Era uma outra Lisboa a dos anos 80 e 90. E aquele lugar mítico na cidade, em Benfica, não era exceção à euforia dos tempos: o cine-teatro Turim, no centro comercial com o mesmo nome, vivia com as salas quase sempre cheias – tanto que, no final das sessões, várias foram as vezes em que as pessoas tiveram de sair pela porta de emergência que estava atrás do palco.
Lá fora, no centro comercial, vários fregueses esperavam por cuidar dos cabelos com o Kitó, comprar discos e jogos à “dona Linda” ou apenas falar com a Lourdes, a guardiã do espaço quando a família responsável pelo espaço não estava. O Turim era um lugar tão familiar que até a máquina que projetava filmes foi batizada: a “Maria”.
Abriu em 1983, como centro comercial com cinema, e atingiu o auge do sucesso quase imediatamente. O nome veio de uma cidade italiana nunca pisada pelo proprietário Afonso Moreira, mas conhecida por ter uma grande exposição de carros – outra paixão e negócio de Afonso.
Teve, então, várias vidas: além de centro comercial e cinema, o Turim foi teatro também.

Mas as cadeiras vermelhas cheias, onde tantos se lembram de ter selado promessas de amor, não durariam no tempo e, em 2017, as portas do Turim fecharam para o que parecia ser uma sentença de morte na freguesia.
Não foi. Este sábado e domingo, seis anos depois de fechar e 40 após abrir, o Turim volta a fazer parte do mapa vivo de Benfica, como cine-teatro, mas não só.
Dia 16 e 17 de setembro, abre portas aos lisboetas, com uma programação que conta com teatro infantil, concertos, stand-up, cinema, DJ sets, entre outras atividades, desenhadas com o apoio da Junta de Freguesia de Benfica e da Câmara Municipal de Lisboa. Uma representação daquilo que se quer que o novo Turim seja, sem esquecer o que foi o velho.
Já o cinema, que abriu a 30 de setembro de 1983 com a exibição do filme “Luz da Paixão”, de Costa-Gavras, retoma oficialmente o funcionamento da tela no mesmo dia, 40 anos depois, com a exibição do mesmo filme.
Veja o que esperar do novo Turim:
Crescer nos corredores do Turim
Anabela Moreira é atriz, mas antes de o ser já era a filha de Afonso Moreira, dono do Turim, e a menina que cresceu naqueles corredores.
Por lá, conheceu e aprendeu como funcionava “Maria”, nome dado à máquina de projeção que fazia um “barulho ensurdecedor”. Quando a sala estava cheia e tinha de ver os filmes desde a sala de projeção, agarrava nas bobinas que estavam no chão e via outros filmes sem os projetar. “Foi aí que, de uma forma muito ingénua, percebi que queria fazer parte daquilo, que queria ser atriz”, conta.

Afonso Moreira faleceu no mês de abril deste ano, mas o seu nome ficará no auditório do Turim.
Anabela relembra o pai como um exemplo de persistência, o que fez com que aquele espaço fosse sobrevivendo às mudanças dos tempos:

“Eu lembro-me de ser muito pequenina e o meu pai me levar a mim e à minha irmã às matinés infantis que lá aconteciam todos os domingos. Lembro-me da estranheza e do orgulho que sentia ao saber que aquela sala era do meu pai. Ele veio aos 12 anos para Lisboa sem nada, mas tinha um espírito de muito sacrifício e força. E nunca quis desistir do Turim.”
ANABELA MOREIRA, ATRIZ
Os rostos de Anabela e da irmã gémea estreiam o ecrã do cine-teatro esta sexta-feira, com a exibição do filme Diamantino, em que participaram, numa sessão de inauguração privada.
As memórias dos comerciantes do Turim
“Fui muito feliz ali. O meu início em Lisboa foi no Turim.” Kitó, como é conhecido por todos, chegou ao centro comercial com 17 anos, um menino vindo de Elvas. Pouco depois já lá geria o conhecido cabeleireiro Mayer, que ficava no primeiro andar.
Esteve lá 12 anos antes de abrir o seu próprio salão e recorda o Turim como uma família feita por vizinhos das outras lojas, com quem hoje ainda tenta manter contacto.

