Leonoreta abre a porta e convida a entrar no apartamento de decoração sóbria, a mobília de madeira firme e austera, como os olhos que nos miram dos retratos na parede. Atravessa o corredor com passos cuidadosos de nonagenária e se os gestos condizem com os 94 anos da anfitriã, a memória, como se verá a seguir, retém ainda o frescor da juventude.

Professora, escritora, poeta e ativista, Leonoreta Leitão poderia ser conhecida pelos vizinhos de Alvalade, em Lisboa, apenas por uma destas suas valências. Porém, um acessório específico do seu traje diário acabou por forjar o epíteto com a qual ficou mais conhecida: “a mulher da boina“.

A boina que, a princípio, foi cosida pela mãe para proteger a filha que contraiu tuberculose ainda na adolescência e desde então redobrou os cuidados com a saúde, mas que logo depois passou a ser o símbolo da resistência contra a mão de ferro do Estado Novo.

Uma “luta cívica” que Leonoreta travou de forma silenciosa no início, na sala de aula e no convívio com os pares da docência e da literatura, mas que após o 25 de Abril traduziu-se na atividade política e em diversos pelouros como autarca na antiga Junta de São João de Brito.

E também como militante do Movimento Democrático Português (MDP/CDE) e, mais tarde, do Partido Comunista Português, concretizando assim um antigo desejo de estar entre os camaradas, muitos deles seus vizinhos na rua Alberto Osório de Castro.

Uma tranquila via de Alvalade que durante o Estado Novo concentrava nos pouco mais dos seus cem metros tantos militantes do PCP que dentro do partido era secretamente chamada de… a Rua Vermelha. E que se torna um dos protagonistas de um documentário que estreia no dia 1 de julho, sábado, às 15:00, na Biblioteca dos Coruchéus, em Alvalade, em homenagem a Leonoreta – onde a Mensagem vai estar para uma conversa à convite do projeto Vidas e Memórias do Bairro, da Câmara Municipal de Lisboa, com a presença da própria, à qual todos podem assistir.


A história de uma Rua Vermelha em Alvalade

Foi justamente pela Rua Vermelha que a conversa começou, para em seguida desenrolar-se sem uma cronologia definida, para frente e para trás no tempo, com os vários personagens que cruzaram a vida dela a entrar e sair de cena, o que exigiu posteriormente diversas consultas à autobiografia de Leonoreta Leitão, “Era uma vez uma boina” (Edições Colibri), editada em 2015.

Foto : Carlos Menezes

“Escrevi isso para o senhor”, disse Leonoreta, esticando um pedaço de papel redigido em caneta preta. “Foi o Eliezer Marinho, um antigo responsável do PCP, que depois do 25 de Abril me contou que havia vários camaradas a morar na mesma rua em que vivia”, explicou. 

A lista escrita por Leonoreta identifica os vizinhos filiados ao PCP da Rua Vermelha pela profissão: dois oficiais da marinha mercante, um da Carris, um propagandista de remédios, um bombeiro, um tipógrafo, um fotógrafo, dois barbeiros e um desenhador e a esposa.

A lista de vizinhos de Leonoreta na rua Alberto Osório de Castro filiados ao Partido Comunista Português. Foto : Carlos Menezes.

Não deixava de ser curiosa uma “célula comunista” no coração de Alvalade, um bairro historicamente conservador, à época com a maioria dos moradores simpáticos ou ligados ao regime do Estado Novo. A explicação, porém, é simples: “Os prédios da rua Alberto Osório de Castro pertenciam ao Instituto de Gestão Financeira e eram atribuídos a grémios ligados a profissões, que por sua vez concediam dois andares à Câmara Municipal de Lisboa”, conta Leonoreta. 

Era natural que muitos desses profissionais a viverem em Alvalade, portanto, viessem de atividades ligadas à luta contra a ditadura.

Nascida em Leiria, em 1929, Leonoreta mudou-se para Lisboa com a família em 1942. Com a morte do pai, advogado, escritor e cronista de rádio, em 46, a família conheceu algumas dificuldades e foi forçada a trocar de endereço até fixar-se em 1956 em Alvalade. 

As dificuldades financeiras fizeram com que a mãe de Leonoreta tivesse que contrariar o seu espírito criativo e ideológico para não deixar “afundar a barca” e aceitasse o monótono emprego de datilógrafa no Arquivo Geral do Secretariado Nacional de Informação, onde resumia o conteúdo de cartas das 14h às 20h e, pela manhã, fazia bolos para vender.

