Foto: Inês Leote

É difícil explicar a alguém que tem o dom da visão o que é, na prática, ser cego. É comum pensar-se que vemos tudo a preto. Mas, afinal, o que é o preto? O que é estar escuro?

Ser cego é adaptarmo-nos às inadaptações. É viver à boleia dos estímulos que passam ao lado dos que estão cegos pela paisagem. É viver num mundo cuja conta da luz não está em dia.

Não vejo há mais de 15 anos. Penso não estar a dizer nenhuma falácia quando afirmo que já tenho um certo estatuto e experiência na área. Talvez por este motivo tenha sido um dos convidados pela Câmara Municipal de Lisboa a participar na iniciativa Better Mobility Accelerator, promovida pelo EIT Urban Mobility e realizada em Portugal pela empresa Productized, na semana passada.

O objetivo deste “blind date” com a equipa responsável pelo plano de acessibilidade pedonal de Lisboa teve como finalidade apresentar-nos quatro propostas de ferramentas em desenvolvimento e possivelmente úteis para auxiliar as pessoas com deficiência visual na mobilidade pelo mundo exterior.

A iniciativa Better Mobility Accelerator, promovida pelo EIT Urban Mobility e levada a cabo em Portugal pela empresa Productized, aconteceu na semana passada. Foto: Inês Leote

Foi, por isso, com expectativa que cheguei ao ponto de encontro estabelecido, acompanhado dos meus companheiros com pouca aptidão visual e pela minha colega (e olhos nesta tarde) Inês Leote, fotojornalista da Mensagem, ao edifício previamente preparado para nos receber, na Avenida Marquês de Tomar.

Fomos apresentados a uma aplicação móvel que recorre à tão polémica AI – ou IA, inteligência artificial – para descrever o ambiente ao redor. A uma app que funciona como um GPS auditivo. E conhecemos um casaco futurista e uns óculos capazes de guiar um cego.

É sobre estas duas últimas ferramentas que me irei debruçar nas próximas linhas. Elas foram o meu verdadeiro périplo tecnológico, as experiências que me deixaram mais perto de largar de vez a bengala e andar sem a ajuda dela.

O casaco háptico

Teria Ernest Cline, autor da famosa obra de ficção “Jogador número 1”, previsto esta ferramenta? É certo que não funciona como um traje imersivo de realidade virtual, mas sim como um detetor de obstáculos que possam surgir no caminho da pessoa cega.

E porque estamos nas referências cinematográficas, assim que me equipei senti-me estranhamente num episódio de Black Mirror: o casaco está apetrechado com vários fios e sensores internos de proximidade em toda a área frontal que enviam estímulos através de vibrações, consoante a distância, a altitude e a localização do obstáculo.

Realizei vários testes, mas infelizmente nenhum no exterior, onde o perigo mais espreita. Serviu para entender as capacidades e as promessas desta ferramenta: caso alguém venha na minha direção pela minha direita, sinto um sinal vibratório à altura do meu peito; e se alguém estiver a passar à minha frente vinda da esquerda para a direita, o sinal também acompanha esse percurso, ao sinalizar-me com uma vibração contínua de um lado ao outro do meu tronco.

Infelizmente, por não ser de forma alguma ajustável ao corpo e por eu não preencher as medidas do casaco, senti uma certa dificuldade em receber os estímulos enviados ao nível da barriga.

Mas mesmo que funcionasse, este protótipo não promete fazer-me largar a bengala de vez, porque o casaco não é capaz de avisar sobre obstáculos inferiores traiçoeiros, como desníveis, buracos, escadas e presentes intestinais caninos.

E, assim sendo, tendo em conta que a bengala seria sempre necessária, não vejo nenhum motivo forte o suficiente para justificar a utilização do casaco háptico – a não ser, claro, por dar uma boa fotografia para as redes sociais (#futuro #cegotecnologico).

Mas agrada-me saber que, por aí, existem pessoas a trabalhar e a esforçarem-se para arranjar alternativas viáveis e significativas para nós, pessoas com deficiência.

Os cegos também usam óculos

Tudo bem. Não são exatamente um par de óculos convencionais, pois ficam alojados na testa e não nos olhos, mas isso é irrelevante para o que vos quero contar. Devo dizer que, apesar de me obrigar a manter a concentração, esta ferramenta conseguiu a proeza de me fazer voltar a vivenciar o que é andar na rua sem qualquer tipo de ajuda.

Foi quase como voltar a desfrutar daquilo que a visão pode oferecer. E não é pouca coisa.

O autor Tomás Delfim experimenta os óculos. Foto: Inês Leote

Com os óculos colocados, segui um curto tutorial em inglês providenciado pelo próprio aparelho para aprender os gestos e instruções que me seriam dadas durante a utilização. À semelhança do casaco, os estímulos causados pela deteção de obstáculos também chegam a mim na forma de vibrações contínuas e nada incomodativas. A premissa para uma navegação bem sucedida é simples: manter sempre a vibração no centro da testa. Caso sintamos a vibração a deslocar-se para um dos lados, basta acompanhá-la, de modo a fazê-la regressar ao o centro, o que significa que evitámos o obstáculo detetado pelo dispositivo.

Contrariamente ao casaco, esta ferramenta realmente futurista é extremamente sensível a qualquer tipo de objeto que se atravesse no caminho do cego, seja a que altura se encontre.

Durante os testes, pude experimentar a sensação libertadora de, apenas guiado pela vibração, desviar-me das pessoas da equipa de desenvolvedores que me acompanhavam e que teimavam em tornar a tarefa da sua criação mais complexa.

E, por momentos, senti-me a encarnar o icónico personagem Neo, a desviar-se das balas na trilogia cinematográfica Matrix.

Fui avisado de passagens e caminhos estreitos através da voz robótica (mas simpática) da senhora que me falava de dentro do aparelho, evitei obstáculos como parquímetros, postes de iluminação, bicicletas mal posicionadas e, com certeza, finalmente estaria a salvo dos pilaretes – carinhosamente batizados por nós, pessoas com deficiência visual, de “mata-cegos”.

Tomás Delfim fala dos desafios da mobilidade para pessoas com deficiência visual. Foto: Inês Leote

Senti-me como um peixinho dourado de aquário a voltar ao oceano. De repente, uma coisa que faz questão de me lembrar o motivo pelo qual está na minha mão, a bengala, desapareceu. Por momentos, abstraí-me daquilo que, para quem assiste de longe, mais me rotula.

Fora o facto de ser um dispositivo que pode causar algum peso durante períodos prolongados de uso, sem dúvida que será algo revolucionário, assim que se tornar mais discreto, leve e mais autónomo ao nível de tempo de bateria.

Será este o futuro? Gosto de acreditar que sim. Se não for por casacos que lembrem trajes de astronautas ou óculos que funcionam como um guia inteligente, que seja por uma outra ferramenta qualquer. Desde que a premissa base seja sempre a mesma: vamos ajudar as pessoas com deficiência.

Afinal, qualquer dia, as pessoas cegas também vão poder conduzir. Não vão querer malta revoltada ao volante, pois não?


Tomás Delfim

A paixão pelo jornalismo aflorou apenas durante a própria licenciatura em jornalismo, mas, como se costuma dizer, mais vale tarde que nunca. Entrou para a Mensagem com a missão de praticar o jornalismo que lhe proporciona uma maior realização pessoal e profissional: contar histórias de pessoas e da sua cidade. Mas, para ele, “o jornalista é apenas o mensageiro das histórias que as pessoas têm a contar.” More by Tomás Delfim


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