Por ali andava também Maria Deolinda. Ficou conhecida por “Dona Linda”, mas também pela sua beleza e o arrojo de quem, naquela altura, usava os cabelos compridos e sapatos altos de verniz com um laçarote atrás, quando não estava frio – porque, quando estava, usava botas altas de todas as cores: pretas, verdes ou vermelhas, conta a própria.
Tão arrojada quanto prometia ser o espaço onde trabalhou, o Turim.

A “Dona Linda” era dona da discoteca Turim, onde vendia discos, cassetes de jogos e tinha música sempre a tocar. Abriu o espaço algures no ano de 1986 e, se a cabeça não lhe falha, acabou por vendê-lo quatro ou cinco anos depois a um alemão.
“Era uma loja muito bonita, bem decorada e alegre. As pessoas procuravam-nos muito para comprar presentes e nós fazíamos os laços mais bonitos da freguesia! Personalizamos tudo ao pormenor, de um género se fosse para senhora, de outro se fosse para um cavalheiro ou criança.”, explica muito orgulhosa.
MARIA DEOLINDA, COMERCIANTE NO VELHO TURIM
Ao regressar ao Turim, passados uns anos de vender a loja, deu por si a chorar enquanto contemplava a fachada do edifício. Foi aí que um homem se aproximou: “Ele disse que não me queria ver a chorar e por isso pagou-me um café”, ri-se, “Mas olhe, verdade seja dita, acabei a casar com ele passados oito anos de namoro.” Hoje, Maria Deolinda tem 70 anos, mora em Carcavelos e abriu sozinha outro negócio, desta vez de mediação imobiliária.
O fim do velho Turim
Por lá, continuou sempre Lourdes Silva, membro da família Turim desde o dia em que abriu até ao dia em que fechou em 2017. Era a responsável pelo espaço e fazia um pouco de tudo: desde a bilheteira, frente de sala, tratava também da programação, organizava ensaios, entre mais tarefas. E relembra o Turim como uma época de muito esforço, de irem sobrevivendo contra a maré ao longo dos anos.




Um dia, a corda rebentou mesmo.
Com a chegada do novo milénio, chegaram também as grandes distribuidoras de filmes que sufocaram estas pequenas salas por todo o país. Anabela Moreira recorda como a rotina de ida ao cinema mudou:
“As pessoas já não iam apenas ao cinema, faziam planos para o dia: iam almoçar no centro comercial, passavam a tarde a fazer compras e depois acabavam no cinema – onde havia sempre mais do que um filme em exibição para escolherem.”
Afonso Moreira não quis ceder à crise e manteve o cinema, mesmo que em prejuízo.
Em 2009, a sala de cinema transformou-se num teatro, o único independente de pessoa particular. Ficou a cargo de Anabela e da paixão assoberbada que tinha pelo teatro. Ali, abriu palco para novas criações de artistas emergentes e dali saíram muitos textos novos.
Mas não havia retorno financeiro. Candidataram-se a vários apoios, mas nunca conseguiram os apoios certos.
Até que, em 2017, Afonso Moreira perguntou à filha se aquilo era um peso demasiado grande para ela e acabaram por decidir encerrar o Turim. “Foi uma decisão muito dura para nós, mas estivemos nove anos à procura de ajuda por todos os meios. Estávamos cansados.”, confessa Anabela.
O que esperar do novo Turim
Passados cinco anos desde que fechou e 40 desde que nasceu, o Turim volta a abrir as portas ainda neste mês de setembro, pelas mãos da Junta de Freguesia de Benfica que, para já, fez um contrato de arrendamento a dez anos.
Ricardo Marques, o presidente da Junta, cresceu em Benfica e ele próprio tem memórias do Turim dos anos 80 e 90, não apenas pelo cinema:
“O Turim era o sítio da freguesia onde se vendiam as cassetes de Spectrum. Cada prédio tinha ali duas ou três cassetes, que comprávamos com os trocos que cada um ia conseguindo juntar. Jogávamos entre todos, na altura, o gaming era uma atividade social”, Ricardo Marques ri-se comparando o seu tempo com os novos padrões do gaming, em que hoje os jovens se isolam.