“Morávamos numa fração de uma casa na Lapa que iria ser demolida pela CML. Pela demolição, os proprietários tinham direito a uma moradia em Alvalade, mas decidiram regressar à terra natal. A minha mãe então escreveu uma carta à Câmara, expondo a situação da família, e conseguiu ocupar o lugar dos donos em Alvalade”, conta.

Seguindo a lógica imobiliária da rua, o prédio onde Leonoreta até hoje vive pertencia ao setor da hotelaria. “Por isso, os inquilinos eram dois criados de cafés, um tirador de cerveja e um gerente de uma pastelaria na Baixa”, enumera.

O tempo, porém, exigia o sigilo absoluto em nome da segurança dos militantes, o que curiosamente fez com que cada comunista da “Rua Vermelha” de Alvalade ignorasse a presença do outro.

Todos, menos justamente um dos vizinhos de Leonoreta, cujo apartamento pertencente à Câmara de Lisboa foi cedido à PIDE para ser moradia de um dos seus informadores.

Um vizinho da PIDE

Parte das lembranças de Leonoreta Leitão foram resgatadas pelo grupo Memórias e Vidas de Alvalade, em sessões de entrevistas gravadas em vídeo e que deram fruto ao documentário que será exibido no dia 1 de julho, em Alvalade.

Foi através dos integrantes do grupo que a entrevistou que “a mulher da boina”, décadas depois, recuperou um cartão postal enviado de Espanha pelo escritor Urbano Tavares Rodrigues, com quem manteve um relacionamento até 1984, quando Leonoreta decidiu terminar a “vida comum entre os dois, mas sem atritos”, mantendo-se um afetuoso laço de amizade.

O postal foi encontrado pelos integrantes do Memórias e Vidas de Alvalade durante uma pesquisa na Torre do Tombo e uma cópia do mesmo restituiu a correspondência intercetada pela PIDE, provavelmente, pelo vizinho de Leonoreta.

Cópia do cartão postal enviado por Urbano Tavares Rodrigues para Leonoreta que havia sido extraviado pela PIDE. Foto : Carlos Menezes.

A descoberta da identidade secreta do vizinho da PIDE surgiu por acaso e contou com a participação de uma figura emblemática da história política portuguesa: a jornalista Maria Armanda Falcão, que antes da revolução era ativista de esquerda e, após o 25 de Abril, deu uma guinada de 180 graus à direita, sob o pseudónimo de Vera Lagoa.

Na companhia da então amiga Maria Armanda (Leonoreta posteriormente cortaria a amizade com Vera Lagoa), numa das mesas d’A Brasileira do Chiado, cumprimentou o tal vizinho, que trabalhava num escritório de advocacia na Baixa. Sempre bem informada, a futura fundadora dos semanários O Diabo e Sol, não teve dúvidas: “Tome muito cuidado com as conversas com esses sujeito”, começou a dizer à amiga que usava uma boina sentada ao seu lado. “Pois ele é da PIDE.”

Ainda antes de ter a certeza de que as suas correspondências e provavelmente a dos outros comunistas da “Rua Vermelha” eram sistematicamente intercetadas, Leonoreta desconfiava dos passos do vizinho, que costumava ser visto com frequência na vizinha agência dos Correios da Avenida da Igreja – e agora sabe-se muito bem com que intuito.

Noutras vezes, durante as conversas telefónicas com o antigo companheiro Urbano Tavares Rodrigues, um notório comunista, era advertida a ser comedida com as palavras pois “um ruído estranho na ligação” denunciava que a mesma estava sob escuta.

Além do constrangimento da liberdade, a PIDE ainda teria um papel decisivo nas aspirações profissionais da Mulher da Boina, frustrando o desejo de seguir uma carreira literária.

Uma professora e escritora contra o Estado Novo

Licenciada pela Faculdade de Letras em 1955, Leonoreta conheceu o peso do Estado Novo ainda nos corredores da universidade. No terceiro ano do curso, um trabalho em dupla com o colega Mário Pinto de Andrade foi interrompido após o desaparecimento súbito do mesmo, “sem deixar rasto”.

“Contactei os meus colegas com os quais tentávamos criar uma associação de estudantes, mas em nada me elucidaram”, conta Leonoreta na autobiografia. Só mais tarde tomaria conhecimento de que o colega em questão havia sido o fundador e primeiro presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e “desapareceu, temendo ser preso”.

Foto : Carlos Menezes

Como professora, Leonoreta conseguiu driblar o regime sempre que podia. Como na escola  D. António da Costa, em Almada, quando foi incumbida das comemorações da Semana do Ultramar, mas conseguiu contornar uma preleção sobre o Império ao elaborar um texto intitulado “Uma lição de fraternidade – era uma vez os índios“. 

