Logo pela manhã, a população da Penha de França acordou para ver a Praça Paiva Couceiro como ela era antes da pandemia: um lugar de encontro e de descanso, com as suas 48 cadeiras distribuídas pelo espaço. Mas agora, as cadeiras eram diferentes – mais singulares, de diferentes tamanhos e feitios.

Foram ali colocadas por dois jovens, Marta e Francisco, e trazem com eles uma espécie de movimento pelo direito ao espaço público na cidade, na rua e no Instagram: o Infraestrutura Pública.

“Não sei se isto é um movimento, mas estamos a trabalhar para que nos devolvam espaço que foi roubado!”, explicam eles, que se insurgiram contra o desaparecimento desse lugar de convívio.

Mas como desapareceram da Praça?

cadeiras penha de frança
Dois jovens sentados ao lado de um lisboeta que usufruiu da instalação de cadeiras esta manhã. Foto: DR

Como desapareceram 48 cadeiras da praça?

Tudo começou quando, em 2020, durante a pandemia de covid-19 e como medida de prevenção contra os ajuntamentos e contágios consequentes, a Junta de Freguesia da Penha de França decidiu retirar o mobiliário urbano da Paiva Couceiro – cadeiras e mesas.

A medida não gerou alarido numa altura em que toda a cidade já parecia estranha. Mas, “no dia seguinte, todos os idosos jogavam cartas em cima dos caixotes do lixo ao longo da Praça, de forma ainda mais propícia a contágios”, partilha António Brito Guterres, dinamizador comunitário e investigador em assuntos urbanos, na sua página de Instagram.

Passaram três anos e apenas foram devolvidas 16 cadeiras pela Junta de Freguesia. E tudo o que resta na Praça Paiva Couceiro são as marcas das mesas e cadeiras que um dia serviram o convívio de uma comunidade.

Por isso, nesta manhã, Marta e Francisco, moradores na freguesia, decidiram eles próprios instalar as 32 cadeiras em falta sobre as suas antigas marcas. Cadeiras que foram encontrando “no lixo”, “na rua” ou que lhes foram entregues por solidariedade.

Juntaram umas bandeiras coloridas ao espaço, como o anúncio de um arraial, ergueram um cartaz onde justificaram a ação – “Pelo direito ao sentar” – e não tardou até que ali surgissem moradores, sobretudo os mais velhos do bairro, tão habituados a ali descansar, almoçar, e a jogar jogos.

Mas foi sol de pouca dura.

Não muito tempo depois, os fregueses viam o seu descanso interrompido pela chegada da polícia com uma ordem: a de que se retirassem as cadeiras, ali colocadas sem autorização. As cadeiras não duraram para ver chegar mais vizinhos e, no dia seguinte, o deputado municipal Ricardo Moreira (do Bloco de Esquerda) partilhava na sua conta de Twitter o desaparecimento do mobiliário urbano junto ao mercado de Arroios:

O debate estava lançado: o “direito ao sentar” está a ser negado nas cidades?

A privatização “do sentar público”

Aquilo que aconteceu na Praça Paiva Couceiro lançou a discussão sobre o “direito ao sentar”, o slogan que surgia em letras grandes num cartaz de Marta e Francisco, e que aqui parece estar a ser negado aos seus moradores.

Num post do Instagram que os jovens criaram, pode ler-se:

“Senta-te aqui. Temos o direito a sentar. A sentar em espaços que não sejam de consumo. Queremos sentar-nos para conversar, descansar, jogar, comer, ler. Usamos o espaço público como um espaço de passagem quando também é um espaço de estar. A cidade está desenhada para maximizar o rendimento e a mobilidade. Um banco pode mudar isto. Os bancos públicos são um objeto estrutural à cidade. Mantêm comunidades.”

Eles acreditam que o que aqui está em causa é uma “lógica do consumo” que motiva muitos centros urbanos, como diz José Carlos Mota, diretor do mestrado em Planeamento Regional e Urbano da Universidade de Aveiro.

“É uma espécie de tendência de privatização do sentar público, do sentar na cidade, ligado à lógica do consumo. Só te podes sentar num café ou num restaurante”.

josé carlos mota, especialista

À semelhança do que acontece em ruas tão conhecidas da cidade como a Rua Augusta: toda ela pedonal, mas sem um único lugar para estar sem que seja uma esplanada privada, detida por um qualquer restaurante, bar ou café.

A Junta de Freguesia da Penha de França respondeu que o reforço do espaço público é um dos seus objetivos, e que já repôs “uma grande parte” das cadeiras que foram retiradas durante a pandemia. Porém, apenas repuseram 16 das 48.

Em relação às 32 cadeiras que ficaram a faltar, a Junta afirma que em dezembro de 2021 terá proposto uma nova distribuição do mobiliário urbano, mas que até hoje aguarda o parecer positivo da Câmara Municipal. Em contrapartida, a CML argumenta que já deu um parecer negativo a esta proposta, uma vez que implicava a destruição da área verde existente. Para além disso, informa que “a Junta de Freguesia sempre pôde voltar a colocar o mobiliário urbano na zona artificial, como estava antes de ser retirado.”

