Bem-vindo ao 3.º episódio de “Porto Brandão”.
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O Asilo 28 de Maio, no Porto Brandão, tornou-se casa para muitos imigrantes que vieram das ex-colónias, sobretudo de Cabo Verde, no processo de descolonização logo a seguir ao 25 de Abril. Para ali vieram os menos privilegiados, e ali construíram uma pequena aldeia, com tudo o que de mau e bom têm as aldeias.

E assim foi sendo casa, aldeia e morada, mesmo apesar da degradação do espaço, cada vez mais uma enorme ruína. Ninguém parecia ligar àquele lugar privilegiado no estuário do Tejo, mas totalmente esquecido.

Até que a população pôs mãos à obra e começou a luta pelo realojamento dos residentes do mítico edifício de Almada. Uma luta encabeçada por mulheres, entre elas a mãe de Chullage – um dos moradores do Asilo – que só foi possível graças a Manuela Tavares, fundadora da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).

“Foi a doutora Manuela quem as mobilizou”, conta o rapper. “As mulheres lutaram por esse realojamento e muitas vezes foram criticadas.”

“UM CENÁRIO DANTESCO”

Tudo começou com uma carta. Manuela Tavares lembra-se bem do dia em que uma carta chegou à caixa de correio da associação. A remetente chamava-se Teresa Grilo, uma mulher que dizia viver no “Asilo 28 de maio” em “condições terríveis”. 

Asilo 28 de maio?!

Manuela não fazia ideia do que Teresa estava a falar na carta, mesmo tendo vivido em Almada grande parte da sua vida. Essa carta levou-a, a ela e a uma colega da UMAR, a conhecer novos caminhos.

E ainda consegue descrever com grande pormenor aquilo que descobriu naquele dia, ao subir a encosta  do Porto Brandão.

“Aquilo tinha um caminho de terra batida mas onde podia ir um carro até mais perto, entrámos e ficámos abismadas.” 

Manuela Tavares, fundadora da UMAR, recebeu uma carta sobre as condições do Asilo 28 de maio. Foto: Carlos Menezes

Eram corredores, “quase catacumbas”, sem luz, por onde surgiam portas, num caminho cheio de fios elétricos, que se emaranhavam uns nos outros. Para se subir ao andar de cima, havia uma escadaria que rangia, “com imensos buracos”, por onde espreitavam animais como cabras e ovelhas. “Era um cenário dantesco.” 

Manuela viria a encontrar a casa de Teresa Grilo. “Quando abro a porta, vejo uma casa muito limpa, nada de mobílias de luxo, mas uma casa que nada tinha que ver com o cenário dos corredores e das escadarias”, recorda. 

asilo 28 de maio lazareto
Manuela Tavares surpreendeu-se com aquilo que encontrou no Asilo 28 de maio. Foto: Inês Leote

Teresa contou-lhe a sua história. Uma história que a filha, Isabel Grilo, hoje a viver nos Açores, conta também: “O Asilo era horrível, não tinha condições nenhumas, nós vivíamos no andar de baixo, a nossa casa de banho era na cozinha e as fossas eram a céu aberto.” 

Os que ocuparam o Asilo 28 de Maio sentiam-se esquecidos – estavam esquecidos. Já iam nos finais dos anos 80, e tinham sido votados ao abandono, praticamente desde que para ali tinham ido, ocupando o espaço por necessidade, depois de chegarem do antigo Ultramar, como tantos outros que viviam em barracas e bairros de auto-construção, por essa altura. Refugiados políticos sem o serem, imigrantes sem apoio. Outros, eram portugueses. E, dizem, sem que a Câmara Municipal de Almada interviesse.

Foi Manuela Tavares quem levou o assunto à Assembleia Municipal. E a própria presidente da Câmara Municipal de Almada na altura, Emília de Sousa, ficou surpreendida. A UMAR fez então com uma delegação de deputados municipais uma visita ao local. “Eles ficaram de boca aberta com as condições em que as pessoas ali viviam”.

A visita foi o mote para a criação da Comissão de Moradores do Asilo 28 de Maio, constituída apenas por mulheres, entre elas Teresa Grilo, que era a presidente, e também juntou a mãe do artista Chullage.

Iniciava-se, assim, um longo processo de luta para o realojamento das 600 pessoas que ali viviam. E curiosamente, também pela alfabetização de muitos dos que não sabiam ler.

UM NOVO BAIRRO NO MONTE DE CAPARICA

Alertado pela situação indigna que se vivia, na campanha eleitoral de 1995, o candidato António Guterres visitou o Asilo 28 de Maio. “Dificilmente se encontrará em Portugal um sítio onde a dignidade humana esteja tão espezinhada”, disse. E prometeu que, caso fosse eleito, a primeira medida seria realojar a população daquele lugar. E assim foi.

Guterres ganhou as eleições em outubro e foi assinado o protocolo de realojamento com a Câmara Municipal, em dezembro.

