Bem-vindo ao último episódio de “Porto Brandão”.
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Em tempos, foi a conhecida Fábrica das Conservas aquela que enchia de vida o Porto Brandão, em Almada. Era um vaivém de gente no cais, vinda de barco. Nessa altura, o cheiro de Porto Brandão era o cheiro a peixe, o cheiro a atum e a sardinha.

A vida agitada nesta localidade do Monte de Caparica não fazia adivinhar que a viragem do século significaria um abandono, uma morte anunciada para esta terra com vista privilegiada sobre Lisboa, um lugar parado no tempo há 50 anos.

Porto Brandão
A antiga Fábrica de Conservas, hoje Southshore Investments. Foto: Carlos Menezes

Hoje, o atum e a sardinha já não movem multidões para Porto Brandão, já não é o cheiro a peixe o cheiro deste lugar. E o velho edifício da fábrica de conservas, abandonado durante anos, é agora o sítio onde se discute o futuro da terra, o novo correr do relógio: aqui está a sede da Southshore Investments, a empresa promotora imobiliária detida por um casal alemão imigrado em Portugal.

Neste lugar, Linda e Marcellino Gräfin von Hoensbroech andam a sonhar com um horizonte mais ambicioso para Porto Brandão.

Sonham até fazer dela uma espécie de Silicon Valley da Europa.

porto brandão
Foto: Inês Leote

Como morre uma terra

Inácia Cruz, de 82 anos, moradora e personagem do primeiro episódio desta série, resumiu a vida atual do Porto Brandão a uma única e devastadora expressão: “É uma morte!”.

Vive aqui desde que veio do Alentejo para se casar. Viu a morte em que Porto Brandão se transformou, com o fecho da fábrica de conservas e a construção da ponte 25 de Abril – é este o diagnóstico feito pelo historiador Rui Mendes, que tem autopsiado este corpo morto em Almada nos últimos anos.

Nem sempre foi assim.

No passado, Porto Brandão foi território de defesa da cidade de Lisboa, como conta a Fortaleza da Terra Velha ou Torre de São Sebastião da Caparica, Monumento Nacional de Almada construído no século XV, hoje votado ao abandono.

Mais tarde, nos séculos XIX e XX, transformava-se com a construção do Novo Lazareto, um pequeno cais, o estaleiro de reparação naval com o plano inclinado (pioneiro no país), a fábrica de conservas e a cooperativa de catraeiros do Porto de Lisboa.

Porto Brandão
Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Estes tempos tornaram-se apenas memória. Até que, em 2016, o destino do Porto Brandão começou a ser desafiado. A população fez correr boatos de que estaria para nascer nesta terra algo novo… ou muitas coisas novas.

Neste mesmo ano, era criada a Área de Reabilitação Urbana de Porto Brandão. O objetivo? Tal como o nome do projeto indica, a reabilitação da área histórica e o incentivo ao arrendamento destinado a habitação para jovens.

Desde então, placas de imobiliárias a anunciar vendas ou arrendamentos tornaram-se presença assídua no Porto Brandão. E as casas velhas começam a ganhar outras vidas. “Há uma população idosa, as casas já foram baratas e agora já não estão”, resume Pedro Silva Pereira, do restaurante Muelle, no Porto Brandão.

Só este ano, terão sido abertos 15 dos 17 alojamentos locais presentes no Porto Brandão. É o que nos mostra o registo nacional de Alojamento Local do Turismo de Portugal.

Screenshot do site de dados de AL do Turismo de Portugal

Quantas novas vidas cabem NO Porto Brandão?

Há mais de três anos, o casal alemão Gräfin von Hoensbroech visitava Porto Brandão pela primeira vez.

“Descobri Porto Brandão por coincidência”, começa por explicar Linda. “Estávamos a fazer alguns investimentos e andávamos sempre a conduzir por Lisboa. Dava para ver, entre o verde, umas fábricas antigas, e fomos investigar. Disseram-nos que era Almada, uma zona um pouco esquecida, menos desenvolvida.”

Linda Gräfin von Hoensbroech, fundadora da Southshore Investments, sediada no Porto Brandão. Foto : Carlos Menezes

Com os pés no cais, não tardou até que Linda e Marcellino descobrissem o edifício em ruínas lá no alto. Ali, vive um dos segredos mais bem guardados e esquecidos de Porto Brandão: o Lazareto e Asilo 28 de Maio, O lugar que acolheu viajantes, meninas e freiras e a população do antigo Ultramar depois do 25 de Abril.

