Bem-vindo ao 2.º episódio de “Porto Brandão”.
Escolha se quer ver, ouvir ou ler:

YouTube video


“Nós brincávamos muito pelo Asilo.” A memória surge ao rapper Chullage como se os vinte e muitos anos que o separam do Asilo 28 de Maio, no Porto Brandão, se evaporassem. “Vínhamos da escola a apanhar frutos, brincávamos nas ruínas, jogávamos às escondidas, fazíamos corridas de bicicleta nos corredores.” Até aprenderam a nadar no pontão sobre o rio Tejo.

Tudo isso não passa hoje de memórias, que lhe vão chegando enquanto se senta num sofá do espaço Tabanka Sul, na Arrentela, Seixal, rodeado de discos de vinil, aparelhagens, quadros.

O pequeno império que o rapper aqui foi construindo desde os tempos em que as paredes do Asilo 28 de Maio começaram a ameaçar seriamente a saúde da mãe dele. Nesses tempos, Chullage ainda não era Chullage, o rapper, mas apenas Nuno Santos. Um puto que crescera no Asilo, o velho Lazareto, a face do abandono desta terra, parada há 50 anos: Porto Brandão.

chullage asilo 28 de maio
O rapper Chullage cresceu no Asilo 28 de maio. Foto: Carlos Menezes Credit: Foto : Carlos Menezes

Tinha quatro anos quando lá chegou. Em 1981.

Já o edifício tinha sido muita coisa. Há um século que se avistava já no barco para Porto Brandão. Fora inaugurado como Lazareto em 1869, para os viajantes que chegavam a Lisboa fazerem quarentena. Um edifício projetado por António Joaquim Pereira que incluía um hospital de pragas, lavandarias, um quartel e habitações para funcionários, albergando até 600 pessoas em alas isoladas.

Foram muitos que por ali passaram: um deles, o célebre artista Rafael Bordalo Pinheiro que, regressado do Brasil, imortalizou a sua experiência na obra No Lazareto de Lisboa. Um lugar que, nas palavras do empregado António Frazão no semanário “Branco e Negro”, era tido como “estabelecimento modelo e um dos primeiros da Europa e da América”.

“Tinha uma arquitetura inspirada na arquitetura prisional. Era suposto ser um hotel, mas parecia uma prisão, e as pessoas pagavam muito para lá estar”, conta o historiador Rui Mendes. “O imperador Pedro II do Brasil passou lá quinze dias!”.

 

De Lazareto a Asilo

Com os anos, a função do Lazareto foi-se tornando obsoleta – e novos destinos foram sendo traçados: uma prisão, um hospital de convalescença militar e, com o golpe de Estado que conduziria à instauração da ditadura militar, o Asilo 28 de maio para religiosas e raparigas pobres.

Mas, no dia 6 de janeiro de 1958, o Diário de Lisboa noticiava:

“A tragédia do Asilo 28 de maio teve cenas de grande dramatismo mas afirma-se que apenas causou a morte a duas crianças e ferimentos em outras duas”

A derrocada de um telhado levava à morte de duas crianças. E o Asilo ficava então despojado de vida, sem que lhe fosse imaginado um futuro.

Assim ficaria até 1963, quando temporais no Porto Brandão fariam com que 40 famílias desalojadas lá ficassem a viver temporariamente.

Depois, veio o 25 de Abril de 1974, a revolução que traria as gentes do ex-Ultramar a Portugal. O Asilo 28 de Maio tornava-se morada para muitos deles. Como para a família de Chullage que, chegada, fez como tantas outras: ocupou um espaço, dividindo-o com taipais de madeira. Assim iam nascendo a sala, os quartos, a cozinha…

“Nós morávamos no andar de baixo”, conta ele. Naquelas que eram conhecidas como as “caves” do Asilo, cada uma com o seu pátio. O pátio de Chullage ficaria para sempre conhecido como “Ratazana Parque”: era ali que, quando as águas dos esgotos subiam, se viam as ratazanas a nadar.

“Era como estar em Cabo Verde”

Muitos dos que recordam esse Asilo 28 de maio partilham ainda a mesma morada, no bairro onde seriam realojados, em 1996, naquele que passaria a ser chamado “o bairro do Asilo”.

Lá, uma placa anuncia:

“Complexo Urbanístico da Casa Pia de Lisboa. Destinado ao Realojamento dos Moradores do Ex-Asilo 28 de Maio.” 

Carlos Rodrigues, que veio cedo de Angola para o Asilo, mora no bairro desde 1996, e confessa saudade: “Fiz muitos amigos no Asilo. A vivência era outra, a gente via-se todos os dias.”

José Manuel Tavares, que aos 16 anos veio de Cabo Verde para Lisboa, também recorda: “As pessoas viviam lá com uma solidariedade e uma convivência tremendas.”

porto brandão bairro do asilo
José Manuel Tavares, Carlos Rodrigues e João Encarnação recordam a sua infância no Asilo 28 de maio. Foto: Inês Leote

Aquele que fora em tempos um lugar de quarentena, e de aprendizagem, virara um lugar quase cabo-verdiano, com o salão de baile “A Voz das Ilhas” ou a discoteca “O Fininho” a animar os dias.

