O sobe e desce dos aviões na Portela costuma tirar o sono dos moradores de Alvalade, mas para alguns desses vizinhos a proximidade com o aeroporto não perturba o devido descanso. A menos de um quilómetro da pista de aterragem e descolagem, as vinhas do Parque Vinícola de Lisboa repousam por meses, alheia aos ruídos das turbinas, e só acordam quando o implacável despertador da natureza avisa que é chegada a hora das vindimas.
Aconteceu na semana passada: os lisboetas foram pela primeira vez às vindimas.
Muitos deles de cabelos prateados que na infância acompanharam os pais em vindimas nas terras de origem, tiveram a oportunidade de matar a saudade do passado, alguns na companhia de filhos e netos que só ouviram falar das vindimas nos almoços em família e agora teriam a oportunidade de vindimar como os antepassados.
A capital europeia que faz vinho sob os aviões
Este ano, o despertador tocou no dia 31 de agosto e, pela primeira vez na história, o despertar das vinhas foi acompanhado de perto pelos moradores de Lisboa, convidados pela Câmara Municipal e pela Casa Santos Lima, parceiros na iniciativa que, desde 2014, mantém a inusitada experiência de gerir um vinhedo nos limites urbanos da cidade.
Uma área de dois hectares ao pé da Rotunda do Relógio, cercado não só pelo aeroporto, mas pelas movimentadíssimas avenidas Gago Coutinho, Marechal Gomes da Costa e pela Segunda Circular.


Foi em 2017 que este terreno colheu a primeira safra dos rótulos de tinto e branco do Corvos de Lisboa e, desde então, também mais de uma mão de palmares em concursos internacionais.
O que faz de Lisboa uma das poucas, senão a única, capital europeia a contar com um vinho colhido das uvas plantadas nos limites do seu centro urbano. Um luxo até então escondido dos olhos dos lisboetas, salvo apenas os que usam a tranquila rua da Quinta da Graça para ir ou vir no sentido Marvila ou Bela Vista, talvez tão apressados que não notem o milagre verde ao lado.
Agora, 120 desses lisboetas – um número três vezes maior do que o planeado pelos organizadores, obrigados a dilatar as vagas – puderam participar nesta história recente da cidade, não só no papel de testemunhas, mas com tesouras nas mãos, cuidadosamente cortando os ramos e generosamente colhendo os cachos.
Numa genuína e improvável vindima no centro de Lisboa.

Uma denominação controlada chamada Lisboa
Luís Almada leva a um dos olhos o objeto cilíndrico e, naquele instante, parece um navegador dos antigos filmes de corsário. “É um refractómetro”, explica o administrador da Casa Santos Silva, sobre o aparelho utilizado para calcular o teor de álcool nas uvas. Para isso, espreme-se uma delas num recetáculo e, em seguida, basta apenas mirar pelo visor.
No refractómetro surge uma régua em forma de termómetro, não em Celsius, mas regida pela escala Gay-Lussac, representada nos rótulos dos vinhos pelo símbolo GL ao lado do decimal na indicação da graduação alcoólica da bebida. “11 graus e meio”, anuncia Luís, antecipando o teor da safra de Arinto, a casta responsável pela produção de branco da casa.
O insólito almirante em terra-firme a mirar o futuro através da peculiar luneta foi o anfitrião dos lisboetas convidados a vindimar.