A velha morada de Chullage, José Manuel, Teresa Grilo… E onde hoje só resta Joaquim Xarepe, que ficou numa pequena casa aos pés destas ruínas.

porto brandão asilo lazareto
Foto: Inês Leote

As ruínas foram compradas em 2020 pela milionária chinesa Ming Hsu, onde se prevê que a empresa Reformosa construa um conjunto habitacional e um hotel. O projeto está em fase de licenciamento na Câmara Municipal de Almada. Mas não parece ter o aval de quem por ali construiu as memórias.

Como o rapper Chullage:

“Quando soube disso, eu sempre vi aquilo como um lugar-mor. E isso vai atropelar, como tudo o que acontece neste país, o dinheiro e o betão vêm e atropela tudo. Devia fazer-se um ‘learning site‘, um museu mais vivo… um museu que interagisse com o agora. Podia ter quintas pedagógicas, escolas de artes…”

chullage

Mas este não é este o projeto mais ambicioso para Porto Brandão.

Também nesta terra decidiram ficar Linda e Marcellino. Tornaram a antiga fábrica de conservas na sede da Southshore Investments e é aqui mesmo que têm ajudado a planear o nascimento de um campus da inovação, onde a universidade e o tecido empresarial estreitem relações.

A Southshore Investments é uma das parceiras de um grande projeto que tem dado que falar em Almada: o “Innovation District”, lançado em 2021 pela NOVA FCT, faculdade pública há anos dedicada às ciências e engenharias, em Almada.

Em parceria com a Câmara Municipal de Almada, a universidade Egas Moniz e a Santa Casa da Misericórdia, a ideia é a transformar o campus atual no Monte de Caparica num “campus do futuro”, o epicentro deste Innovation District, que abrange Porto Brandão.

O projeto de Almada Innovation District. Foto: NOVA FCT
Maquete do Innovation District. Foto: NOVA FCT

“A localização do Porto Brandão é magnífica, as vistas são extraordinárias, está um bocadinho em perda porque, do ponto de vista urbanístico, está isolado”, justifica Bruno Mota Martinho é diretor executivo do projeto.

O investimento está previsto ser na ordem dos 800 milhões de euros. E conta também com o apoio da organização sem fins lucrativos Fundação Serra Henriques, com um polo na antiga Oficina Naval da Sociedade dos Catraeiros de Lisboa.

No âmbito do Innovation District, a Southshore Investments projeta a criação de um parque empresarial e de um centro de pesquisa e investigação naqueles que eram os terrenos da Galp, entretanto por eles comprados.

Mas a promotora imobiliária tem também em mente a criação de um hospital, uma escola, uma residência universitária, habitação e um café comunitário. É o plano da próxima década da Southshore Investments para esta localidade.

“Cumpre-nos agora conquistar Porto Brandão, é uma localidade encaixada, e nós acreditamos que se subirmos o perfil e os projetos, Porto Brandão subirá também naturalmente”

Bruno Mota Martinho, INNOVATION DISTRICT

Para além dos investimentos imobiliários nesta zona, a Southshore é também promotora da da “Catch”  (Centro de Arte, Tecnologia e Criatividade Humana), através da qual começou a desenvolver uma série de projetos na área das comunidades sustentáveis, em articulação com a associação LifeShacker. “Estamos a tentar regenerar uma área. Tentámos tornar este lugar mais habitável com arte e comida saudável, e com o trabalho com a comunidade.”

A Catch está ainda a preparar um projeto de arte urbana, o BRAU, que tem como objetivo “tornar a vila mais bonita com murais e esculturas” através de um concurso de murais, onde os participantes serão artistas. O vencedor do melhor mural ganha dez jantares num restaurante do Porto Brandão. Neste evento, ainda sem data certa, a comunidade será convidada a participar. 


Fazer do passado… futuro

Onde se começa a trabalhar com o futuro, há quem se vire para o passado, procurando resgatá-lo do esquecimento. É o que está a acontecer num espaço da Fábrica dos Catraeiros, cedido pela Southshore Investments à empresa Nosso Tejo, que avançou com uma proposta diferente: a de recuperar o estaleiro do Porto Brandão.

Um projeto financiado pela EEA Grants que promove ainda as técnicas de construção e as artes de pesca desta região. “Em 2016, começámos a perceber que de facto havia uma oportunidade de usufruir de património esquecido, o património material das embarcações do Tejo”, explica Rui Rosado, da empresa Nosso Tejo. 

Assim se iniciou o projeto, com a perspetiva de se incentivar a construção, procurando-se um espaço para funcionar como centro de formação, que fosse próximo da comunidade de Lisboa e de Almada. Acabou por se chegar ao Porto Brandão.

