Bem-vindo ao primeiro episódio de “Porto Brandão”.
Escolha se quer ver, ouvir ou ler:
Já se ouviu menos a marcha do rio Tejo no Porto Brandão, mas hoje este é um dos únicos sons nesta localidade de Almada: a água que anda para a frente e para trás, a molhar o cais. Houve tempos em que o barulho da água competia com um apito, que quando tocava dizia aos trabalhadores das fábricas que era hora de terminar a labora. E já lá vão os anos em que os barcos chegavam e partiam cheios.
Houve tempos em que Porto Brandão era terra de muitos. Hoje, continua a ser a terra de Joaquim Xarepe.

Xarepe acorda todos os dias com uma missão: soltar as ovelhas pelos campos de erva e terra batida que abrem caminho para um edifício em ruínas, com vista sobre o rio Tejo. Este edifício é hoje um lugar vazio, virado para Lisboa, mas já foi o Lazareto ou Asilo 28 de Maio – um tesouro abandonado no Porto Brandão.
Este lugar da freguesia da Caparica ocupa um vale inteiro da frente ribeirinha do Tejo, onde os últimos Censos dizem viver 658 pessoas e onde o comércio é escasso. Por isso, Porto Brandão não chega para ser aldeia ou vila.
E ainda que seja a primeira paragem do barco entre Belém e Trafaria, muito poucas pessoas chegam a sair para o visitar.

Não porque seja uma paisagem vazia.
Mal atracamos no cais de Porto Brandão, vemos o Lazareto ou Asilo 28 de Maio, onde Xarepe tem morada. Um lugar que se tornou uma das personagens principais da história de glória e, depois, de abandono desta localidade. E a figura mais imponente da sua paisagem.
A face do abandono
O Lazareto foi mandado construir em 1858, num tempo em que grassava a febre amarela, acolhendo ali os viajantes que chegavam a Lisboa para passarem a quarentena. Mas, ao longo dos anos, e com a sua função a tornar-se obsoleta, acabaria por servir também de prisão, de asilo para religiosas e meninas desfavorecidas e, por fim, de casa para centenas de famílias que chegaram do ex-ultramar depois do 25 de Abril.
Xarepe chegou também depois do 25 de Abril, um militar com estilhaços no corpo da guerra em Angola. Ocupou uma pequena casa, um antigo chalet no Lazareto, com a mulher e a filha. E partilhou morada com mais de cem famílias, vindas sobretudo de Cabo Verde – eles, dentro do próprio asilo, fazendo das paredes das divisões as paredes que dividiam famílias.
“Eu dou-me melhor com cabo-verdianos do que com outras pessoas por causa disso”, pelas memórias que ali partilharam, diz Xarepe. No início, começou por estar de costas voltadas para os que eram daquela nacionalidade, quando a guerra os separou, confessa. Mas a história deu-lhe outro final. “No final de contas, eles são os meus melhores amigos”, conta.
Hoje, é o único que ali continua a morar, depois de uma tragédia, em 1996, ter levado ao realojamento dos 600 moradores.

Xarepe conta que, na altura do realojamento, não lhe foi concedida uma casa e, por isso, deixaram-no ficar por aqui. À Mensagem, a Câmara Municipal de Almada diz desconhecer a situação deste munícipe, mas Xarepe é história e cara conhecida para a Junta de Freguesia – a presidente, Sandra Chaíça, chama-lhe carinhosamente “tio Xarepe”.
Agora, o Asilo 28 de Maio é apenas recordação de um tempo que parou ali e em todo o Porto Brandão. Torna-se até difícil imaginar como esta já foi uma localidade com tanta vida: com a Fábrica de Conservas estava em funcionamento, o quartel ativo e o porto fervilhante. Longe do que é hoje: um vazio como Porto Brandão nunca vira. O que causa estranheza num lugar tão privilegiado como este.


“É uma vila que parou no tempo”, remata Pedro Silva Pereira, responsável pelo restaurante Muelle, que ainda resiste pelas famosas carvoadas – uma outra forma de grelhar, tão típica desta terra.
As origens de Porto Brandão
O nome de Porto Brandão surge na carta foral de 1513 do rei D. Manuel I para Almada e evoca uma velha lenda.
Conta-se por estas bandas a história de amor de Brandão e de Paulina, namorados cuja relação era mal vista pelo pai da rapariga, que a enviou para a Índia e que leva Brandão a esconder-se no navio, onde acaba por ser descoberto e morto pelo comandante.
Com o desgosto, Paulina suicida-se e o corpo dela vai dar à praia que ficaria conhecida como praia da Paulina. Já o corpo dele dá à costa em Porto do Brandão.
O historiador Rui Manuel Mesquita Mendes tem dúvidas quanto à lenda, até porque estas duas figuras não terão sido contemporâneas uma da outra. “As lendas têm sempre um encanto que a História não tem”, remata.
Território de efabulações, a parte alta do Porto Brandão cedo se tornou zona de defesa da cidade de Lisboa. “Os navios que entravam Tejo adentro tinham ali um ponto de encontro visual, e se necessário um ponto de ataque.”
Foi por isso que ali se construiu a Fortaleza da Torre Velha, conhecida como Torre de São Sebastião da Caparica, considerada entretanto Monumento Nacional de Almada, e que remonta ao século XV. Serviu, depois, também de Lazareto, até à construção do hoje abandonado Asilo 28 de Maio – esse onde vive Xarepe.
Em 1864, foi aqui erigida uma igreja dedicada à Nossa Senhora do Bom Sucesso, custeada por D. Pedro V, e Porto Brandão cedo se torna uma terra de festas em honra da santa padroeira.

É pois entre os séculos XIX e XX que Porto Brandão conhece o seu auge, com a construção do Novo Lazareto, de um pequeno cais, de um estaleiro de reparação naval com o plano inclinado (pioneiro no país), da fábrica de conservas, da cooperativa de catraeiros do Porto de Lisboa e de pequenas indústrias de tanoaria – a arte de fabricar barris que serviriam de transporte de mercadoria líquida.
O anúncio do renascimento
José Silva, um velho pescador que se senta no paredão, lembra-se bem desses tempos: “De manhã, o barco para Lisboa ia cheio!” Hoje, já não se pode dizer o mesmo. Inácia Cruz, de 82 anos, vive aqui desde que veio do Alentejo para se casar, e desabafa: “Isto é uma morte!”. Tiago Costa, responsável pelo restaurante Porto Brandão, lamenta também: “Custa-me ver tudo abandonado.”



Os tempos mudaram a partir da construção da ponte 25 de Abril, em 1966, conta o historiador Rui Mendes. “Com a ponte, perdeu-se emprego, movimentação… hoje, não existem grandes oportunidades de trabalho no Porto Brandão.”
A presidente da Junta da União das Freguesias de Caparica e Trafaria, Sandra Chaíça, acredita também que o fim da fábrica de conservas ajudou a ditar o fim de Porto Brandão como o conheciam os seus mais velhos habitantes.
Esses, os que aqui ainda moram, esperam que a terra deles ganhe de novo dinamismo, e isso pode estar para breve, com os anúncios que por ali se ouvem.
“Isto vai ter muita atividade daqui a uns anos, isto está tudo a ser vendido!”, anuncia José Silva, morador. “Querem fazer hotéis! Quando é que não sabemos.” A localização privilegiada, assim o indica.


A história do futuro hotel terá começado em 2016.
Neste ano, era criada a Área de Reabilitação Urbana de Porto Brandão – que abrange o Núcleo Histórico da localidade, a área urbana ao longo da rua 1º de Maio e da rua 5 de Outubro, a Fonte Santa, o Lazareto e a Torre Velha. O objetivo? Tal como o nome do projeto indica, a reabilitação da área histórica e o incentivo ao arrendamento destinado a habitação para jovens.
A Câmara Municipal de Almada conta que o Lazareto foi comprado à Sonangol em 2020 pela empresa Reformosa, da empresária chinesa Ming Hsu – a empresária nascida em Taiwan que tem vários investimentos de luxo em Portugal, ofereceu vários ventiladores ao Hospital de Santa Maria e tem uma ala da Universidade Nova SBE com o seu nome. Os planos para o Lazareto indicam um conjunto habitacional e um hotel, estando o projeto neste momento em fase de licenciamento na autarquia.
Mas esta não é a única mudança que se fará sentir, dizem os moradores. Mesmo em frente ao lugar onde o “senhor Oliveira” se senta, o antigo edifício da Fábrica de Conservas foi ocupado por uma nova empresa imobiliária, a Southshore Investments, promotora da “Catch” (Centro de Arte, Tecnologia e Criatividade Humana), que trabalha na área das urbanizações sustentáveis.

A Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, anunciou ainda um novo projeto para aqui: a criação do “Innovation District”, um investimento na ordem dos 800 milhões de euros, que, em parceria com a Southshore Investments, prevê aqui intervenções.
Mas Porto Brandão não se faz só do novo. Um espaço pertencente à antiga oficina dos catraeiros, também comprada pela Southshore Investments, está hoje ocupado por objetos curiosos: embarcações típicas. É o projeto de recuperação do estaleiro naval do Porto Brandão, pela empresa Nosso Tejo. A ideia: valorizar a construção naval e as tradições marítimo-fluviais, ao mesmo tempo que se rejuvenescem velhas artes, com jovens do concelho.

Todos estes projetos avançam com outros emperrados, como é o caso da antiga escola do Porto Brandão, que terá sido desativada em 1940 e que aguarda a construção de um hotel pela Sua Kay Architects desde 2018 – a empresa não respondeu às questões da Mensagem.
Tudo isto é o anúncio de um renascimento.
Mas se no Porto Brandão uns se revelam entusiasmados, outros estão mais céticos. Em parte, porque a movimentação burocrática já se faz sentir no dia-a-dia da população. “Aqui, as casas já foram baratas, agora já não estão. Há especulação por causa dos projetos privados”, diz Pedro Silva Pereira.
Sobre os novos negócios, Tiago Costa lamenta serem todos “para pessoas de fora, nada para ninguém daqui.”
E Xarepe, que tantos anos viveu no Lazareto e Asilo 28 de Maio, também tem dúvidas quanto ao futuro: “Isto devia ser reabilitado como antigamente, mas não derrubavam era nada. Até se podia fazer alojamento local, mas tudo isto tinha de ser sujeito a um parecer da população que viveu aqui sempre.”
A população que juntou um atual e famoso rapper do Seixal a um cabo-verdiano amante de poesia. E que deu origem a um novo bairro na margem Sul. Histórias que guardamos para os próximos episódios.
Saiba mais no próximo episódio, “Os putos do asilo”, no dia 25 de agosto.
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ERRATA:
O topónimo de Porto Brandão não surge na carta foral de 1513, mas sim o Reguengo de Caparica, que tinha como limites Porto Brandão. Porto Brandão surge citado num documento de 1521: «Um proprietário lisboeta de apelido Brandão – provavelmente Duarte Brandão, falecido em 11 de Novembro de 1508 (Brandão, 1990: 7) – deu nome à propriedade e lugar, na sua versão mais antiga de «Porto de Duarte (?) Brandão» (15 de Novembro de 1521).
O rapper Chullage é do Seixal e não de Almada.
Ficha técnica
Texto e direção de entrevistas: Ana da Cunha
Vídeo e fotografia: Inês Leote e Carlos Menezes
Podcast e edição geral: Catarina Reis
Ilustração: Nuno Saraiva

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Interessante!
Nascido no porto Brandão a 69 anos morador no porto Brandão gostava d houvir falar da sonap das pessoas que vinham da banatica para apanhar o barco para Lisboa da dona Guilhermina grande pescadora etc.
Salvem as memórias do Porto Brandão ,que é a casa de quem lá nasceu e viveu uma vida cheia de amor e alegria não queiram apagar tais recordações. Abraço forte.
Como gostei de saber algo num lugar que faz parte da minha vida, fui professora no asilo 28 de Maio, embora fosse só por 1 ano marcou-me demasiado para poder esquecer.
eu gostava de poder ouvir sem ser no spotify
Bom dia!
Entretanto, vamos divulgar nas restantes plataformas de áudio.
Obrigada!
Bom dia,
Envio os meus parabéns por outra mensagem interessante e bem concretizada. Gostaria, no entanto, que o artigo mencionasse que no Porto Brandão ainda existe uma actividade industrial, de núcleo portuário- que embora pouco perceptível aos olhos de um leigo, ainda oferece trabalho e sustento a algumas famílias e receitas nada desprezíveis à economia regional e nacional. Mas a esse respeito, talvez as empresas aí localizadas, ou a Administração do Porto de Lisboa possam contar mais…
Cumprimentos.