Uma semana depois, uma tragédia acelerava o futuro do lugar: uma tempestade levou a uma derrocada que mataria duas crianças. Nos dias seguintes os moradores foram temporariamente realojados no quartel de Setúbal e da Trafaria – como mostra uma reportagem da RTP. Isso apressou o processo, e a 30 de julho de 1996, eram entregues as primeiras chaves das casas do bairro Nossa Senhora da Conceição, que ficaria conhecido para sempre como “o bairro do Asilo”, no Monte da Caparica.

Um bairro de realojamento onde as memórias do antigo Lazareto, e depois Asilo, ficariam guardadas.

O REENCONTRO

Hoje, no “bairro do Asilo”, no Monte de Caparica, basta perguntar “o senhor viveu no Asilo 28 de Maio?” para se juntar um grupo de ex-moradores, que se sentam a recordar. No meio de reminiscências, “Calu” diz: “A tua infância, essa, nunca a podes esquecer.” Sobretudo quem a viveu naquele edifício, hoje em ruínas, no Porto Brandão.

A mãe de Chullage, Maria das Dores, a quem José Manuel Tavares ensinou a ler. Foto: Carlos Menezes

O rapper Chullage é um dos que guarda bem junto do peito essas memórias. Saiu do Asilo, mas regressa ao bairro do Asilo com um propósito: reencontrar-se com José Manuel Tavares, o morador do Asilo que era conhecido por ler muito e ter a casa cheia de livros.

“No Asilo, foi o José Manuel quem ensinou a minha mãe a ler”, conta Chullage. Redescobriu o Zé quando a Mensagem o entrevistou: “Não pode ser, ele esteve bué mal, não está vivo.” Viu uma fotografia. “É ele! Ele ensinou a minha mãe a ler.”

Entre tantos, Zé era dos poucos escolarizados e, por isso, foi um dos membros destacados para auxiliar nas ações de formação de alfabetização.

Outro morador do bairro, “Gonçalves”, recorda: “O José Manuel estudou, ele era uma pessoa que abria a mente.” Todos se lembram da sua casa no Asilo, onde os livros eram tão inquilinos quanto ele.

José Manuel aparece e os olhos de Chullage iluminam-se. Ao reverem-se passados mais de trinta anos, Nuno e Zé Manel, em tempos putos naquelas ruínas, agora homens crescidos, abraçam-se com emoção. “Há quanto tempo?”, interroga-se Zé Manel.

José Manuel Tavares e Chullage reencontraram-se no bairro do Asilo. Foto : Carlos Menezes

“Eu pensei que tinhas morrido!”, diz Chullage.

“Pá, sempre encontrei algo que me vem preencher, dinamizar para continuar. Houve momentos em que a luta parecia perdida…” , responde Zé Manel

“Mas é essa capacidade de dar a volta que faz as pessoas.”

Fico até emocionado. Porque tendo a consciência de muitas coisas… Vi que as pessoas, no Asilo, continuavam a amar-me.”

A questão é que toda a gente tem apreço por ti.

O Asilo e Porto Brandão reúnem histórias e memórias. E o futuro? Esse estará algures entre as ambições imobiliárias e projetos de inovação que já puseram no papel os planos para a revitalização e a força desse passado.

Saiba que perspetivas há para Porto Brandão, no próximo e último episódio.

Saiba mais no próximo episódio, “Deste Porto, vê-se horizonte”, no dia 8 de setembro.
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Ficha técnica
Texto e direção de entrevistas: Ana da Cunha
Vídeo e fotografia: Inês Leote e Carlos Menezes
Podcast e edição geral: Catarina Reis
Ilustração: Nuno Saraiva


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5 Comentários

  1. Este artigo sobre o Asilo 28 de Maio está errado em muitos aspectos aqui abordados, p.ex. o realojamento dos moradores foi feito na Urbanização N.Sra. da Conceição propriedade da Casa Pia de Lisboa e que foi essa mesma instituição que foi instaurou todo o processo em conjunto com a CMA.
    Penso que deviam ter contatado a Casa Pia de Lisboa para uma melhor informação sobre este assunto.

  2. Olá, Lídia! A urbanização N. Sra. da Conceição corresponde àquele que é mais commumente referido como “o bairro do Asilo”, do qual falamos no texto. De facto, foi a Casa Pia e a CMA que coordenaram o processo de realojamento, tal como se pode ver na placa do bairro. Mas quem impulsionou o processo foi a UMAR. Se houver mais alguma precisão, por favor avise-me! Muito obrigada

  3. No ano de 1952,com 6 anos, vivi no asilo 28 de Maio a época mais triste da minha infância de menina pobre.
    O comentário não tem a ver com o presente mas a recordação foi muito forte. Tenho 77 anos e nunca mais voltei a Porto Brandão

  4. Excelente reportagem. Excelente jornalismo. A Mensagem de Lisboa está cada vez melhor. Para quando uma Mensagem do Porto?
    Luísa Malato/ FLUP

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