Como subdiretora da Escola Profissional de Torres Novas, não compareceu à vista do então ministro do Interior. O seu nome numa placa na cadeira vazia não passou em branco e o chefe da Secretaria de Educação chegou a questionar: “A senhora subdiretora é contra o Estado Novo?”.

Leonoreta escapou de um constrangimento maior, mas veio saber depois do 25 de Abril que a cadeira vazia custou-lhe uma progressão na carreira, sendo preterida em diversas tentativas de assumir outros postos em escolas de Lisboa. 

Pior seria com a carreira literária.

Em 1965, incentivada por amigos, decidiu inscrever o livro de poesias “Amanhã é domingo” ao prémio revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores. No mesmo ano, a sede da SPE foi invadida e depredada por agentes da PIDE, após a atribuição ao galardão principal a Luuanda, escrito por um então preso político, Luandino Vieira. 

A ação que destruiu candeeiros, máquinas de escrever e ficheiros e fechou a sede da SPE impediu a atribuição do prémio revelação de 1965. Em confidência, um dos membros do júri revelou reservadamente a Leonoreta que ela venceria a contenda. “Amanhã é domingo” seria editado no ano seguinte pela Guimarães Editores, mas sem a merecida premiação.

Ainda na área da literatura, se serve de consolo, “a mulher da boina” permitiu-se uma revanche. 

Para surpresa dos familiares, um tio de Leonoreta ficou encarregue de ler as obras proibidas e decidir levantar ou não as interdições. Sob a influência da sobrinha, o censor tirou da lista da PIDE alguns títulos, entre eles “O Relógio Parado“, de Lília da Fonseca, e “Mar Morto“, de Jorge Amado – tornando-se o único livro do escritor brasileiro a escapar à interdição.

Numa das suas viagens a Lisboa, Jorge Amado soube da ação secreta da “mulher da boina” através do camarada Urbano Tavares Rodrigues (de quem as obras Leonoreta não conseguiu convencer o tio a tirá-los da lista) e dedicou-lhe um autógrafo no livro que guarda até hoje.

O exemplar de Mar Morto autografado por Jorge Amado, após saber que Leonoreta conseguiu tirá-lo da lista de livros censurados pela PIDE. Foto : Carlos Menezes.

As várias boinas da Mulher da Boina

Guardadas também estão as várias boinas que Leonoreta usou durante décadas, desde que a mãe lhe costurou a primeira, aos 15 anos, quando deixou o sanatório após convalescer de tuberculose. O acessório, inicialmente um artigo de proteção contra os males do frio ou um vento mais forte aos frágeis pulmões da adolescente, seria na vida adulta símbolo da sua força.

Algumas das boinas que usava
As boinas ainda guardadas na gaveta da cómoda, o acessório antes usado para a proteção e, depois, como símbolo de luta. Foto : Carlos Menezes.

Na gaveta da cómoda no quarto tão espartano quanto a sala, as boinas enfileiram-se umas sobre as outras. Já não saem com tanta frequência como antes, quando Leonoreta era vista a dar aulas ou em protesto, nos tempos em que as boinas não só conferiam um estilo a quem as usasse, mas serviam para demarcar também uma posição política.

E Leonoreta não escapou à moda subversiva. Usou tanto a boina basca preta, símbolo da Paris que ardia em maio de 1968, quanto a vermelha à sovietes, todas assim, meio de lado, símbolo do inconformismo, com direito a uma estrela fixada num pin. A “mulher da boina“, antes e depois do 25 de Abril, no dia a dia no trabalho, nas passeatas pelo direito à educação.

Leonoreta não parece disposta a falar muito sobre o acessório. Talvez por hoje não fazer tanto sentido quanto nos tempos em que foi imortalizada por Che Guevara como parte da indumentária de uma luta.

Em tom menos revolucionário, prefere guardar a memória da boina como um gesto de carinho materno para proteger os pulmões fragilizados da filha. E não como uma peça que ajudava a ocultar as ideias que passavam na cabeça de Leonoreta, a professora que desafiou do seu jeito o Estado Novo, contrastando os anos cinzentos com as cores das boinas que vestia, a andar por Lisboa, sob o olhar atento de camaradas e agentes da PIDE, vizinhos de uma “Rua Vermelha” de Alvalade.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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4 Comentários

  1. Sou amiga de longa data dessa maravilhosa Mulher e a minha admiração pelo seu percurso de vida é enorme.
    Parabéns à Leonoreta e à Mensagem pelo testemunho do que se passou nos anos anteriores ao 25 de Abril!
    E fascismo nunca mais!

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