“Um fenómeno global”

“A Praça Paiva Couceiro é um exemplo incrível, é o que está a acontecer em vários espaços urbanos”, dizem os dois jovens Marta e Francisco. Em Lisboa e não só. José Carlos Mota explica que a retirada de bancos públicos é “um fenómeno global”.

Em abril deste ano, por exemplo, a Câmara Municipal do Porto mandou retirar bancos públicos do Largo Alberto Pimentel, com o presidente Rui Moreira a alegar que a sua retirada resultava da vontade dos moradores, que se viam incomodados pelo ruído causado pelos jovens que ali se sentavam à noite. No entanto, várias pessoas se manifestaram contra a ação, promovendo-se até uma petição online contra a retirada dos bancos. 

pay & sit
Os bancos “Pay & Sit”.

Em 2018, em Veneza, passou a proibir-se que os turistas se sentassem em determinados lugares, como na Praça de São Marcos ou na Ponte de Rialto, correndo o risco de terem de pagar uma multa de 500 euros. 

Também nesta lógica do consumo, o designer alemão Fabian Brunsing concebeu os bancos “pay & sit” (“paga e senta”), que implicavam o pagamento de uma quantia para se poder sentar neles durante um determinado período de tempo. Terminado esse período, emergiam espinhos que impossibilitavam a permanência no banco.

A força policial e a arquitetura hostil

Mas nem sempre o motor destas ações se prende só com a “lógica do consumo”. Um artigo de opinião de 2022 do jornal The Guardian remetia para uma outra faceta da privatização do “sentar público”: a do controlo policial, de forma a combater a criminalidade.

Foi isso que aconteceu em Ashford, Kent, no Reino Unido, onde se retiraram bancos e e arbustos de parques públicos, alegadamente para se “combater o crime” e se “prevenirem comportamentos antissociais.”

Em Poole, também no Reino Unido, um projeto para uma fileira de novas casas com vista para um parque foi alterado, com as autoridades policiais a defenderem que a vista para uma área de recreação poderia atrair as “pessoas erradas”, e em Eltham, em Londres, insistiram para que a cerca de uma escola fosse mais alta pelos mesmos motivos.

Em causa estará o “Secured by Design“, uma iniciativa da polícia que trabalha para melhorar a segurança dos edifícios e dos espaços públicos, que muitas vezes leva à restrição do espaço público, ao direito de sentar ou ao encontro entre as pessoas.

Uma ideia que faz também lembrar a arquitetura hostil, uma forma de “afastar os indesejáveis”, como a população em situação de sem-abrigo, através da instalação de elementos “hostis”, como floreiras, pilaretes, grades nos espaços da cidade. Como já acontece em Lisboa:

Um exemplo de arquitetura hostil em Lisboa. Foto: Inês Leote

Marta e Francisco não descuram a presença da arquitetura hostil pela sua cidade, deixando o apelo no Instagram:

“Dos novos bancos instalados pelas freguesias muitos estão a ficar sem encosto, muitos estão a transformar-se em cadeiras individuais espaçadas, muitos estão agora com apoios de braços que não são para descansarmos os nossos braços mas para não nos deitarmos neles. Os bancos que nos dão, e os que não nos dão, são hostis para pessoas com crianças, em situação de sem-abrigo, idosos, grávidas, todos nós.”

E, num artigo do The New York Times Magazine, o escritor Jonathan Lee refere-se a isso mesmo: “Se um banco num parque não está a ser removido, o plano B é torná-lo desconfortável. A ‘arquitetura hostil’ – uma estratégia de design utilizada para impedir comportamentos ‘antissociais’ – está a proliferar por todo o mundo.” 

A perda do encontro na cidade

Com estas medidas, o escritor Jonathan Lee defende que se está a perder algo fundamental na vida da cidade: “Como um bom livro ou uma peça de música, um banco num parque permite um sentido de solitude e de comunidade ao mesmo tempo, uma simultaneidade que é crucial para a vida numa grande cidade.” 

José Carlos Mota partilha da mesma opinião: “Os bancos e as mesas em espaço público são um convite ao encontro, à prática de jogos…”. É disso mesmo que Marta e Francisco falam – de recuperar este espaço de convívio da freguesia deles.

“Não vamos ficar por aqui”, dizem eles, que querem recuperar as cadeiras recolhidas pela Junta de Freguesia, e lutar para que a sua recolocação na Praça Paiva Couceiro seja autorizada.

*Texto atualizado às 11:59 do dia 14 de setembro, com a indicação do que se passa junto ao mercado de Arroios

*Texto atualizado às 14h00 do dia 20 de setembro, com declarações da Câmara Municipal de Lisboa


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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5 Comentários

  1. Na mesma zona de Lisboa, e um pouco por todo o lado, se ligamos à polícia por causa de carros estacionados no passeio, respondem que irão assim que possível porque têm poucos efectivos…
    Alguém é muito incompetente e muito pulha!

  2. Iniciativa muito útil, este vosso blog, para informar e incentivar os cidadãos a usufruir do espaço público, libertando-se da ganância das instituições que os deveriam apoiar.

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