Da estrutura de madeira em forma de cabana no meio do vinhedo, Luís falou brevemente da tradição que percorreu cinco gerações dos Santos Lima, orgulhosos de serem o maior produtor de vinhos da região vitivinícola de Lisboa.
Uma área antes conhecida como Vinho Regional de Estremadura, desde 2009 rebatizada e que não se restringe à cidade de Lisboa. Muito pelo contrário: estendendo-se para além dos limites do concelho, abarcando vinícolas nas regiões de Carcavelos, Colares, Bucelas, Arruda dos Vinhos, Alenquer, Torres Vedras, Lourinhã, Óbidos e Ourém de Encostas d’Aire.
A Denominação de Origem Controlada (DOC) que leva o nome de Lisboa soma uma área de vinha de 30 mil hectares e produz cerca de 20 milhões de garrafas por ano. 20 mil delas sairão dos dois hectares de solo argilo-calcário vizinhos ao aeroporto, que contam, além da casta Arinto responsável pelo branco, com as de Touriga Nacional e de Roriz para o tinto.
Depois do preâmbulo, Luís Almada alertou para a atenção do uso da tesoura de jardinagem usada para o corte. “Cuidado com os dedos. Até os profissionais, às vezes, são apanhados de surpresa”, reforçou, anunciando ainda que, devido ao número inesperado de interessados frente à quantidade de ferramentas disponíveis, seriam obrigados a partilhá-las em pares.
Nada que preocupasse os presentes, visivelmente excitados em começar a pôr a mão na massa, ou neste caso, nos cachos. Além da tesoura partilhada aos pares, cada um dos vinicultores de ocasião recebeu um chapéu de palha para se proteger do sol e um cesto para depositar a colheita após a manhã de trabalho voluntário entre as vinhas.
Em troca, a promessa dos anfitriões de uma degustação de vinho Corvos de Lisboa fruto da safra colhida no ano passado e, repentinamente, a ideia de passar a manhã a tesourar um vinhedo passou a ser também uma boa desculpa para, sem culpa, tomar um copo ainda antes do meio-dia.
“Ê, lá, isso é que é um perigo”, comentou sem esconder o bom humor da lisboeta ao lado, diante da promessa da degustação matinal.
Um dia como os nossos pais e avós
Com a tesoura na mão esteve também o vereador Ângelo Pereira, responsável entre tantos pelouros na Câmara Municipal de Lisboa, pela Estrutura Verde. “Cansa, mas é bom”, resumiu, sobre a tarefa de vindimar, enquanto esgrimia-se com os cachos de uva.
“Foi uma forma que a Câmara encontrou de os lisboetas entrarem em contacto com o que os pais e avós faziam lá na terra e também passar a usufruir deste espaço”, explicou o vereador sobre a decisão de convidar os munícipes a arregaçar as mãos e experimentar um dia como um vindimador.

“A expetativa era trazer quarenta pessoas, mas a procura foi tão grande que o número acabou sendo dilatado para cem, depois para cento e vinte. E ainda tivemos que negar outros tantos pedidos”, comemora Ângelo Pereira.
“Foi o calorão dos últimos dias”, explicou, referindo-se às altas temperaturas do agosto mais quente de sempre. As mudanças climáticas, aliás, têm levado os técnicos da Casa Santos Lima e da CML a cogitarem construir um sistema de rega, contrariando a tradição de não se regar as vinhas em Portugal.
A vindima no Parque Vinícola de Lisboa dura cerca de dois dias. As vinhas colhidas são transportadas de Lisboa para as instalações da Santos Lima em Alenquer, onde passarão por todo processo até estarem disponíveis aos clientes no segundo semestre do próximo ano.
“Quem manda são as uvas”, garante Luís Almada, detalhando que não há nada a ser feito para além do controlo de maturação que indicará a data da próxima vindima. Enquanto o despertador não voltar a tocar, as vinhas estarão em suspensão, num sono até meados de fevereiro ou março.
Um sono que, os especialistas garantem, não é perturbado pelo tráfego intenso de carros nas avenidas subjacentes ou de aviões que aterram e descolam de Portela.
Ao contrário dos queixosos vizinhos de Alvalade, as vinhas têm sono pesado.
Sangue por sangue, vinho por vinho
Após mais de duas horas de vindima, a programação previa uma pausa, mas não foi fácil trazer de volta os convidados às voltas com as tesouras de jardinagem. Aos poucos, porém, vencidos pelo cansaço e pelo calor, um a um os lisboetas rumaram até o ponto de encontro, em busca de uma cadeira e uma sombra para descansar, sem esconder um sorriso de satisfação.
Pois como disse o vereador, vindimar cansa, mas é bom.

Com todos de volta, foi a vez de o saca-rolhas trabalhar. As garrafas da safra do ano passado de Corvo de Lisboa começaram a circular por entre os copos nos braços estirados dos presentes. Entre eles, um sedento pai que, com o copo cheio em mãos, apelava aos dois filhos adolescentes: “Não digam nada à sua mãe!”
Protegido por uma sombra, o lisboeta José Carmona arrefecia-se com um copo de vinho branco fresco, apoiado na mesma mão onde um penso denunciava um “acidente de trabalho”: Carmona foi a única “baixa” entre os vindimadores amadores, com a tesoura a raspar-lhe o dedo mindinho esquerdo.
Acompanhado da mulher, Etelvina Caldeira, leitora confessa da Mensagem, Carmona desmereceu o ocorrido. Se a vinha lhe roubou algumas gotas de sangue, pareceu satisfeito com a desforra, roubando da vinha algumas gotas de vinho. “Uma troca justa”, ponderou a sorrir o lisboeta, em pleno gozo de sua primeira vindima.
“Agora, terei uma história para contar”, completou José Carmona, há 66 anos nascido e criado em Lisboa. “Nascido, criado, cortado e, agora, bebido”, reforçou, dando o tom feliz de uma manhã de descobertas para os lisboetas de um prazer e uma tradição tão portuguesa. Uma prova de que, como dizem os médicos, o vinho faz bem ao coração.
E que uma vinha no coração de uma cidade, também faz.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição: