Eu conheci a Sara Correia por ser uma inapta. Consegui instalar o Spotify no telemóvel, o que já não é coisa pouca para alguém tão de letras quanto eu. Mas houve um dia em que o Spotify se pôs a andar sozinho, e ei-lo a meter-me nos ouvidos os recantos, as vozes sussurradas, um fado desconhecido. Ouvi pela primeira vez a fadista no ginásio, e depois ouvi-a muitas vezes enquanto a elíptica me combatia as pernas. Foi bom.
Durante meses, a Sara Correia foi aquela voz grossa e densa e funda a encher-me nos momentos em que o oxigénio me faltava. Não me interessou saber quem era: numa fadista, interessa-me a voz de mulher e não a cara. Eu queria lá saber quem era a Sara, de onde vinha, como era, para onde ia. Queria era que continuasse a cantar-me ao ouvido que Lisboa também tem um namorado e também tem ciúmes como nós, que quando sofre canta o fado com um soluço triste em sua voz. Quem nos sussurra isto com uma voz de canto não deixa margem para mais nada, quem ouve já só tem olhos para ver Lisboa a fazer papel de miúda perdida pela vida a olhar para o rio.
Na Mensagem, o Ricardo Farinha e a Inês Leote deram uma cara à voz – e era cara imberbe, de mulher inteira acabada de chegar aos 30. Nunca antes me pudera passar pela cabeça que aquela voz anciã ainda estava longe de ter rugas.
Chega a irritar que alguém possa meter tanta textura em tão pouca idade. Mas, em vez de me irritar, e como escolho achar beleza, pensei que tudo aquilo era tudo e muito lindo. Alguém que tenha voz nunca consegue estar sozinha.
Lá li a reportagem. Na escola, perguntavam-lhe se o fado não era para velhotes. A vários quilómetros de distância, mais ou menos na mesma altura, perguntavam-me se a literatura não era para totós. Por esses anos, eu andava também a descobrir a Amália, mas a Amália sempre me foi magia a vir de fora, nunca coisa que eu pudesse achar dentro de mim. Sabia que, se tentasse cantar, a voz ia morrer-me antes de chegar ao fim do verso. O que nunca me morria era a mão – essa que, sendo de criança, ainda voraz, irrequieta e incansável, estava pronta para os versos, fosse para serem imaginados em vozes de fadistas ou rappers ou outros quaisquer, fosse para glosar os motes que aparecessem, fosse para eu descobrir a rima como encaixe de uma frase. Nisso, a poesia mal amanhada que eu fazia – mas que era caminho – tinha o mesmo condão do fado: a fantasia de que uma linha é feita para a outra, de que os fragmentos frásicos andam de mãos dadas, de que é preciso limar as letras para a voz não ter gordura, de que a fonética tem tanto de sintaxe quanto de semântica.
Ida da poesia para a prosa, levei a mesma ideia, e pelo caminho deixei de fazer rimas. Mas nunca deixei, como leitora, como ouvinte, de querer chafurdar na humanidade – esventrá-la sem matá-la, descobri-la a querer sujar as mãos. E, passados os anos, nunca gostei das vozes límpidas de quem pareceu nunca ter usado a vida. Nem em adolescente gostava de dramas adolescentes, de vozes que pareciam arranhar a garganta pela primeira vez – que traziam as ilusões de amores perfeitos, todos só rosas, todos açúcar, todos sem sal; que traziam, só por cantarem, a evidência de que existiam sem camadas.
Ora, o que a Sara Correia faz é outra coisa, e percebe-se com ela o que é isso de ter voz de fado – é ter uma voz assim, capaz de ir a todo o lado. Isto é coisa que os pobres escritores nunca conseguem – fazemos a matéria, mas a fadista dá-lhe corpo. E é o corpo que entra pelos ouvidos de quem ouve o texto, porque, para além das frases, está lá a vida. A vida faz-se de muita rouquidão e muita história, de muita capacidade de ir roubar beleza às ruas, de olhar para as raízes e ver troncos, de usar calão quanto apetece, de saber que nem sapatos nem sapatilhas conseguem apagar a voz.
Enfim, falta-me muito da cidade que é minha todos os dias. Moro em Lisboa há uns dez anos e só pelos ouvidos – por uma voz de fado – meti os pés em Chelas.
LEIA AQUI A REPORTAGEM

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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Bom comentário, para quem só conhece Lisboa á dez anos, eu tenho 82 anos e sempre vivi em Lisboa, sou do tempo das varinhas de canasta á cabeça da fava rica e do marmelo assado