Vídeo: Inês Leote

Se há uns anos passássemos por Chelas na noite de Ano Novo, era provável que nos deparássemos com a nuvem de fumo de uma grande fogueira entre os prédios da Zona I, atual Bairro das Amendoeiras. Lá pelo meio, a celebrar, estaria Sara Correia, fadista desde o berço, criada no bairro lisboeta e que hoje o canta como nunca no seu mais recente single, simplesmente intitulado “Chelas”, que antecipa o seu terceiro álbum, “Liberdade”, a editar a 13 de outubro.

Uma obra que canta a vida de uma comunidade “filha da dor”, uma homenagem ao lugar onde sonhou poder cantar para a cidade, o país, o mundo, e onde outros sonhos nem sempre conhecem o dia.

“No meu bairro vejo prédios de todas as cores/Que gritam ao mundo: o pobre há de sempre ser pobre/No meu bairro vejo gente, sei dos seus horrores/E que quem vem da rua é sempre nobre/Eu venho do bairro, da janela conto as estrelas/Não sou de mais lado nenhum, eu sou de Chelas”, canta Sara Correia no tema que conta com um videoclip gravado na Zona J.

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“Falar do meu bairro é homenagear as pessoas que aqui vivem e que trabalharam uma vida inteira para terem um lugarzinho aqui. Essa é a minha mensagem. Com um olhar de orgulho e de que nós somos capazes. Temos de acreditar em nós. É uma homenagem à minha gente, a Chelas e aos bairros de todo o país e do mundo”, diz, aludindo à mensagem de cariz universal.

Sara leva-nos pela mão pelo bairro onde cresceu, onde escolheu viver em adulta e onde o fado nasceu para ela, numa casa onde conheceu o “pai” Armando e a vida que queria ter.

Foto: Inês Leote

Do hip hop ao “pai” Armando

“Hip hop era o que se ouvia mais. Se eu metesse fado, matavam-me. Ninguém queria ouvir fado”, recorda, sobre os convívios frequentes com os amigos na rua, fossem na Passagem de Ano ou não. Na escola, conta, também não havia uma cultura do fado. “Era muito mais familiar do que propriamente na escola. Até ficava um bocadinho envergonhada porque as pessoas diziam… ‘Então o fado não é para pessoas mais velhas?’”

Talvez por isso é que este single, que conta com letra de Carolina Deslandes e uma produção de Diogo Clemente, não é de todo um fado tradicional, sendo influenciado pelo hip hop ou pela música pop que Sara Correia também cresceu a ouvir em Chelas.

Sobrinha da fadista Joana Correia, Sara sente que estava de alguma forma predestinada a tornar-se também ela fadista. Começou a cantar muito cedo, a acompanhar a tia nas suas atuações, até aos nove anos ir bater à porta do Clube Lisboa Amigos do Fado, que hoje funciona como escola e casa de fados em Chelas, sendo também um dos locais escolhidos para o videoclip do seu novo single.

Vídeo: Inês Leote

“Esta é a minha primeira casa, que me abraçou e acreditou em mim. Que me dirigiu para o mundo do fado e de certa forma me deu os primeiros alicerces. Sou muito chegada às pessoas desta casa, que me acompanharam desde muito nova. É a minha igreja.”

Há 20 anos, quando começou a frequentar aquele local, que antes funcionara como sede dos escuteiros, o espaço estava em cimento e fazia ainda mais eco. Não tinha, como hoje, o ambiente e a decoração de uma casa de fados, com inúmeros discos, fotografias, cartazes e adereços emoldurados ou presos às paredes.

Também não faltam referências a Sara Correia, a menina fadista da casa. 

Foto: Inês Leote

Hoje, além de ter aulas às segundas-feiras, o Clube Lisboa Amigos do Fado recebe atuações de fadistas aos domingos, entre as 16 e as 20 horas. E há muitas pessoas que vêm de fora de Chelas para assistir às sessões. “É importante que as pessoas venham e não tenham medo. Vão ser muito bem recebidos”, garante Sara Correia.

Ali teve aulas com Manuel Coelho, que lhe ensinou que, aos nove anos, talvez não fizesse sentido cantar sobre a morte.

Foi também naquele sítio que conheceu Armando Tavares, o fundador da casa e o seu primeiro manager. “Foi como um pai para mim. Foi a primeira pessoa que me levou às casas de fado, que me fez acreditar que era possível ter esta vida.”

O vestido verde alface com que atuou a primeira vez e a paixão pelo desporto

Os avôs paternos são alentejanos, a família materna é mais diversa, desde o Minho ao Algarve. Mas todos se mudaram para Lisboa em busca de uma vida melhor, com mais oportunidades, e os pais de Sara Correia já cresceram em Chelas, onde se conheceram. 

“Rebelde” e “despachada”, Sara Correia nasceu há 30 anos às portas da Maternidade Alfredo da Costa. “Sempre fui muito apressada para a vida. Já estava na barriga da minha mãe há muito tempo e eu preciso de viver.”

A sua Chelas mudou muito com os anos. Na Zona I, junto da eterna casa de Sam The Kid, foi onde a mãe lhe comprou um vestido verde alface (como a cor que vestia neste dia) para a sua primeira atuação numa casa de fados. “Foi comprado a quatro meses, como se fosse um Chanel”, brinca a fadista. A loja já não existe, tal como a papelaria onde costumava comprar os materiais para a escola. “Mas agora há um cabeleireiro, antes não existia nenhum.”