“Encontrava-se um mundo lá”, conta José Manuel. “Estar naquele edifício era quase como uma viagem ao passado.” E Chullage recorda: “Toda a música que eu aprendi, aprendi de ouvido, lá”.

Chullage, que se lembra bem de esperar pelas cassetes de música que os primos que viviam na Holanda enviavam. “Na discoteca, faziam covers das músicas de Cabo Verde e nós íamos para lá, miúdos, agarrados às pernas das nossas mães, dançar.” 

asilo 28 de maio lazareto
“A Voz das Ilhas” era a discoteca do Asilo 28 de maio. Foto: Inês Leote

A polícia, a droga, a degradação

Mas essa infância no Asilo 28 de Maio guarda também memórias agridoces.

Chullage, em pequeno, no Porto Brandão.

Com o tempo, o edifício ia acusando cada vez mais a degradação. A eletricidade, que viajava por cabos emaranhados uns nos outros, muitas vezes falhava.

“Chegámos a ficar seis meses sem luz, lembro-me de fazer os trabalhos de casa à luz das velas”, conta Chullage.

Nesses anos 80, com o boom da heroína, “essa praga que matou os irmãos mais velhos de toda a gente ou os mandou para a prisão, pretos e brancos”, nas palavras do artista, o Asilo não foi exceção. Era lugar de gente deslocada, em busca de uma nova vida. Situações instáveis, em busca de paz, por vezes, através de outros meios.

Chullage ainda se recorda da primeira letra que escreveu: “Lembro-me que começava com ‘Foi apanhado com droga’”.

José Manuel confessa que foi um dos jovens do Asilo que batalhou contra a droga. “O consumo e o tráfico não foi só no Asilo, mas naquela altura não se tinha conhecimento, não sabíamos o que era, foi algo que surgiu…”, lembra, agora recuperado.

Isabel Grilo conta como a droga tomou conta da família. “O meu irmão tinha o vício do álcool e das drogas e a minha família foi perdendo todas as economias, tivemos de vir para o Asilo.” Nascida em Angola e hoje a viver nos Açores, tinha 18 anos quando viajou do Algarve para Almada à procura de casa. Um lugar que ela descreve como um “gueto para as drogas” onde “as fossas eram a céu aberto”.

Por causa dessa situação, todos recordam a violência das rusgas da polícia:

“Uma vez a Judiciária fez uma rusga lá e foi bué violento, eu era puto, foi aí é que percebi o não-lugar que aquilo era, a cena ficou-me na cabeça”, diz Chullage. “Eu estava a pôr o lixo, e o primeiro carro da PJ leva-me o lixo à frente. Isso violentou-me.”

A degradação e a falta de saneamento básico acabariam por levar a família do rapper a sair do Asilo. Mas nem tudo foi simples. “Vir para um prédio foi bué violento”, desabafa. “Havia todo um espaço, todo um horizonte, toda uma amplitude, uma possibilidade que acabou nestes prédios azuis e brancos.” 

A saudade era tanta, que Nuno chegou a fugir do Seixal de volta para o Asilo.

Também José Manuel acabaria por partir, procurando a cura para a sua dependência. Mas nenhum dos dois se esqueceu do Asilo 28 de Maio, e da comunidade unida que lá vivia.

“Do ponto de vista da humanidade, aquilo mudou a minha vida. O meu referencial de não individualização, de coletividade, é o Asilo”, resume Chullage.

Não muitos anos mais tarde, o Asilo acabaria por ficar sem ninguém, com a população a ser realojada no bairro no Monte de Caparica, depois da tragédia que matou duas crianças. No bairro, muitos dos problemas do Asilo mantiveram-se, mas a comunidade ficou mais fechada.

“Todos os realojamentos têm sido feitos assim, de repente parece que se está a dar um direito à casa, mas está a tirar-se um outro direito. Não podes enfiar só uma pessoa no betão, os laços são rebentados”, diz Chullage. “Os espaços não são feitos só da sua estrutura de betão, são feitos da sua estrutura humana.”

Durante anos, Chullage acreditou ter perdido o amigo e vizinho José Manuel Tavares. Foi quando demos o tiro de partida para esta série que souberam que estavam vivos e reencontraram-se.

Assista a este reencontro no próximo episódio!

Saiba mais no próximo episódio, “A derrocada”, no dia 1 de setembro.
Ou acompanhe-nos nas redes sociais da Mensagem:

Ficha técnica
Texto e direção de entrevistas: Ana da Cunha
Vídeo e fotografia: Inês Leote e Carlos Menezes
Podcast e edição geral: Catarina Reis
Ilustração: Nuno Saraiva


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Entre na conversa

4 Comentários

  1. Saí do AS28 bastante jovem, tinha 10 anos, mas a saudade é tão grande, realmente era o nosso pedaço de chão, era como se estivéssemos isolados de tudo, mas ao mesmo tempo livres.

  2. Fui uma criança privilegiada, no meio do pouco tive tudo: valores, amor “á moda antiga”, diversão e confraternização! Ir ao Porto Brandão, ver fotos ou ler esta mensagem de Lisboa é fazer uma viagem a um passado de memórias ÚNICAS (boas e más)!

  3. Que bom saber, Mélida!
    Esta sexta-feira, dia 8, sai o último episódio da série sobre Porto Brandão.
    Obrigada por nos ler!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *