Em Junho deste ano Ciaran Tracey, um jornalista da rádio da BBC, veio a Lisboa com a missão de fazer uma reportagem sobre Nómadas Digitais. Pediu-me uma entrevista, e marcámos ao fim do dia num dos cafés da Praça Paiva Couceiro.
Ao chegar, Ciaran ficou em choque e fez-me um pedido fora do comum: que para começar, ao invés de responder a uma pergunta, eu pudesse descrever aos microfones o que se passava à nossa volta.
E assim foi: paragens de autocarro cheias, taxistas fora dos veículos a conversar, miúdos a andar de bicicleta e a jogar à bola, mães com crianças no parque, idosos a jogar às cartas, o mítico Carapau da Curraleira a dar toques sem nunca deixar cair a bola, jovens a ler na esplanada, filas para o barbeiro, encontros improváveis em mudanças de turno e toda uma série de situações que não cabem numa reportagem de rádio ou numa crónica de jornal.
Ao fim de dois dias de reportagem, a entrevistar Digital Nomads no centro de Lisboa, Ciaran tinha finalmente encontrado os habitantes desta cidade e isso seria mais revelador do que qualquer resposta que teria para lhe dar. Os Digital Nomads também são habitantes da cidade, embora grande maioria viva numa ficção narrativa que nem o repórter da BBC conseguiu apanhar.
É por isso que a Paiva Couceiro ganha importância. A Praça marca o fim do centro da cidade e todas as ações que descrevi ao microfone da BBC são interpretadas por uma diversidade de intervenientes: novos e velhos, vizinhos imediatos ou longínquos, moradores do bairro da Penha e dos Bairros Sociais envolventes, de nacionalidade portuguesa ou não.
Ou seja, a Praça cumpre ainda a função de espaço público, possibilitando que uma multitude de pessoas, com vontades e objetivos diversos possam usufruir da mesma localização, patrocinando a coesão na cidade e conhecimento mútuo entre os seus moradores.
Mais: a comercialização quase absoluta do espaço público do centro da cidade transforma a Paiva Couceiro num dos últimos redutos de espaço público – na verdadeira aceção do termo. Mas não sejamos ingénuos. Essa comercialização de Lisboa ambiciona chegar a todos os cantos da cidade. E a Junta de Freguesia da Penha de França não se abstraiu dessa movida, nem pretendeu governar em contraciclo. No fim da pandemia não restituiu a totalidade do mobiliário existente na Praça, e permitiu o aumento do espaço de esplanada do quiosque, organizando também de forma frequente outros eventos na Praça: dos concertos aos mercados.
E se ainda assim, esses movimentos não foram percebidos como sendo nesse sentido, a conduta e direcção das acções da Junta de Freguesia ficaram bem entendidas quando, a 13 de Setembro último, esta chamou a polícia para retirar da Paiva Couceiro um conjunto de vizinhos que conviviam na Praça trazendo as suas próprias cadeiras.
O incidente criou uma espécie de choque colectivo: tínhamos acabado de assistir ao compadrio de duas instituições contra algo fundamental que é o direito de reunião (art. 45 da Constituição). Os organizadores do convívio – Infraestrutura Públicas – convocaram novo convívio para dia 22 de Setembro às 18h. Porque, apesar da re-colocação do mobiliário em falta pela Junta, mantém-se a gravidade da premissa da ação da Junta de Freguesia com a PSP. E torna-se importante demonstrar o poder da cidadania. Assim, o fim de tarde desta sexta-feira é dia de celebrar a cidadania e lembrar aos autarcas que os cidadãos estão atentos e prontos a contribuir decisivamente para a construção de cidade.
*Assistente Social com pós-graduação em Estudos Urbanos e doutorando na mesma área temática. Investigador no Dinâmia-Cet ISCTE-IUL. Tem coordenado projectos de desenvolvimento comunitário em vários territórios da Área Metropolitana de Lisboa. Na área da cultura, foi um dos responsáveis das “Estratégias para a Cultura da Cidade Lisboa”, ainda em 2022 foi curador da exposição “Interferências” no MAAT e de “Também Estão no Mapa” no Museu de Lisboa.