas centenas de papéis nas caixas e escrever a história do pai.
Até lá, vai contando a sua própria história, como a professora que abriu os ouvidos e o coração a centenas de alunos imigrantes que, durante mais de uma década, passaram na sua sala de aula e ajudaram-na a dar vida a um glossário que é também o testemunho de uma realidade recente de Lisboa.
Na esperança que num futuro bem próximo, cada sala de PLNM tenha o seu próprio glossário.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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Viva a Xana!!!! Uma das primeiras pessoas que conheci em Lisboa…22 anos atrás!!!! Beijos chelenses minha querida e parabéns pela entrevista!!!!