O presidente da Junta recorda também quando se sentou naquela mesma sala com o pai para ver o filme “Top Gun”, ou quando, anos depois, ali levou as filhas a ver uma sessão de teatro infantil.
Ricardo Marques conhece bem a essência do que era o Turim e pretende conservá-la (até porque essa é uma obrigação em contrato): quer-se aqui um misto entre comercial e cultural. Tanto é que até o restaurante de francesinhas do primeiro andar estará obrigado a produzir cultura, com espetáculos durante o ano.
Para além da novidade do restaurante de francesinhas, o andar de baixo será ocupado por um arcade bar, o Cine Bar Turim – um espaço onde se vai poder petiscar e jogar em mais de vinte máquinas arcade. Esta parte do Turim ficará nas mãos da Associação “O Menino da Lágrima”, criada para o Turim e que conta com “uma rapaziada com ligação umbilical a Benfica”, apresenta-os assim Ricardo Marques. Entre os vários nomes estão Miguel Ponces de Carvalho, que é o presidente, mas também Nuno Markl, Filipe Melo e Ana Bacalhau – conhecidos da freguesia.
Ana Bacalhau que se lembra como se fosse hoje de ver o “Speed”, de Jan de Bont, no Turim com uma tia irlandesa. Lá ia com os pais e até sozinha. A mãe até teve um café ao lado do Turim durante quase dois anos com uma amiga, o que levou a cantora ainda mais vezes àquela sala.

Para além do Cine Bar, a artista conta que a associação vai ficar com as quartas-feiras a seu cargo. Enquanto os seus colegas, Markl e Filipe Melo, ficarão mais responsáveis pela programação das sessões de cinema, Ana ficará com a responsabilidade da música:
“A ideia é ter ali um espaço para nomes emergentes na música com potencial de descoberta. Esperamos criar ali uma mistura entre o cinema e a música, que andam muitas vezes de mãos dadas. Já existem muitos espaços onde as pessoas vão ver o que já conhecem, mas também é importante haver espaços onde vão à descoberta. E eu espero que o Turim seja esse espaço, que haja uma ‘peregrinação cultural’ até lá.”
ANA BACALHAU
Miguel Ponces de Carvalho diz que o objetivo é que o filme não acabe quando as luzes acendem, como noutros cinemas. Querem que haja espaço para debater o filme ou fazer um DJ set com a banda sonora, por exemplo.
Quanto à reabertura, Anabela Moreira mostra-se muito entusiasmada sobre o que aquele espaço que conhece desde sempre pode voltar a ser.
“Não sei onde colocar todas as emoções que tenho sobre isto. As pessoas que conheceram o meu pai podem desaparecer, mas o nome dele vai sendo lembrado através daquele auditório. Tenho muito orgulho.”
anabela moreira
A ideia de um “quarteirão cultural” em Benfica
O presidente da Junta, Ricardo Marques, avança que o investimento nas obras de requalificação rondou os 450 mil euros, dos quais 150 mil foram comparticipados pela Câmara Municipal de Lisboa (CML).
Já a manutenção anual irá rondar os 350 mil euros, com o apoio de 100 mil euros da CML ao abrigo do programa municipal “Um teatro em cada bairro”.
A reabertura do Turim junta-se ao plano de criar um “quarteirão cultural” com cerca de 500 metros quadrados na freguesia. O quarteirão já conta com o auditório Carlos Paredes, com o Palácio Baldaya, agora com o Turim e em breve com a biblioteca António Lobo Antunes, que deverá abrir no próximo ano.
*Ana Narciso tem 23 anos, vem de Rio Maior, mas vive em Lisboa desde os 18. Foi pela paixão de contar histórias que escolheu licenciar-se em Jornalismo. Durante três anos, escreveu para o jornal da faculdade e passou muitas horas na rádio. É estagiária na Mensagem de Lisboa – este texto foi editado por Catarina Reis.

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