Numa zona entre prédios onde estão vários reformados a jogar dominó, antes era um “descampado” onde faziam a tal fogueira de Ano Novo. “Estávamos aqui a curtir até às cinco da manhã.” Explica que gosta de levar ali pessoas de fora, para que “levem uma ideia diferente” daquilo que Chelas é.

Foto: Inês Leote

Costumava “jogar à lata” no Parque do Vale Fundão, ao berlinde na escola, dispensava as bonecas e era uma grande atleta.

Durante vários anos, Sara Correia foi campeã de interescolar de futebol e basquetebol. “Em agosto, pedia à minha mãe para não ir de férias para estar aqui no pavilhão a treinar. Porque depois ia começar a escola e eu tinha que estar preparada!”

Antes era um campo despido, com balizas ferrugentas e bancadas em cimento. “Hoje parece a Altice Arena.” O campo do bairro foi renovado e tem portas, uma cobertura e balneários, como se se tratasse de um pavilhão de qualidade numa escola.

“Joguei muito aqui com os meus colegas. Os meus amigos rapazes iam sempre chamar-me a casa para jogar à bola. Dava toques e marcava muitos golos. Ficava sempre na melhor equipa. Fui muito, muito feliz aqui com os meus amigos”, recorda. Também era comum jogar à bola com os vizinhos no largo em frente da sua casa, ao pé da enorme (e antiga) árvore australiana que é a favorita de Sara Correia. Ali também chegaram a fazer uma daquelas fogueiras. “Acho que a minha geração foi a mais reguila de todas, fazíamos tudo e mais alguma coisa.”

Embora tenha sobretudo boas memórias de infância e juventude, também passou por “coisas menos boas” ali.

“Chegávamos a ter a polícia a entrar aqui no bairro e nem à janela podíamos estar, por causa das tais ideias pré-concebidas. Não estou a dizer que as pessoas são santas, mas isto não era um sítio normalizado”, lembra.

O sexto andar onde cresceu tem vista para o Parque das Nações e para o rio Tejo. Vê-se a Piscina Municipal do Vale Fundão e o enorme quartel dos bombeiros que está a ser construído ao lado. Com os anos, o seu prédio sofreu alterações e hoje tem um elevador moderno e grades de segurança. As estruturas eram diferentes quando as pessoas se mudaram para ali, muitas delas realojadas depois do fim de vários bairros de autoconstrução, onde moravam muitos trabalhadores industriais da zona oriental da cidade.

A partir daqui, Sara formou-se não só artista, mas também rebelde.

Mafalda, a mãe de Sara, aparece entretanto com a sua cadela Mia depois de ver a filha na rua. Atesta a rebeldia da filha, contando episódios de como fugia pela janela do quarto ou de quando, certa vez, era uma pequena criança, fingiu estar magoada na perna durante vários dias. “Fumar às escondidas? Isso era o mínimo”, brinca, agora que estas histórias pertencem ao passado.

Foto: Inês Leote

Hoje, Sara Correia já não vive ali, mas diz que, eventualmente, gostaria de ter a sua casa em Chelas – embora confessa estar saturada da cidade. “Cada vez estou mais nessa fase, acho que tem a ver com a idade. Chegamos a um ponto em que queremos paz e sossego.”

Uma “nova Sara” ao terceiro álbum, mais livre do que nunca

Quando o telemóvel de Sara Correia toca, ouve-se novamente “Chelas”. A fadista acredita que o bairro se sente na sua forma de cantar e que precisou de gravar discos e de viajar em digressão por diversos países para voltar “carregada de histórias” e com mais certezas por onde deseja ir na sua música. 

“E achei que o ‘Chelas’ poderia ser a abertura para mostrar às pessoas outras influências que tenho. Adoro poder cantar neste género e tem sido gratificante, as pessoas têm cantado imenso o single… e pessoas que não são daqui!”

Mas quem é do bairro tem abraçado ainda mais a canção.

Vídeo: Inês Leote

“Está a ser inacreditável, tenho recebido muitas mensagens, sobretudo de jovens, e até já me ofereceram um casaco a dizer Chelas. Sinto-me muito abraçada pelas pessoas e estou muito feliz e orgulhosa do meu caminho. Quase já nem posso andar aqui na rua”, diz, entre risos.

No novo disco permite-se a arriscar criativamente e a explorar novas linguagens e estéticas musicais, embora não se afaste tanto da sua “matriz do fado” como em “Chelas”. “Este disco traz novas sonoridades, mas não passam pelo ‘Chelas’. Vai passar muito pelo fado tradicional, só que teremos coisas novas em termos de instrumentos. Vamos abrir um bocadinho o leque”, antecipa.

“Foi uma procura inacreditável porque traz a minha juventude de volta, coisas que eu ouvia aqui quando era miúda. Acho que é um disco muito fresco, jovem e ao mesmo tempo com um peso da história. É um disco com muita ‘Liberdade’, porque fiz aquilo que realmente queria. Acho que é uma nova Sara.”


Ricardo Farinha

Nasceu em Lisboa e sempre viveu nos arredores da capital, periferias que lhe interessam particularmente. Conta histórias em modo freelance, sobretudo ligadas à área da cultura. More by Ricardo Farinha


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