“Porto Brandão sempre foi usado como porto de abrigo e ali se construiu um estaleiro e plano inclinado, pioneiro em Portugal.” Um estaleiro que a Nosso Tejo se propôs a recuperar. Mas, para se conseguir o apoio da EEA Grants do património costeiro cultural, não bastava preservar património material, mas também imaterial. Para isso, contaram com o apoio do Centro de Arqueologia de Almada, com o historiador Francisco Silva a fazer um levantamento das diferentes artes de pesca, mas também das diferentes embarcações. 

Entretanto, a Nosso Tejo tem trabalhado com a associação LifeShacker para aproximar a comunidade juvenil destes ofícios e saberes, e também com a Reshape, para ensinar a arte dos artesãos a presidiários. Recentemente, iniciou-se a obra de recuperação do estaleiro e resgataram-se embarcações típicas, pelo mestre Jaime Costa e dois aprendizes, ora num estaleiro naval na Moita, ora no espaço da fábrica dos catraeiros.

Com este projeto, Rui Rosado acredita que Porto Brandão se venha a transformar.

Rui Rosado (à esquerda) e Francisco Silva (à direita) num espaço da fábrica dos catraeiros. Foto: Carlos Menezes

“A nossa missão é que o estaleiro funcione como uma grande embaixada do rio dentro de terra. Que tenhamos visitantes vindos da outra margem, mas que venham também além-fronteiras, e que possam ter como ponto de abrigo o Tejo, e como local de paragem Porto Brandão.”

Andreas Bulow Cosmos é dinamarquês mas é com as típicas embarcações portuguesas que ele trabalha. Veio para Portugal “por amor” e conseguiu um estágio no âmbito do curso de embarcações que está a tirar na Dinamarca. Foi assim que descobriu o Porto Brandão, e o projeto de recuperação do estaleiro naval.

Vindo de fora, ao chegar ao Porto Brandão, estranhou. “Porto Brandão é um lugar engraçado, mas é quase uma cidade fantasma”, conta. Mas também ele acredita que tudo pode mudar com este projeto.

Porto Brandão estaleiro
O estaleiro naval de Porto Brandão. Foto: Arquivo Municipal de Almada

O que será de Porto Brandão no final desta década ainda é apenas um plano. Deixará de ser a paragem de barco entre Belém e Trafaria onde quase ninguém sai? Será que o relógio voltará a correr no Porto Brandão?

Quando José Manuel Tavares fez do Asilo 28 de Maio morada, os planos e os sonhos eram outros. Mas houve um que não mudou: “Eu gostava que um dia aparecesse um messias para que o Asilo fosse restaurado.”

E que as paredes do Porto Brandão nunca deixassem de falar.

(prosa de José Manuel Tavares)

Se Essas Paredes Falassem 

Se essas paredes falassem

 Se contassem cada vez 

Que me vi de joelhos 

Na escuridão 

Com medo de levantar 

E fitar na penumbra 

Meus olhos no espelho 

Dizendo que não

Poderia começar assim com esses versos dos “Dance of The Day” as minhas memórias do Asilo 28 Maio; mas cairia num extremismo se não incluísse também um trecho de Sandra Botelho: “Que o mundo nunca nos descubra, que a noite nunca termine, que a vida seja infinita… Que possa morrer te amando…Em êxtase!”

Cheguei ao Asilo aos 19 anos, procedente de Cabo Verde, com sonhos e aventuras na minha bagagem. O sonho tornou-se num imenso pesadelo, quando um dia por um daqueles imprevistos do destino, tive um encontro que me regeu nos próximos 14 anos: a heroína me encontrou, tornamo-nos amigos e depois me escravizou; e o Asilo tornou-se um exílio, ou melhor uma prisão; porém mesmo sendo escravo amei, aprendi e quiçá também ensinei, nem sempre coisas boas. 

Mas como dizia Soeiro P. Gomes : “mas o escravo liberta”. E na verdade há 20 anos que fui libertado, conheci a Verdade que liberta; conheci a Jesus. Asilo da minha juventude; toda escangalhada e destroçada! Haverá também esperança para ti?…haverá algum messias que virá para também te restaurar!?… Maranatha!

ERRATA:

O casal Gräfin von Hoensbroech é alemão, e não holandês.

Veja aqui todos os episódios da série “Porto Brandão”:

Ficha técnica
Texto e direção de entrevistas: Ana da Cunha
Vídeo e fotografia: Inês Leote e Carlos Menezes
Podcast e edição geral: Catarina Reis
Ilustração: Nuno Saraiva


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2 Comentários

  1. Projecto, fantástico, do qual gostaria de participar, ou a empresa onde estou a laborar. Sou Fiscal de Obras de CCivil. Um projecto bastante ambicioso e valoroso. Parabéns e desejo muito que chegue ao fim com bastante sucesso. João CR S.

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